Deixarei que Morra em Mim
Quando Deus aparece pra você?
Pra mim, ele aparece sempre através da música. Pode ser uma música popular, pode ser algo que toque no rádio, mas que me chega no momento exato em que preciso estar reconciliada comigo mesma. De forma inesperada, a música me transcende.
Deus me aparece nos livros, em parágrafos que não acredito que possam ter sido escritos por um ser mundano: foram escritos por um ser mais que humano.
Deus me aparece – muito! – quando estou em frente ao mar.
Deus aparece quando choro. Quando a fragilidade é tanta que parece que não vou conseguir me reerguer. Quando um amigo me liga de algum lugar distante e demonstra estar mais perto do que o vizinho do andar de cima. Deus aparece no sorriso e no abraço espontâneo de alguém querido. E nas preocupações da minha mãe, que mãe é sempre um atestado da presença desse cara.
E quando eu o chamo de cara e ele não se aborrece, aí tenho certeza de que ele está mesmo comigo.
Eu não sei, mas acho que a gente olha e pensa: “Quero pra mim”. Mas dá um frio na barriga, um tremor, um medo de depender de alguém, de sofrer, de escolher errado, de lutar por algo que não vale a pena. Porque o coração nem sempre é mocinho. Foi por isso que corri, tentei fugir, mas quando tem que ser, não adianta, será.
Hoje uma conversa me fez parar e olhar para mim. Uma guerreira sonhadora que estava adormecida dentro de mim, resolver dar uns gritos. Sabe aquele tenso momento que o seu eu começa a conversar com você? E você pensa assim: "Pronto, endoidei!", sabe?
Então, essa garota disse algumas coisas bacanas que eu querida dividir com vocês, vai que ela esteja tentando falar com você também, mas você não consegue ouvir...
Ela disse assim:
"Ei menina, se olha no espelho, para um pouquinho e lembra do último cara que você beijou, aquele gato, loiro, dos olhos de mar, que te olhava nos olhos e não se cansava de te beijar. Lembra das coisas picantes que ele falou no seu ouvido enquanto você gemia de prazer? E daí que ele não era o seu grande amor? Foda-se esse amor, sinceramente amor não combina com dor, esquece esse cara que não reconhece o seu valor. Tá bem, não da pra esquecer? Então não esquece, mas volte a viver. Você é linda, lembra dos suspiros no elevador? E aquele seu professor, fala serio, ele é muito mais lindo e sarado que esse seu amor, e boba, ele é louco por você! Você é especial, não deixe nada nem ninguém te fazer esquecer disso. Tem gente que não vive sem o seu sorriso, fica perto de quem te faz bem, te quer bem, te quer de verdade, quer só sacanagem, mas deseja você, é só separar, não deixar se envolver se sentir que vai sofrer.
Esquece as magoas, não se deixe abater. Não é você quem diz que o que não mata fortalece, e o que não é benção é livramento? Então, passa um batom, coloca aquela sua roupa linda, vá ver os amigos, eles adoram você. E quando as lembranças tristes, das feridas, dos amores perdidos, das alianças quebradas, daquilo que não te fizeram sofrer, lembre-se: Triste deve ser a vida de quem perdeu você!"
Uma vida sem sustos. É o que desejo pra mim. Não estou dizendo uma vida sem decepções, frustrações ou êxtases: sem sustos apenas. Quero aceitar a potência dos meus sentimentos e não ficar embaraçada diante de reações incomuns. Poder receber uma ventania de pé, mesmo que ela me desloque de onde eu estava. De pé, mesmo com medo.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havermos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Penso em ti e dentro de mim estou completa. (...) Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.
Estou tentando te dizer de como cheguei ao neutro e ao inexpressivo de mim. Não sei se estou entendendo o que falo, estou sentindo – e receio muito o sentir, pois sentir é apenas um dos estilos de ser.
Quero cruzadas e martírio. O mundo é demasiado pequeno para mim. O mundo é pequeno demais. Estou cansada de tocar guitarra, fazer malha, passear, parir crianças. Os homens são pequenos e as paixões são curtas. Irritam- me as escadas, as portas, as paredes, irrita-me o dia a dia que interfere na continuidade do êxtase. Existe pois o martírio - tensão, febre, da continuidade da vida - firmamento em perpétuo movimento e brilho total. Nunca se viram estrelas empalidecer ou cair. Nunca adormecem.
Nada tenho a ver com não gostar de mim. Me aceito impura, me gosto com pecados, e há muito me perdoei.
Meu mundo se resume a palavras que me perfuram, a canções que me comovem, a paixões que já nem lembro, a perguntas sem respostas, a respostas que não me servem, à constante perseguição do que ainda não sei. Meu mundo se resume ao encontro do que é terra e fogo dentro de mim, onde não me enxergo, mas me sinto.
Minto, tenho tudo a ver com explosões.
Nota: Trecho da crônica "Explosões" de Martha Medeiros.
(...) e vou definitivamente ao encontro de um mundo que está dentro de mim, eu que escrevo para me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma.
Em cada palavra pulsa um coração. Escrever é tal procura de íntima veracidade de vida. Vida que me perturba e deixa o meu próprio coração trêmulo sofrendo a incalculável, dor que parece ser necessária ao meu amadurecimento – amadurecimento? Até agora vivi sem ele!
É. Mas parece que chegou o instante de aceitar em cheio a misteriosa vida dos que um dia vão morrer. Tenho que começar por aceitar-me e não sentir o horror punitivo de cada vez que eu caio, pois quando eu caio a raça humana em mim também cai. Aceitar-me plenamente? é uma violentação de minha vida. Cada mudança, cada projeto novo causa espanto: meu coração está espantado. É por isso que toda a minha palavra tem um coração onde circula sangue.
Tudo o que aqui escrevo é forjado no meu silêncio e na penumbra. Vejo pouco, ouço quase nada. Mergulho enfim em mim até o nascedouro do espírito que me habita. Minha nascente é obscura. Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim. Quer dizer: não sei o que fazer com meu espírito. O corpo informa muito. Mas eu desconheço as leis do espírito: ele vagueia. Meu pensamento, com a enunciação das palavras mentalmente brotando, sem depois eu falar ou escrever – esse meu pensamento de palavras é precedido por uma instantânea visão, sem palavras, do pensamento – palavra que se seguirá, quase imediatamente – diferença espacial de menos de um milímetro.
Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
De pensada, mal vivida...
Triste de quem é assim!
Numa angústia sem remédio
Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tédio,
Só do que nunca quis ter...
Quem eu pudera ter sido,
Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim, 'stou de mim partido.
Se ao menos chovesse menos!
Depois de ter cortado todos os braços que se estendiam para mim; depois de ter entaipado todas as janelas e todas as portas; depois de ter inundado os fossos com água envenenada; depois de ter edificado minha casa num rochedo inacessível aos afagos e ao medo; depois de ter lançado punhados de silêncio e monossílabos de desprezo a meus amores; depois de ter esquecido meu nome e o nome da minha terra natal; depois de me ter condenado a perpétua espera e a solidão perpétua, ouvi contra as pedras de meu calabouço de silogismos a investida húmida, terna, insistente, da Primavera.
Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.
Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?
Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre.
Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.