Crônicas de Rubem Alves
Há propriedades que, para se fazerem sentir e valer dependem exclusivamente
de si mesmas, Por- exemplo, antes que os homens existissem já brilhavam as
estrelas, o sol aquecia, a chuva caia e as plantas e bichos enchiam o mundo. Tudo
isto existiria e seria eficaz sem que o homem jamais existido, jamais pronunciado
uma palavra, jamais feito um gesto. E é provável que que continuaram, mesmo
depois do nosso desaparecimento. Trata-se de realidades naturais, independente do
desejo, da vontade, da atividade prática dos homens.
Há também gestos que
uma eficácia em si mesmos. O dedo que puxa o gatilho, a mão que faz cair a
bomba, os pés que fazem a bicicleta andar: ainda que o assassinado nada saiba e não
ouça palavra alguma, ainda que aqueles sobre quem a bomba explode não recebam
antes explicações, e ainda que não haja conversação entre os pés e as rodas — não
importa, os gestos têm eficácia própria e são, praticamente habitantes do mundo
da natureza.
Uma pedra não é imaginária. Visível, concreta. Como tal, nada tem de religioso.
Mas no momento em que alguém lhe dá o nome de altar, ela passa a ser circundada de
uma aura misteriosa, e os olhos da fé podem vislumbrar conexões invisíveis que a
ligam ao mundo da graça divina. E ali se fazem orações e se oferecem sacrifícios.
Pão, como qualquer pão, vinho, como qualquer vinho. Poderiam ser usados
numa refeição ou orgia: materiais profanos, inteiramente. Deles não sobe
nenhum odor sagrado. E as palavras são pronunciadas: "Este é o meu corpo, este é
o meu sangue. . ." — e os objetos visíveis adquirem uma dimensão nova, e passam a
ser sinais de realidades invisíveis.
Perde a natureza sua aura sagrada. Nem os céus proclamam a glória de Deus, como
acreditava Kepler, e terra anuncia o seu amor. Céus e terra não são o poema de um ser supremo invisível. E é por isto que não existe nenhum interdito, nenhuma
proibição, nenhum tabu a cercá-los. A natureza é nada mais que uma fonte de
matérias-primas, entidade bruta, destituída de valor. O respeito pelo rio e pela fonte.
E, da mesma forma como é inútil tentar apagar o fogo assoprando a fumaça,
também é inútil tentar mudar as condições de vida pela crítica da religião. A
consciência da fumaça nos remete ao incêndio de onde ela sai. De forma idêntica, a
consciência da religião nos força a encarar as condições materiais que a produzem.
o trabalho não é atividade
que dá prazer, mas atividade que dá sofrimento. O homem trabalha porque não tem
outro jeito. Trabalho forçado. Seu maior ideal: a aposentadoria. O prazer, ele irá
encontrar fora do trabalho. E é por isto que ele se submete ao trabalho e ao pago do
salário.
É o mundo capitalista, regido pela lógica do dinheiro. E o que ocorre é
que o mundo estabelecido pela lógica do lucro — que inclui de devastações ecológicas
até a guerra — está totalmente alienado, separado dos desejos das pessoas, que
prefeririam talvez coisas mais simples. . . Assim, as áreas verdes são entregues à
especulação imobiliária, os índios perdem suas terras porque gado é melhor para a
economia que índio, as terras vão-se transformando em desertos de cana, enquanto que
rios e mares viram caldos venenosos, e os peixes bóiam, mortos...
Isto é a realidade: homens trabalhando, em relações uns com os outros, sob
condições que eles não escolheram, fazendo com seus corpos um mundo que não
desejam.. . E é disto que surgem ecos, sonhos, gritos e gemidos, poemas, filosofias,
utopias, critérios estéticos, leis, constituições, religiões.. .
Sobre o fogo, a fumaça,
sobre a realidade as vozes,
sobre a infra-estrutura a superestrutura,
sobre a vida a consciência. . .
De fato, quando o pobre/oprimido, das profundezas do seu sofrimento, balbucia:
"É a vontade de Deus", cessam todas as razões, todos os argumentos, as injustiças se
transformam em mistérios de desígnios insondáveis e a sua própria miséria, uma
provação a ser suportada com paciência,na espera da salvação eterna de sua alma. E os
poderosos usam as mesmas palavras sagradas e invocam os poderes da divindade
como cúmpli-
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cês da guerra e da rapina. E os habitantes originais deste continente e suas
civilizações foram massacrados em nome da cruz, e a expansão colonial levou
consigo para a África e a Ásia o Deus dos brancos, e constituições se escrevem
invocando a vontade de Deus, e um representante de Deus vai ao lado daquele que
foi condenado a morrer. . . Nada se altera, nada se transforma, mas sobre todas as
coisas dos homens se espalha o perfume do incenso. . .
Marx antevê o fim da religião. Ela só existe numa situação marcada pela alienação.
Desaparecida a alienação, numa sociedade livre, em que não haja opressores, não
importa que sejam capitalistas, burocratas ou quem quer que ostente algum sinal de
superioridade hierárquica, desaparecerá também a religião. A religião é fruto da
alienação. E com isto os religiosos mais devotos concordariam também. Nem no
Paraíso e nem na Cidade Santa se e/nitem alvarás para a construção de templos. ..
"Num lugar não muito longe daqui havia um poço fundo e escuro onde, desde
tempos imemoriais, uma sociedade de rãs se estabelecera. Tão fundo era o poço que
nenhuma delas jamais havia visitado o mundo de fora. Estavam convencidas que o
universo era do tamanho do seu buraco. Havia sobejas evidências científicas
para corroborar esta teoria e somente um louco, privado dos sentidos e da
razão, afirmaria o contrário. Aconteceu, entretanto, que um pintassilgo
que voava por ali viu o poço, ficou curioso, e resolveu investigar suas
profundezas. Qual não foi sua surpresa ao descobrir as rãs! Mais perplexas
ficaram estas, pois aquela estranha criatura de penas colocava em questão todas as
verdades já secularmente sedimentadas e comprovadas em sua sociedade. O
pintassilgo morreu de dó. Como é que as rãs podiam viver presas em tal poço, sem
ao menos a esperança de poder sair? Claro que a ideia de sair era absurda para os
batráquios, pois, se o seu buraco era o universo, não poderia haver um "lá fora". E o pintassilgo se pôs a cantar furiosamente. Trinou a brisa suave, os campos verdes, as árvores copadas, os
riachos cristalinos, borboletas, flores, nuvens, estrelas. . . o que pôs em polvorosa a sociedade das rãs, que se dividiram. Algumas acreditaram e começaram a imaginar como seria lá fora. Ficaram mais alegres e até mesmo mais bonitas. Coaxaram canções novas. As outras fecharam a cara. Afirmações não confirmadas pela experiência não
deveriam ser merecedoras de crédito, elas alegavam. O pintassilgo tinha de estar
dizendo coisas sem sentido e mentiras. E se puseram a fazer a crítica filosófica,
sociológica e psicológica do seu discurso. A serviço de quem estaria ele? Das classes
dominantes? Das classes dominadas? Seu canto seria uma espécie de narcótico? O
passarinho seria um louco? Um enganador? Quem sabe ele não passaria de uma
alucinação coletiva? Dúvidas não havia de que o tal canto havia criado muitos
problemas. Tanto as rãs-dominantes quanto as rãs-domi-nadas (que secretamente
preparavam uma revolução) não gostaram das ideias que o canto do pintassilgo estava
colocando na cabeça do povão. Por ocasião de sua próxima visita o pintassilgo foi preso, acusado de enganador do povo, morto, empalhado e as demais rãs proibidas, para
sempre, de coaxar as canções que ele lhes ensinara. . ."
Foi assim que aconteceu: a ciência empalhou a religião, tirando dela verdades
muito diferentes daquelas que a própria religião viva cantava. Acontece que as pessoas
religiosas, ao dizer os nome sagrados, realmente crêem num "lá fora" e é deste mundo
invisível que suas esperanças se alimentam. Tudo tão distante, tão diferente da
sabedoria científica.. .
A ciência nos coloca num mundo glacial e mecânico,
matematicamente preciso e tecnicamente manipulável, mas vazio de significações
humanas e indiferente ao nosso amor. Bem dizia Max Weber que a dura lição que
aprendemos da ciência é que o sentido da vida não pode ser
encontrado ao fim da análise científica, por mais completa que seja. E nos
descobrimos expulsos do paraíso, ainda com os restos do fruto do conhecimento em
nossas mãos...
O sentido da vida: não há pergunta que se faça com maior angústia e parece que
todos são por ela assombrados de vez em quando. Valerá a pena viver? A gravidade da
pergunta se revela na gravidade da resposta. Porque não é raro vermos pessoas
mergulhadas nos abismos da loucura, ou optarem voluntariamente pelo abismo do
suicídio por terem obtido uma resposta negativa. Outras pessoas, como observou
Camus, se deixam matar por ideias ou ilusões que lhes dão razões para viver: boas razões
para viver são também boas razões para morrer.
O sentido da vida: não há pergunta que se faça com maior angústia e parece que
todos são por ela assombrados de vez em quando. Valerá a pena viver? A gravidade da
pergunta se revela na gravidade da resposta. Porque não é raro vermos pessoas
mergulhadas nos abismos da loucura, ou optarem voluntariamente pelo abismo do
suicídio por terem obtido uma resposta negativa. Outras pessoas, como observou
Camus, se deixam matar por ideias ou ilusões que lhes dão razões para viver: boas razões
para viver são também boas razões para morrer.
Mas o que é isto, o sentido da vida?
O sentido da vida é algo que se experimenta emocionalmente, sem que se saiba
explicar ou justificar. Não é algo que se construa, mas algo que nos ocorre de forma
inesperada e não preparada, como uma brisa suave que nos atinge, sem que saibamos
donde vem nem para onde vai, e que experimentamos como uma intensificação da
vontade de viver ao ponto de nos dar coragem para morrer, se necessário for, por
aquelas coisas que dão à vida o seu sentido. É uma transformação de nossa visão do
mundo, na qual as coisas se integram como em uma melodia, o que nos faz sentir
reconciliados com o universo ao nosso
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redor, possuídos de um sentimento oceânico, na poética expressão de Romain
Rolland, sensação inefável de eternidade e infinitude, de comunhão com algo que nos
transcende, envolve e embala, como se fosse um útero materno de dimensões
cósmicas. "Ver um mundo em um grão de areia / e um céu numa flor silvestre,/
segurar o infinito na palma da mão / e a eternidade em uma hora" (Blake).
O sentido da vida é um sentimento.
Se a pretensão da religião terminasse aqui, tudo estaria bem. Porque não há leis que
nos proíbam de sentir o que quisermos. O escândalo começa quando a religião ousa
transformar tal sentimento, interior e subjetivo, numa hipótese acerca do universo.
Podemos entender as razões por que o homem religioso não pode se satisfazer com o
pássaro empalhado. A religião diz: "o universo inteiro faz sentido". Ao que a ciência
retruca: "as pessoas religiosas sentem e pensam que o universo inteiro faz sentido".
Aquela afirmação sagrada que ecoava de universo em universo, reverberando em
eternidades e infinitos, a ciência aprisiona dentro do poço pequeno e escuro da
subjetividade e da sociedade: ilusão, ideologia. O sentido da vida é destruído. Que
pode restar da alegria das rãs, se o "lá fora" que o pintassilgo cantou não existir?
Afirmar que a vida tem sentido é propor a fantástica hipótese de que o
universo vibra com
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os nossos sentimentos, sofre a dor dos torturados, chora a lágrima dos abandonados,
sorri com as crianças que brincam.. . Tudo está ligado. Convicção de que, por detrás
das coisas visíveis, há um rosto invisível que sorri, presença amiga, braços que
abraçam, como na famosa tela de Salvador Dali. E é esta crença que explica os
sacrifícios que se oferecem nos altares e as preces que se balbuciam na solidão.
O que realmente importa:
A vida não é uma sonata que, para realizar a sua beleza, tem de ser tocada até o fim. Dei-me conta, ao contrário, de que a vida é um álbum de minissonatas. Cada momento de beleza vivido e amado, por efêmero que seja, é uma experiência completa que está destinada à eternidade. Um único momento de beleza e amor justifica a vida inteira. Tenho terror de ser enganado. Se estiver para morrer, que me digam. Se me disserem que ainda me restam dez anos, continuarei a ser tolo, mosca agitada na teia das medíocres, mesquinhas rotinas do cotidiano. Mas se só me restam seis meses, então tudo se torna repentinamente puro e luminoso. Os não essenciais se despregam do corpo, como escamas inúteis. A Morte me informa sobre o que realmente importa.
(Do universo à jabuticaba)
A Morte a única conselheira que temos:
"Odeio a ideia de morte repentina, embora todos achem que é a melhor. Discordo. Tremo ao pensar que o jaguar negro possa estar à espreita na próxima esquina. Não quero que seja súbita. Quero tempo para escrever o meu haicai. O último haicai é isto: o esforço supremo para dizer a beleza simples da vida que se vai. Como dizia o bruxo D. Juan ao seu aprendiz: “A morte é a única conselheira sábia que temos. Sempre que você sentir que tudo vai de mal a pior e que você está a ponto de ser aniquilado, volte-se para a sua Morte e pergunte-lhe se isso é verdade. Sua Morte lhe dirá que você está errado. Nada realmente importa fora do seu toque... Sua Morte o encarará e lhe dirá: ‘Ainda não o toquei’”. E o feiticeiro concluiu: “Um de nós tem de mudar, e rápido. Um de nós tem de aprender que a Morte é caçadora, e está sempre à nossa esquerda. Um de nós tem de aceitar o conselho da Morte e abandonar a maldita mesquinharia que acompanha os homens que vivem suas vidas como se a Morte não os fosse tocar nunca”.
A ideia de que o corpo carrega duas caixas – uma caixa de ferramentas, na mão direita, e uma caixa de brinquedos, na mão esquerda – me apareceu quando me dedicava a entender santo Agostinho. Pois ele, resumindo o seu pensamento, disse que todas as coisas que existem se dividem em duas ordens distintas. A ordem do uti (ele escrevia em latim) e a ordem do frui. Uti, “o que é útil, utilizável, utensílio”. Usar uma coisa é utilizá-la para se obter uma outra coisa. Frui, “fruir, usufruir, desfrutar, amar uma coisa por causa dela mesma”. A ordem do uti é o lugar do poder. Todos os utensílios, ferramentas, são inventados para aumentar o poder do corpo. A ordem do frui, ao contrário, é a ordem do amor – coisas que não são utilizadas, que não são ferramentas, que não servem para nada. Elas não são úteis; são inúteis. Porque não são para ser usadas, mas para ser gozadas. A tradição cristã tem medo das coisas que são guardadas na caixa dos brinquedos. Nessa caixa se guarda a origem do pecado: o prazer…
(Do universo à jabuticaba)
Pato selvagem:
Era uma vez um bando de patos selvagens que voava nas alturas. Lá de cima se via muito longe, campos verdes, lagos azuis, montanhas misteriosas e os pores de sol eram maravilhosos. Mas voar nas alturas era cansativo. Ao final do dia os patos estavam exaustos.
Aconteceu que um dos patos, quando voava nas alturas, olhou para baixo e viu um pequeno sítio, casinha com chaminé, vacas, cavalos, galinhas… e um bando de patos deitados debaixo de uma árvore.
Como pareciam felizes! Não precisavam trabalhar. Havia milho em abundância.
O pato selvagem, cansado, teve inveja deles. Disse adeus aos companheiros, baixou seu voo e juntou-se aos patos domésticos.
Ah! Como era boa a vida, sem precisar fazer força. Ele gostou, fez amizades. O tempo passou. Primavera, verão, outono, inverno…
Chegou de novo o tempo da migração dos patos selvagens. E eles passavam grasnando, nas alturas…
De repente o pato que fora selvagem começou a sentir uma dor no seu coração, uma saudade daquele mundo selvagem e belo, as coisas que ele via e não via mais: os campos, os lagos, as montanhas, os pores de sol. Aqui em baixo a vida era fácil, mas os horizontes eram tão curtos! Só se via perto!
E a dor foi crescendo no seu peito até que não aguentou mais. Resolveu voltar a juntar-se aos patos selvagens. Abriu suas asas, bateu-as com força, como nos velhos tempos. Ele queria voar! Mas caiu e quase quebrou o pescoço. Estava pesado demais para o voo. Havia engordado com a boa vida… E assim passou o resto de sua vida, gordo e pesado, olhando para os céus, com nostalgia das alturas…
(Ostra feliz não faz pérola)