Contos de amor
A Parte e o Todo
Ela estava nua, e com ela todas as suas cicatrizes. Estava só, e com ela todos os pensamentos que nela moravam.
Puxou a noite e sua negritude para cobrir sua nudez e bafos da madrugada para perfumar sua embriaguez de desejos e ainda continuava nua.
A noite era passageira e o silêncio que nela morava, parecia indefinidamente profundo, como um “segredo apaixonado".
Onde guardaria a caixa dos segredos apaixonados, que se debatiam, querendo sair a toda hora?
Eram apenas segredos e segredos divididos não eram mais segredos e de companhia também guardou o silencio na mesma caixa.
Guardava todos na gaveta do lado esquerdo, no alto do armário que pertencia ao quarto, onde ninguém revirava seus devaneios.
Amanhecia, anoitecia e, dentro da caixa, o segredo e o silêncio começaram a se desentender e faziam a caixa vibrar e o armário começou a reclamar que não havia paz para que continuasse ereto, firme em sua envergadura.
Ela abriu a caixa do lado esquerdo dos seus seios, tirou a paixão e a guardou junto com o silêncio e o segredo.
Eles ficaram extasiados com a sua magia!
A paixão era morna seus cabelos sedosos e suas mãos mágicas, suaves e sua boca desenhada, seu olhar era uma viagem ao desconhecido.
Por dias a caixa se acomodou. Mas, lá dentro uma guerra se anunciava: o segredo e o silêncio disputavam a paixão.
Um dia, o armário novamente reclamou. Ela o abriu e ele rangeu e pediu que olhasse a caixa dos segredos apaixonados.
Deles, soava uma música triste, partida, como se os acordes vibrassem o último Si Bemol de um final de melodia.
Pegou a caixa dos segredos apaixonados, foi até ao rio, onde as águas navegam e passam somente uma vez. Abriu a caixa e lá estavam: o segredo apaixonado partido, o silêncio irritado e inconformado e a paixão mendiga e maltrapilha.
Despejou todos no rio e viu que a paixão é descortinada e encachoeirada, o segredo partiu em confissão e o silêncio se despediu em tranqüilidade, descobrindo que a paixão não é amor, mas simplesmente o lado partido e a parcialidade.
Ela somente conhecera e se apaixonara por uma parte de um todo desconhecido.
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury
Envidraçada
Você disse: “Não me questione... nunca...”
Frase feita, determinada.
Mas, a cozinha era pequena com fogareiro de duas bocas, perdido sem intenção de nada e o pior, não havia cheiro e calor de coisa alguma.
Mas o aroma de seu beijo navegava em minha boca e eu precisava dar um jeito de digerir seu feitio.
Tínhamos que namorar. Peguei suas mãos ásperas para sentir seu movimento, sua energia e o modo que manipulava e você as retirou: triturei as cebolas e
Chorei!...
Olhei em seus olhos sem desviar, para descobrir qual era o seu tempero e a sua hora. Você desviou e duvidou e eu acreditei no Curry como condimento e companheiro.
Abracei você desavisado na sala e sussurrei amores e você desdenhou.
Fui à cozinha novamente, piquei as maçãs ácidas e verdolengas e percebi que estava em descompasso, não era a hora.
Na biblioteca, você distraiu na leitura sobre motores e aquecimento e observei sua atenção e namorei seu perfil e sua paz.
No quarto, sozinha, retirei o avental, pintei minha boca e desejei a mim mesma, paz e discernimento das verdades.
Voltei ao escritório e com segurança disse que estava tudo pronto.
Você, descansadamente, arqueou as sobrancelhas e perguntou:
—O que você fez hoje?
Respondi:
—Frango ao Curry.
E você. num silêncio mordaz, sentenciou:
— “Não como frango!"
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury
O Compasso do Vôo
Tocou um tango.
Ele levantou-se, saiu pelo salão, abandonou a mesa e a comunhão de todos que o cercavam e na multidão ele a viu; era ela todos seus dias, era ela todas suas noites.
Aproximou e disse:
— Dance este tango comigo.
Ela indignada com a transparência respondeu:
— Não sei dançar tango.
— Isto não importa, tango é uma dança masculina; comigo você não perde o compasso.
Ela levantou-se e viu o mundo em alto relevo descortinado acima de sua verdade.
Caminhou até o salão, petrificada, nem sabia como tocá-lo em público.
Ele providenciou o enlace. Pegou suas mãos úmidas e
geladas, segurou-as com firmeza e as trançou em seu corpo.
Ela sentiu seu movimento e desta vez não podia fechar os olhos, inalou seu cheiro sem poder beijá-lo, percebeu suas pernas fortes e não podia entrelaçá-las. E por um instante o vinho recém aberto a deixou tonta em um só gole.
Dançou, jogando seu ritmo nas batidas sufocadas suspiradas do bandónion.
Suspirou, puxou coragem e dançou aos olhos de todos. E no mundo emparedado ela viu o fio do prazer e com volúpia dançou esparramando todo seu desejo.
Neste instante, o salão foi inundado de um perfume fragmentado e indefinido da lágrima que escorre, do pensamento cheio de saudade, do prazer de sua voz e da incerteza do encontro frente à maciez do contato de seu beijo.
E todos perturbados com o banho de verdades em pétalas frente estes sentimentos, dançaram embriagados abraçando seus pares. E no amontoado esprimido do anonimato, eles os amantes, se perderam sem julgamento.
E nas asas do desejo e da imaginação emergiram na noite e no compasso fálico desse desejo onde mora a morna volúpia longe das paredes livres, perderam-se no horizonte em um vôo flutuante sem destino certo.
Onde a noite é suave ao adormecer, onde pairam e
pousam as almas amantes que se deitam para simplesmente amar.
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury
A Taça
Lá bem longe, onde o horizonte descansa e o vento faz a curva e a vista nunca alcança e imaginação descreve, tem uma cidade e no seio dela há um mercado que vende todas as intenções.
Há cheiros saborosos, paladares indescritíveis e ideias nunca despidas e negócios sem questão de pendências.
As portas se abriam ao último vento frio das madrugadas e se encerravam ao findar e ao tremular a última questão.
Junto ao burburinho ela adentrou a procurar algo mais que o destino guardara e o desejo não lhe proporcionara. Revirou não encontrou e na saída viu uma velha maltrapilha com uma taça cravejada de pedras preciosas, bordada com filigranas de ouro.
Teve piedade e se condoeu por ela, velha, sozinha e na sua bagagem somente a taça.
Foi depositar uma moeda em seu xale esparramado pelo chão e a velha sussurrou.
— Não preciso de esmola.
— Então me vende esta taça quanto custa? Quero ajudá-la.
— Quero uma morte digna, um teto cheio de palavras amorosas, ouvidos curiosos para que eu possa contar minha viagem e mentes sem julgamento para desdobrar minha bagagem.
— Mas o que esta taça guarda em segredo para que eu possa levá-la e a você em minha história?
— Se beber o que ela contém, terá a solução de todas as suas perguntas.
Respostas que nunca achará em livros e a inteligência de ninguém vai verbalizar para acalmar seu coração.
— Vou pensar, consultar as entrelinhas, volto logo.
— Estarei aqui, pode ir à diversidade desse mercado que não vai preencher seu coração.
Caminhou lentamente de coração vazio entre as sedas macias e esvoaçantes do mercado. Não se encantou com as suas cores alucinantes.
Colocou nos dedos anéis fabulosos de pedras facetadas e lapidadas mas que não contornavam nem de longe as curvas de sua insatisfação.
Observou os mágicos, mas sabia de todos os seus truques. Comeu quando o estômago desejou, mas não houve surpresa no seu paladar.
Sentiu o perfume absorvido de toda a ciência e alquimia, mas seus cheiros não descortinam nenhuma lembrança.
Ficou cansada, tinha que voltar, sua ausência estava expirando, voltou à velha:
— Eu compro esta questão.
E foram para casa e a viagem apenas começou.
Todas as manhãs, em sua cama profundamente macia em sua tenda com tudo o que era sua conquista, abarrotada de troféus dependurados e perfumados e os dedos cheios de anéis diplomados, bebia da taça e sua mente se abria, clareava e tinha a solução de todas as questões.
Mas o tempo soprou e as dunas mudavam de paisagem e o que era ontem, hoje tinha outra face e o que era absoluto ontem, hoje de nada valia e as questões iam e vinham, passavam mas não encontravam repouso, resolução não terminavam, caiam feito goteiras, cada dia em lugar diferente.
Ela se irritou; tudo tinha que acabar. Queria um mundo soprando fresco em sua face, absoluto, sem discussão de nada.
Foi à velha reclamar.
— Bebo da taça velha, todos os dias e quanto mais bebo mais goteiras perturbam minha calma, você iludiu meus pensamentos e minhas melhores intenções, onde mora a solução finita de todas as minhas angústias?
— Você tem que beber da outra taça.
— Onde está a outra taça?
— Eu bebi tudo o que nela continha e a manuseei tanto que ficou gasta, fina, transparente, trincou as bordas e a haste
esfarelou e virou areia que o vento do deserto sopra.
— Velha você me enganou e me vendeu ilusão. Qual a verdade que mora nesta taça ou vai me vender à prestações? Vá ao deserto agora e diga ao vento para juntar todos os fragmentos e monte outra taça porque eu quero beber dela.
— Isto é impossível! Não posso recolher palavras de uma vida, não posso relembrar de todos detalhes. Na verdade tudo que bebi habita comigo, me escute.
— Não tenho tempo.
— Então não tem sabedoria, "o saber” leva tempo saber: é uma consulta longa e o diagnóstico, a conclusão, é sem tempo exato.
— E o que faço com a senhora, a jogo nas esquinas?
— Eu sou taça, a sabedoria que você tanto procura não vai acalmar suas decisões e não vai ser taça se não me escutar. Vai ser areia triturada do deserto e nem vai saber onde ficar quando envelhecer: vai vagar, perambulando, rodopiando feito areia sem dar a ninguém o seu recado.
Tem que reescrever e solucionar todos os dias. Todas as horas. E o mundo vem, pisa em cima de suas intenções e você novamente reescreve. Deixa seu rastro. Sua Verdade. Sua Sabedoria. Sua persistência.
Por que quem vive muito, rejuvenesce nos ouvidos de quem escuta.
E o ou vinte amadurece.
Alcança cheiros, sabores, paladares indescritíveis, amadurece na procura e aprende que além dessa taça existe outra e esta não está à venda mas dela todos podem beber se você tiver fé na sua sabedoria.
Dentro dela há a esperança que encurta todos os caminhos.
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury
Sonhos aposentados (parte 01)
Seu marido havia morrido, nem sabia quando, em que dia,
de que jeito, simplesmente morrera, sem anúncio fúnebre, sem
santinho em branco e preto, morreu sem dores, anestesiado, acima
dos lamentos.
Agora ele vivia de alma emprestada.
Deus sabe de quem, esperando sei lá o quê, talvez secar
esfarelar, virar húmus, voltar a terra.
Quis ressuscitá-lo à vida, abriu as janelas que deram vista às
montanhas ondulando, pés de café para que ele percebesse o ciclo
da vida, mas quando chegava cerrava todas as ventarolas com frio,
muito frio.
À noite, deitava com as mãos geladas, cruzadas sobre o peito,
era seu único movimento, e de madrugada exalava de sua boca um
hálito esquisito de fundo de baú, cheirando a curtume.
Agora, esposa tinha certeza, ele havia morrido mesmo.
Ele levantava, dizia exatamente a mesma coisa, vestia as
mesmas roupas, os mesmos sapatos, as mesmas meias. Caminhava
pelo mesmo corredor ao trabalho, dia a dia, cumprimentava as
mesmas pessoas com as mesmas faces doentias, os mesmos assuntos
e recortava e dizia as mesmas palavras. Não acrescentava, não
diminuía, era linear, hermético, impermeável, morno, quase frio,
pois ainda não estava completamente morto.
Sua face endurecera, não esboçava nada, nenhuma estação,
era dura como porcelana. Seus cabelos caíram e ralearam, a pele
ficou manchada de pintas que mais pareciam pequenas necroses.
Passou a ficar pálido, leite, quase transparente, às vezes
custava a perceber sua presença translúcida.
A casa também começou a mudar lá dentro; um frio intenso
que toda criação, gato, cachorro, papagaio, passarinho e pensamento só
ficavam e chegavam até a cozinha, onde o fogo a lenha espalhava calor.
Não podia mais amá-lo porque o frio dele cortava-lhe a pele,
e o calor dela derretia seu corpo.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Quando se escreve
Fica-se nu.
Nu perante seus inimigos.
Nu perante as críticas.
Somente as letras nos vestem.
E os críticos
Céticos
Arrancam nossas vírgulas
Pontuam nossas angústias
E você fica nu
Indefeso
Sem alma
Sem arma
Somente exclamação
Com ponto de interrogação
Por que escrevi?
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Lagarteando
“Casei
Engrandeci
Achei que era eu
Dona de meu nariz
Agora
Senhora
Dona das minhas horas
Só eu não sabia
Que neste ensejo
Era outro fruto”
Aprontei-me, modifiquei o tom de voz para cara metade, dona do
mundo, de mim, dos outros em meu caminho.
Acima dos conselhos, arrastando outro sobrenome que nunca residiu em meu nome e escolhi:
– Qual carne, senhora!? Filé, contrafilé, alcatra, coxão-mole?
Pensando: ”coxão-mole jamais, nunca...”
– Que é isto aqui?
– Lagarto senhora.
– Tá bonito. Quanto pesa?
– Dois quilos.
– Pode cortar em bifes de um dedo de espessura (cara-metade gostava).
Pronto, dei ordem, criei coragem. E o pior, ele obedeceu,vendeu e eu comprei a idiotice.
Aprontei a mesa, taças com haste longas, toalhas de linho, porcelanas dos antepassados, purê de batatas com queijo roquefort à luz de velas.
Frigideira ao fogo, azeite espanhol para fritar e os bifes de lagarto, com um dedo de espessura enrolaram como orelhas.
Comemos só purê com vinho tinto, culpei o açougueiro e o cachorro passou bem.
As velas derreteram, me envolvi no calor de apaixonar.
Minha sogra não viu, e nesse andamento, não revirou meu lixo. Sucesso apaixonado e estendi minha receita com proveito.
E o dia alvoreceu em paz.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
A perversidade
Tinha ido ao mercado naquele dia para comprar balangandãns e trama para enfeitar-se no dia do casamento.
Andou,procurou,escolheu e se adornou das melhores peças. Chamaria mais atenção do que a prometida.
De volta para casa notou-se seguida por uma mulher vestida de cinza, de olhos devoradores.
Esgueirou-se pelas paredes curvilíneas da circunferência das ruas, onde as corujas já confabulavam com o anoitecer.
O medo apertou e, na soleira iluminada da porta de alguém desconhecido, parou dominada pelo receio.
O imaginar derramou e observou a rua pacata corcoveando solitária nas sombras do crepúsculo.
Apressou seu caminhar agarrada às suas compras.
A lua iluminou seus passos e avisava que as horas se passavam apressadamente.
Urgiam, latejava em sua aura o temor.
Avistou sua moradia e mesmo atrasada seu coração aquietou-se. Chegou, pôs a chave em casa, entrou e ela apareceu entre as grades do portão vestida de cinza, de olhos vorazes, se ofereceu com voz macia.
Sua presença imaginária anunciou:
– Esqueceu-se do perfume senhora.
– Não quero mais nada, já basta.
– Nada é falta, compre minha essência.
E ela comprou a profundeza dos cheiros.
No dia prometido perfumou-se de ausência e madrugou morta.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
O medico e o escritor
Era uma vez, na perdida do tempo, se encontraram o médico e escritor.
E na lasca do destino sentaram-se juntos e formataram uma prosa.
E no dialogo, ao findar da noite, perguntaram-se:
– Me esqueci, o que você faz mesmo? O outro respondeu:
– Eu curo os defeitos do homem, sou médico.
– Você cura o quê?
– Os enfermos.
– Quais enfermos?
– Enfermos do corpo, os do espírito somente Deus cura. E você, o que faz?
– Eu escrevo o pensamento do espírito, a ilusão, palavras de sentimento, a percepção das pessoas perante a vida.
E o médico diagnosticou:
– Então, concluindo, somos todos enfermos! Eu vendo o diagnóstico e você atravessa com palavras de consolo.
– Não, doutor. Deus nos criou perfeitos, a concepção nos fez imperfeitos.
– Então, para ser medico também tem que ser escritor. O literato respondeu:
– Há várias formas de cura, a física e a espiritual.
– Então o que nos une no mais profundo?
– A dor é o que nos prende. Você, médico, acalma e silencia esta dor. O escritor roda no escrever sobre o caminho delineado do existir. De onde “derivou” a dor, as expressões enfermas, a “trajetória agonia” do quotidiano que gera toda a moléstia.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Substantivo imperfeito
O Diabo resolveu ser contemporâneo e fez uma plástica capilar em suas madeixas revoltas. Nada difícil para quem estava acostumado ao cheiro de enxofre. Inalar formol, domar cachos era fácil, somente para ficar plano e formoso.
Decidiu ir ao salão e modificar.
Horas, mais badaladas e promessas do “deus penteador” o irritavam. Para distrair... fez as unhas.
As suas “manicures vampiras”, famintas de “bifes” com o oráculo
edificado na “Romênia” o espetavam.
Paciência sempre foi qualidade infernal e se deitou com ela.
Após seco, o comentado cabelo deslumbrou ao espelho como “Narciso”.
Retificação espelhada em todas as direções, o espetáculo estava nas
ruas.
Era só esperar as considerações.
Cabelos mais escorregadios do que asas de anjos encharcadas. Dormir suspendido como morcego e não amassar o pelo era o único dever de casa.
Mas a vaidade era o pecado que o Diabo mais apreciava.
Exibir a sua tentação achatada e lisa comeria de cobiça os desavisados ao inferno.
A inveja faria sucesso junto aos discípulos mais crédulos. E o Diabo matou alguém por impaciência.
No dia do enterro, só para se exibir, apareceu seguro de seu penteado pensando no sucesso.
Somente o defunto o reconheceu tão falso.
E partiram do planeta, enterrados e irreconhecíveis por instantes naquele dia.
Com todos os diabos universais atrás tocando viola.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
A roupa dos dias
A elegância sempre aparecia silenciosa.
Não disputava com as cores dos dias nem com o brilho dos céus em tempos de proclamo.
A elegância é muda.
Modificava de estação e nunca de alinho.
Misteriosa e sem explicação.
Discreta e sabiamente sensacional, a elegância tinha seu espaço sem brigas no mundo interrogado.
Ardilosa era a verdade desvestida.
Sem medos e sustos desfilava com finura.
Era mágica, emblemática, sem artifícios.
Acordava faminta e dormia com todas as dúvidas sangrando.
Não, nunca, jamais queria ser reconhecida e seu caminho de fuga era desaparecer.
A elegância induz sem duelos.
O artifício era ser semelhante e macia, como um idêntico caçador. A elegância não era loura nem trigueira, transpirava calada e nos encontramos.
Meu coração não acelerou, a pressão permaneceu inalterável, o estômago não borbolhetou anseios, inalterou e persistiu no mesmo lugar.
Fiquei a olhar se aproximar toda emudecida, sucumbindo ao total silêncio.
E todos os ares emudeceram, a elegância estampou serena, densa e indissolúvel.
Tinha os olhos pequenos, obliculares, maquiados de preto.
No mimetismo que a escondia ela desfilou manchada por segundos,
com cuidado entre as burcas do capim cerrado. Tive inveja do ser bicho.
Onça.
E o animalesco da covardia em mim passa a permanecer e desafiar
a benevolência, somente aspirando bom gosto.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Deserto
Nos morros esculpidos pelos ventos, nas mais altas fendas do Jalapão, a Princesa existia.
Presa em um Castelo cheio de ecos onde esquadrinhava a sua solidão.
Jamais descia.
Escondia-se com receio dos bichos que uivavam, rastejavam e se metarfoseavam junto ao capim dourado.
Do alto avistava as caravanas que contornavam as dunas à procura de sombra abaixo do chapadão alaranjado de arenito.
Ouvia os murmúrios dos preparativos do pouso, admirava a pequenas fogueiras iluminando a jalapa em chão de estrelas rastejantes.
Ao dia a savana dourada era castigada pelo vento indomável que carregava grãos de areia em constante combate.
Tinha desejo de descer, pisar naquela areia alaranjada, correr naquele silencioso esmagando o capim que choraria em seus pés estalando lamentos e rugidos.
No Castelo havia somente uma entrada.
E seus contornos e arrabaldes transpunham em curvas e corredores sem saídas obscuros para confundir estrangeiros.
Vivia ali sem nenhuma lembrança do passado somente do presente. À noite o Príncipe chegava carregado de conquistas e presentes alucinantes e ela viajava bem longe em seus verbos.
Na madrugada ele roubava seus sonhos durante o sono. Retirava seus aromas, as cores, suas noites enluaradas e o frescor de seu corpo banhado na alucinação dos rios.
Passou a Princesa a sofrer de nostalgia, de inquietude dolorosa, num choro calado debatendo-se com a sua imaginação.
Não havia superfície em sua vida, tudo era fundo e inatingível. Lembrava-se só das fogueiras estalando no lanço do isolamento das noites.
Tinha, portanto, um Castelo sem sonhos, janelas semicerradas e portas herméticas.
Passou a ficar extremamente branca, enluarada na cor onde se via seu mapa angiológico, desenhado, pulsando em suas veias.
Sua voz passou a ficar vigorosa, com ares de sufoco e repetir desejos. Diziam que a sua formosura estava pregada nas paredes da jalapa e respondia ao chamado dos curiosos.
– Princesa, onde estás? E no eco ela respondia:
– Onde estás?
Quando a caravana passava, abria suas tendas, nas sombras das noites insones, sua lenda sobressaltava junto à lua cândida.
E na placenta do imaginar ela nascia como alma de ilusão de quem deseja habitar na fantasia.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Um lugar... Com aspiração
Quando o mês de Julho chegar, estarei com vocês.
Quando Setembro anunciar, verei as Cavalhadas de Corumbá de Goiás pela primeira vez.
Quando Dezembro espalhar, ficarei na praça debaixo do flamboyant, me escondendo das tardes em choro, das chuvas mornas encharcando meus cabelos.
Estarei submersa na terra. Sentirei seu cheiro.
Acalmando minha ansiedade. No fruto de minha gente.
E nas estações, meus pensamentos constroem pontes de uma viagem internacional ao Corumbá de Goiás, todos os dias, incessantemente. E não me canso, me frustro.
Verei Anita já crescida, dançando em sapatilhas de ponta. Victor apaixonado pela certeza das horas.
Amarei as minhas orações desnudas e farei promessas a Nossa Senhora da Penha.
Ela me ouve.
O ensaio das vozes do coral irá convidar retumbar em minhas janelas e de meus olhos trincados escorrerá balsamo.
Virarei histórias na voz de todas minhas tias.
Amarei o jiló da horta de minha casa, onde Sebastiana plantou e Narcisa aguou.
E tudo aparecerá novo e inconfundível em minha memória.
As corujas visitarão meu alpendre e ficarei admirada com sua
elegância reservada.
Acordarei cedo e irei contemplar a neblina do planalto central. Admirarei as mangueiras retorcidas, centenárias, os muros de adobe, e não me sentirei invadida, namoro a minha solidão.
Vou cozinhar esta ideia, servir a todos com guariroba e pequi na margem arborescida do Rio Corumbá no cerrado.
E dizer que amar é acolhedor, descansado no silencioso do Goiás. E minha saudade acordará do choro de mil dias.
Se navegar, acontecer, a Deus pertence, mas aluguei na vida, momentaneamente, de passagem, enquanto existir um lugar para amar.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Inundação
Naquela noite todos os planetas densos estavam alinhados. Dia de muita oração pela natureza.
O clima estava revolto e quando seu temperamento espalhava carregava tudo em seu caminho.
A refeição foi minguada pelo medo e no calor do fogão despejou uma acalorada discussão.
Todos escolheram vestimentas de bicho para embarcar na Arca do Patriarca Noé.
Uns vieram voando nas asas, águias, corujas e beija-flores.
Dos mares desafogados das ondas, os polvos, as pérolas, as dançarinas águas-vivas, de peixes coloridos, golfinhos, baleias e, das profundezas abissais, os moluscos.
Sem brigas, os impertinentes os insetos vieram de carona.
Os mais domésticos e disciplinados apareceram nos gatos, cachorros e nos elegantes cavalos.
Selvagens, indomados e desconfiados os macacos, as onças e os
lobos embarcaram sorrateiramente.
Se ficar alguém, Deus perdoa ou opera aparição nos milagres.
Quarentena.
Dias e noites.
Tormenta nos mares. E chuva cessou.
A nau encalhou no destino certo.
Todos desembarcaram aflitos e desapareceram onde a terra flutuava.
E alguém reclamou.
– Não desembarquei, me deixaram!
– Em que bicho se vestiu?
– De bicho feio.
– Qual?
– Urubu
– Mas por quê?
– Ninguém caça ou persegue o urubu, voa solto e livre pelos céus. E ainda faz a limpeza da carniça que deixaram pelo caminho, do que foi imaginado. O mundo não vai acabar hoje. Vamos jantar em paz.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Canto às 23:50
Uma rotineira tarefa, executada em hora incomum .
Enquanto distraio-me com um pequeno fardo de obrigação, a familiar sensação de não estar sozinho me visita.
Meus olhos fixados ao nada se mantém da mesma forma, enquanto que, ao redor, algumas vozes entoam melancólicas uma canção indefinida.
A Lua, sedenta, ilumina os espectros dançantes daquela que manipula minha mente e guia-me ao profundo desconforto de estar em companhia, uma que não se prevê, uma que indesejamos, acercam-me enquanto se aproximam. Ainda que com risos de zombaria se destacassem, banhados em lágrimas e sangue aqueles seres estavam, tentavam afogar-me no mar de vozes, mas, no mesmo lugar meu corpo se mantinha, pois um brilho impetuoso em meu peito não cedia às forças de todas aquelas mãos, puxando-me pelos pulsos. Nada conseguirão, tento crer.
Os espectros, enfim, aos abismos da escuridão se encaminham, até que uma última voz, sozinha, encerra seu cântico em forma de lamento, uma voz tão expressiva, que permitia visualizar-se, estendendo sua mão, caindo, desaparecendo.
Havia ido tarde tal devaneio, ou estaria para mim, tarde demais para tentar estender a mão àquele que caía, trazê-lo para longe dos cânticos da amargura?
O relógio acusa...
Meia-noite, silêncio descomunal.
O Décimo - Primeiro Dedo
Era uma vez, uma mulher que tinha guardado em si um segredo. Como a palavra indicava, era silencioso, deitava no mistério.
Mas quem guarda um segredo e não resgata o enigma
fica infeliz, doente.
E o imaginar veio como acalento e cirurgia para sua alma
...transformou-se em caneta, tenra, macia, perspicaz e mordaz, transformando tudo em verso.
Mas o verso é masculino e falou com a imaginação:
– Quem sou eu que visita esta página?
E a imaginação respondeu:
– Você é meu desejo, meu mundo e agora vou transformar-te em realidade.
E o segredo se escondeu, a realidade estampou, o tempo absorveu o perfume e a existência percorreu as ruas e labirintos desesperado como urgência.
E nesta briga a estação passou e o ser caneta não se
cansou, roncou tudo e virou o escritor, o artífice.
A fantasia é feminina.
Em paz com a realidade.
Quer ser verbo e decifrada como o décimo-primeiro dedo dominado pelo imaginar.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Rita
Rita ficou brava e, numa correria que a raiva desperta subiu onde o pensamento não aliança e ficou lá como alma penada, a chorar acima na comunheira da casa.
Chorou os minutos.
Chorou as horas.
Chorou por dias.
Os meses.
Longos anos.
Chorou tanto e por resumidos até que alguém percebeu que o choro amoleceu o pau da comunheira.
As paredes derretiam, aí notaram que lá estava Rita a chorar e ia fazer a casa desabar.
Como fazer, era rezar para Nossa Senhora do Pilar para calar seu choro.
Mais oravam, mais choro caía.
E a casa dissolvia lentamente sem solução. Rita na comunheira da casa a lacrimejar.
E o pior, agora rangia, trepidava raiva e vergava os paus da construção.
E a casa deteriorou, desmanchou.
E todo mundo abandonou o que era uma construção. Ficou a casa ali vergada, desabitada
Por anos.
Até que alguém teve a graça de falar da desgraça com Rita.
Amassar a argila onde suas lágrimas se derramaram. Deus fez o homem do barro sem as lágrimas de Rita. Era tempo de magia, reconstruir.
Rita, desistir de ser lamento e assombração de um passado que se despedaçou sem lembranças, banhado de tanto chorar.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Cercados
A idéia feita na ilusão em acreditar na capacidade de vivermos sempre em comboio, trombando uns com os outros...
...assim, feito barulho provocado pelo ranger do atrito nos trilhos, lustrando nossa carga de paciência cada vez mais longa, numa simetria infinita e solitária.
Vão ficando vagões cada vez maiores, se amontoando ao longo da penosa existência, deixando tudo de ser
paraíso para
morrer na fina linha que retorce nos trilhos.
Desgastadas e tortas.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
23 de outubro.
Era um dia tranquilo, é calmo como outro. Ele sentado em uma mesa e ela numa outra. Ela então olha para ele, ele sem o menor pudor, olha para ela. Queria o destino pregar uma peça neles, ela com a iniciativa jamais vista por ele, lhe pergunta-“Eu acho que eu te conheço de algum lugar”. Ele sem graça responde pode ser que seja de algum lugar. Após esse momento rápido como um relâmpago, ele sem graça pela beleza dessa moça, volta aos seus afazeres. Sem graça pela tamanha beleza da garota. Não obstante, ela no seu local continua com a sua rotina. Ele com um conflito interno decide pegar o telefone dela. Ela no bom tom e simpatia cede aos encantos e ao humor dele. Após uma breve conversa, ele na ânsia de se tonar o centro da história da vida dela acaba por mentir. Mentira que no primeiro momento parecia ser quase uma verdade, pois outrora ele já tinha vivido isso na sua infância. Ela rir, é o tempo passa rápido como se fosse um trem. Ambos, se despedem. Mau ele sabia que isso iria mudar tudo. Com o tempo, ele sem graça por tudo que tinha acontecido, não manda mensagem e fala com ela, mesmo que no coração o desejo adia como um fogo no meio da palha. Por fim, trouxe o destino um tempo longe, é ele cada vez mais se apaixonava pela a moça que outrora tinha conhecido. Ela continuava com a sua vida. Passado o tempo, eles mau se via. Até que um dia ele decide tomar a iniciativa e conta toda a verdade. Até que: Ele descobre que ela tinha um relacionamento. Ele sem graça, se afasta e para tentar esquecer tudo, se envolve com uma mulher mais velha e experiente, daquelas mulheres sofridas que ao longo da vida vai adquirindo experiências e mais experiências. Um dia ele conta a verdade para essa mulher, que sabendo que ele não a amava. Destrói todos os seus sonhos. Ele desconte da vida. Se afasta de tudo e de todos. Até que um dia, daqueles em que só o destino prega, ele a ver, deslumbrante como sempre. Porém, acompanhada, ele em uma bicicleta quase caí. Mas, sabia que se caísse, seria porque a teria visto, ele sem saber o que fazer, apenas a olha, como se fosse a última vez que a teria visto, ela com aquele olhar penetrante, olhava como se quisesse dizer algo. Por fim, os dois se distanciam. Passado o tempo, ele ainda pensando naquilo, se envolve com outras meninas. E cada vez mais e mais, arrumando encrenca para sua cabeça. Pois, sempre perguntado. Ele respondia: “Eu gosto de outra menina”. Elas sempre furiosas, e com a devida razão. O machucava. Passado o tempo, lá vai o destino fazerem se encontrar novamente. Dessa vez, em um ambiente se luz, ela toda singela, diz:” Oi” e ele complementarmente sem jeito é travado. Não consegui responder.Ele por dentro e com vergonha de não poder ter correspondido, se destrói por tudo que aconteceu. E depois disso, passa o dias. Até que vai chegando as férias, é num local que outra eles tinham se conhecido. Lá estava ela, toda produzida como uma deusa. Daquelas, que o roterista de cinema fazem. E ele sem graça, ao vê-la e ela toda tímida ao encontrá-lo. Como num filme, ou melhor como numa novela eles sem veem. Ele com os seus amigos sem graças. Ele maravilhosa no recinto. Naquela noite o dia parecia o apocalipse, onde anjos e demônios guerreavam por causa dos dois. De um lado, a vida passando como se fosse o juízo final. E na mente dele. Como se todos os seus pecados tivesse vindo á tona. E ela toda feliz pelo seu momento. De um lado, o céu é o inferno se desafiando. Do outro, uma deusa no recinto toda deslumbrante. Ele perdido no meio da guerra como se tudo não passasse de um teste. Observava ela como se tivesse na frente da mais linda flor do mundo. Ele enfatizado e ela deslumbrante como rosa. Naquele dia o mundo tinha parado. O universo não fazia mais sentido e tudo que ele poderia fazer é ir até ela. Mas, o mais que ele conseguiu foi dizer: “Você está muito bonita”. O dia acabou e eles seguiram cada um para o seu canto. Ele decepcionado por não ter encontrado mais ela. Resolve, ir para um local distante de tudo e todos. Lá ele encontraria a paz que ele buscava. Mas, quis o destino que eles se encontrassem. Na mistura de sentimentos e desejo ele tenta marca um encontro. Mas, o destino ri da cara deles. Dessa vez deu tudo errado. Frustado! Ele tenta de tudo para encontrar e sempre alguma coisa acontecia. Até que ele retorna para sua antiga vida, frustrado e lembrando dela. Passado os dias, quis o destino que eles se reencontrassem, mais sempre algo ocorria, é ele começa a sofrer com os seus pecados, na mistura de sentimentos, de paixão, traição, dúvidas. Pois, como pode? Dizia ele. Na ânsia para se igualar ela, ele entra numa aventura. Pois, para ele, ele só poderia te ela. Se ele chegasse no mais alto que o homem pode ter em uma classe social. E começa uma peleja, ele inteligente e lerdo, elabora um plano, que dê certo modo é muito bom. Mas, quis o destino pregar mais uma peça e ele cai em um golpe. Se saber o que fazer é perdido, ele…
O conto de fadas da sua vida
Era uma vez uma linda moça que perguntou a um lindo rapaz:
- Você quer casar comigo e juntos sermos felizes para sempre?
Ele respondeu de maneira bem objetiva:
- Não!
E mesmo assim a moça viveu feliz para sempre, e o rapaz também!
Ambos saíram de suas torres, e cada um para um lado, foram viajar, conhecer outras pessoas, visitar muitos lugares. Ele foi morar na praia, ela já preferiu a cidade grande. Ele terminou a faculdade, trabalhou muito, comprou um carro, mobiliou sua casa. Ela terminou seus estudos e não quis fazer faculdade, mas conseguiu um bom emprego, financiou um apartamento e comprou uma moto. Como sua audácia e criatividade sempre a fizeram se destacar em tudo que fazia, conquistou muitas outras coisas. E ele também! Sempre estavam sorrindo e de bom humor, nunca lhes faltavam nada, bebiam uns drinks com seus amigos sempre que estavam com vontade e ninguém mandava neles.
Mas a vida não foi esse conto de fadas tão lindo e perfeito. Enfrentaram dragões e florestas escuras pelo caminho. Lobos em pele de cordeiros e bruxas tentando os envenenar. Tiveram algumas perdas, e às vezes não conseguiram acreditar em si. Até pensaram em desistir de seus sonhos. No entanto, perceberam que não haveria um gênio da lâmpada para lhes conceder seus desejos e tudo que quisessem haveria de ser conquistado com o próprio esforço.
E, assim, os dois jovens seguiram em frente, contando suas próprias histórias, escrevendo suas narrativas em primeira pessoa. Descobrindo que o seu amor verdadeiro, são eles mesmos, para todo o sempre!