Coleção pessoal de viniciusmarciotto
Tempo
Era tudo trevas
Sem caminho para ser trilhado
Talvez, se eu me virasse,
Perceberia que estava enganado
Mas, para trás, não se olha,
Sim, sempre à frente
E o caminho, de fato, se fez
"É bom encontrá-lo novamente"
Como outrora, a esfera de luz aparece e se corrompe
Dando forma àquele que sempre a interrompe
Tu, tinhas minha pele,
Minhas cores, meu corpo, minha face
Era como se, no espelho,
Meus próprios olhos, encarasse
Isto porque, tu és Tempo
E tudo que de ti veio, a ti retorna
Corpo, alma, breve devaneio
Que ao pó se reduz e passado se torna
Tu és o Tempo
Tens tudo que é físico, a ti pertencemos
Ainda que com um futuro nos presenteie
Contigo viemos, e a ti, voltaremos
Canto às 23:50
Uma rotineira tarefa, executada em hora incomum .
Enquanto distraio-me com um pequeno fardo de obrigação, a familiar sensação de não estar sozinho me visita.
Meus olhos fixados ao nada se mantém da mesma forma, enquanto que, ao redor, algumas vozes entoam melancólicas uma canção indefinida.
A Lua, sedenta, ilumina os espectros dançantes daquela que manipula minha mente e guia-me ao profundo desconforto de estar em companhia, uma que não se prevê, uma que indesejamos, acercam-me enquanto se aproximam. Ainda que com risos de zombaria se destacassem, banhados em lágrimas e sangue aqueles seres estavam, tentavam afogar-me no mar de vozes, mas, no mesmo lugar meu corpo se mantinha, pois um brilho impetuoso em meu peito não cedia às forças de todas aquelas mãos, puxando-me pelos pulsos. Nada conseguirão, tento crer.
Os espectros, enfim, aos abismos da escuridão se encaminham, até que uma última voz, sozinha, encerra seu cântico em forma de lamento, uma voz tão expressiva, que permitia visualizar-se, estendendo sua mão, caindo, desaparecendo.
Havia ido tarde tal devaneio, ou estaria para mim, tarde demais para tentar estender a mão àquele que caía, trazê-lo para longe dos cânticos da amargura?
O relógio acusa...
Meia-noite, silêncio descomunal.
Tu
A luz é tão intensa que lhe queima
A escuridão é fria, e lhe conforta
Mostra-lhe a porta
Energia, em alguns momentos, independe do que a constitui
Solitude lhe fere e cicatriza
Sangra os venenos da falsa presença
Ausentar-te com tuas dores e compreende-las
Antes que lhe envolvam e te faça refém
Daqueles que vivem como convém
Esvai-se o poder de encarar a realidade
Conformidade, o vil valor
Mas as algúrias da carne ainda os encontram
Pungindo os tecidos repletos de auto-amor
Enquanto escondem aqueles que já se tornaram invisíveis
Para: As 7 Pessoas com quem Sonhei
Leia uma carta
Para: Você... Uma última vez
Sinto muito decepcioná-lo, caso não lhe agrade meus escritos, mas haviam de ser feitos. "Tuas cartas nunca hão de ser entregues" podem pensar, mas discordarei, se esta estiver sendo lida, significa que todas as outras chegaram a seu destinatário. Tu, leitor, és a última pessoa com quem sonho, então, se estiver lendo isso, eu consegui. Quebrei a parede que me impedia de abraçá-lo com minhas palavras, ainda que não mais seja capaz de vê-lo.
Cada um daqueles que conheci, são como preciosos botões de rosa, puros e únicos, com tuas próprias cores e perfumes e, minha missão, era agradecê-los por compartilhar-me teus valores. Encontro uma forma de entregar tais cartas, através de ti.
Despeço-me agora da Rosa Azul, que anunciou-me os caminhos para a cura do coração. Digo adeus à Rosa Amarela, que ensinou-me que formatos mudam e escuridão pode se tornar luz, em um ciclo imparável. Adeus à Rosa Lilás, que desprendeu-me de minha Máscara com a pureza de sua sinceridade. Adeus à Rosa Branca, que mostrou-me a beleza do Mundo visto de outros ângulos. Adeus, Rosa Laranja, que mesmo no confinamento da solidão, fez arder as chamas da Esperança, almejando a Liberdade. E adeus, Rosa, que entregou-me os caminhos para a realização de meus sonhos, desprendendo-me de ti e de tuas barreiras. Vós trouxestes o brilho de volta a essa Rosa Negra, que quando perecia, lembrou-se das cores das pétalas que todo o tempo indicaram o caminho à paz.
Graças a ti, a cada pétala vermelha espalhada pelo mundo, encontrarei aquele que amo, cuja alma repousa humildemente em um coração recém-desperto. Corações são na verdade universos, e as chaves, são essas cartas. Cultive as Rosas dentro de si, e os mais grandiosos portões virão à tona. Agora, tu tens as chaves.
Toda vez que as impurezas do mundo lhe fizer sentir que és insignificante, e que não conseguirá encontrar o caminho, lembre-se: Tu és raro e único, como os sonhos brilhantes de uma criança. Por mais que tentem tirar tuas pétalas, tua cor permanecerá intacta, vibrante aos olhos que deleitam e envolvente aos corações que a presenciam. Hoje, cumpro minha missão, meu sonho: entregar minhas cartas a seus verdadeiros destinatários; as Rosas dormentes nos corações que ainda não as conhecem e despertas nos corações daqueles que as cultivam.
Se um dia encontrar e ler estas cartas, quero deixar meus sinceros agradecimentos. Que minhas palavras enraizem em teu coração e nunca sejam levadas pelo vento, pois és o sonho mais vívido que tive o prazer de vislumbrar. Espero-lhe no fim do caminho.
Para: As 7 Pessoas com quem Sonhei
Sente-se aqui
Para: O Tempo
Algo estava desconexo. Algo estava me falhando à memória. Havia eu esquecido algum detalhe? Não sabia. Estava perdido.
Andando pela sala da mansão de Lúcia, encontrei Laila em frente à lareira, outra vez. Disse "bom dia", mas ela sequer respondeu. Andando pouco mais, até a cozinha, Lúcia estava de costas, no fogão. Toquei seu ombro, mas, ela não se virou. Perguntei-me se algo como um sonho pudesse estar acontecendo, por isso, decidi caminhar até os corredores.
Para minha surpresa, outra vez encontrei Luna sentada à janela, mas, assim como as outras duas, ela parecia não me ver. Sua mão direita apontava uma porta à sua frente e seu rosto, era inexpressivo. Sem muitas opções, dirigi-me até lá.
Ao girar a maçaneta e empurrar a porta, encontrei sentado em uma cadeira, com os pés sobre a mesa, eu mesmo, encarando meus (ou seus) olhos. Era você. Dei alguns passos para trás, assustado.
"Eu não entendo... O que é isso? O que está havendo?"
Confuso ao ver levantar-me da cadeira e andar em minha própria direção, congelei, apenas esperando o que havia de acontecer. Você tocou minha face com as pontas dos dedos e declarou:
"Tais coisas são complexas àqueles que são escravos do Tempo. Permita-me libertá-lo de tuas correntes"
Meus olhos assim se fecharam, enquanto minha boca automaticamente proferia em uníssono com a tua, as imagens que presenciara, transcedendo as noções de tempo e espaço:
"Era tudo trevas
Sem caminho para ser trilhado
Talvez, se eu me virasse,
Perceberia que estava enganado
Mas, para trás, não se olha,
Sim, sempre à frente
E o caminho, de fato, se fez
É bom encontrá-lo novamente
Como outrora, a esfera de luz aparece e se corrompe
Dando forma àquele que outrora a interrompe
Tu, tinhas minha pele,
Minhas cores, meu corpo, minha face
Era como se, no espelho,
Meus próprios olhos, encarasse
Disseste que a ti, havia de devolver
Para que as dores da vida,
Fosse capaz de esquecer
Mas então, ao tocar tua mão
Tudo, outra vez se dissipou
E nos leitos de meu fim, outra vez, o corpo vazio se levantou"
Minha visão outra vez retornara, embora não abrisse os olhos. Em minha frente, meu corpo ainda me encarava, com um sorriso aconchegante e olhar amável. Afagava-me agora tua presença, e enquanto flutuando, sentia um conforto inexplicável.
"Estava sonhando" - Falei, ainda que não movesse nenhum lábio.
"Não mais importa o que havia sido, apenas, o que é" - Respondeu, calma e suavemente
Pensei em lhe questionar sobre aquele que se foi, mas, antes de sequer questionar, fui respondido:
"Aquele que se foi lhe aguarda ansiosamente. Não importa se era, é, ou há de ser. Estais aqui, diante de mim, por outro motivo: Sei de seu sonho e quero que o realize. Ele tem a chance de trazer luz ao Mundo, curá-lo da doença que o infecciona".
Enquanto tentava falar, percebia que não mais produzia sons. Sequer, podia escutar, mas, ainda assim, sentia as palavras daquele à minha frente, que outrora, havia chamado de eu.
"Tuas feições aqui ficam, mas, ainda sois tu, ainda tens algo a dizer e lhe dou essa chance. Não importa quantas barreiras ficam à sua frente, como disseste sobre outra face de mim, meus ventos derrubam tuas paredes. Então vá e não tema, sois de mim e sou de ti. Sabes o que fazer".
Para: As 7 Pessoas com quem Sonhei
Mas, nunca se perca
Para: Alguém
-"Não consigo... Não consigo..."
Tua voz ecoava naquele quarto. Não conseguia vê-lo graças aos animais de pelúcia gigantes de olhos vermelhos, rasgados, espalhando seus estofamentos por todos os cantos.
Apesar das cores dos arco-íris estampados nas paredes e dos sons da caixa de música, a tensão do local não me permitia ver algo infantil ali. Mesmo sua voz, parecia grave e assustada. Continuava andando e te procurando, para tentar entender o que acontecia. Foi quando percebi: Os olhos vermelhos das pelúcias acompanhavam-me por onde eu andasse. Corri até passar por um coelho branco gigante, mas, os olhos me acompanharam mesmo quando estava às suas costas. Os bois, os gatos, os cães, pareciam olhar para uma presa encurralada, sedentos, mas, nenhum deles se movia.
"Não consigo..." - Mais uma vez, consegui ouvir tua voz. Dessa vez, compreendia o que lhe assustava e também fui capaz de perceber tua localidade através do som. Lhe encontrei, abraçando teus próprios joelhos, encolhido em um canto escuro, não por falta de luz, mas sim, por algo que parecia foligem, como se um incêndio tivesse ocorrido.
Completamente sujo e coberto de queimaduras, segurava com força um brinquedo com o formato de uma águia dourada. Coloquei minha mão sobre seu ombro e tentei chamar tua atenção:
"Oi, você está me ouvindo?"
Mas, você apenas continuava:
"Não consigo... Não vou conseguir..."
"Sabe onde estamos? Como veio parar aqui?" - Tentei outra vez, sem resultado. Segurei seu rosto e olhei no fundo de seus olhos castanhos vazios, para que não tivesse escapatórias - "Eu quero ajudá-lo, mas, você tem de parar de ignorar minha presença"
Finalmente voltando sua atenção a mim, você pareceu furioso. Teus olhos, outrora escancarados, agora pareciam gritar juntos de sua voz, que disse:
"Sequer sabe como veio parar aqui e crê ser capaz de ajudar-me? Santa é a ignorância que parte de ti!" - Respondeu em um berro, se levantando e finalmente saindo daquele transe.
"Se sabes como viestes até aqui, por que não retorna por onde veio?" - Retruquei, irritado
"Não tenho mais elos com o mundo carnal, assim como qualquer um que desencarne..."
"Como assim?" - Ainda mais confuso que outrora, tornei-me insaciável por respostas que, ainda não sabia, mas, jamais iria encontrar.
"Estou morto, não percebe? Não vê o sangue sob seus pés ou espalhado pelas paredes?" - Após suas palavras, fui capaz de vê-lo. Tais cores sim, eram vívidas, como os olhos das pelúcias que ainda nos encaravam. - "Este é meu purgatório, não conseguirei sair daqui nunca mais e não sei como veio parar aqui. Talvez seja um intervalo de meus devaneios malfeitores, para eu sucumbir mais facilmente quando partir." - De repente, o coelho gigante levantou-se, revelando garras em seus dedos e presas afiadas em sua boca.
"Não deves sucumbir. Sei que consegues lutar com esses seres, vi seus enchimentos espalhados por esse quarto. Você conseguirá derrotá-los" - Argumentei.
"De fato, sou capaz de combatê-los, mas sair daqui, continuará sendo impossível, ao menos, por enquanto. Ao menos, a mim."
"Quer dizer que sabe de um caminho para minha escapatória." - Levantei-me, observando em sua mão direita, uma espada azul, da qual não me lembrava lhe ver carregando.
"E deve trilhá-lo logo! Há apenas uma forma para você de falar com os mortos: sonhando! Não consigo protegê-lo por muito tempo, vá, antes que ele lhe pegue!" - Lembro de ficar pasmo, ao ver que as garras do animal desciam em minha direção, rapidamente.
"Mas, se estou sonhando, como faço para acordar?"
"Não é óbvio? ABRA SEUS OLHOS!"
Foram as últimas palavras que ouvi, antes das garras do coelho chocarem-se contra sua espada, bem na minha frente. O clarão das faíscas que foram produzidas, fizeram-me fechar os olhos...
Abra seus olhos...
De repente, vi na escuridão, a silhueta de Laila, de costas. Corri até ela
Abra seus olhos...
Ao tocá-la, ela simplesmente desfez-se em brilhos, que se esvaíram no escuro. O mesmo aconteceu, quando olhei para trás, e os inconfundíveis tons amarelos e brancos da roupa de Lúcia chamaram minha atenção.
Abra seus olhos...
Corri em direção a ela, mas, não cheguei a tempo. Tuas cores, desfizeram-se em um rio de brilhos, que cursou seu caminho, para longe.
Abra seus olhos...
Perguntei-me quem era aquele monstro de pelúcia que lhe atacava. Teus olhos eram vivos e, por mais que vermelhos e assustadores, transpassavam sentimentos, pareciam lamentar teus próprios ataques, ainda que o fizessem sem cessar. Teus olhos, desfizeram-se em pétalas vermelhas.
Abra seus olhos...
De meu peito, uma esfera de luz gigante se fez reluzente à minha frente. Teu brilho era forte, e fez com que eu presenciasse, dessa vez, na luz profunda, uma outra pessoa, que, sem feições a não ser um sorriso em sua pele feita de nada, esticou-me a mão direita, parecendo chamar-me.
Abra seus olhos...
Comecei a seguir em direção ao ser que me chamava, tentando alcançar sua mão, quando vi que, fazia de mim, tuas próprias feições. Em meu coração, senti um clamor carinhoso e acolhedor, que dizia-me: "um dia, a mim, há de devolvê-las". Na última vez que ouvi tua voz, tuas palavras fizeram-se um grito agressivo mais uma vez:
"ABRA SEUS OLHOS!"
Sentei-me assustado em minha cama. Ao meu lado, meus pais levavam as mãos à cabeça, chocados. Os médicos se perguntavam: "É um milagre?" A garota deitada na maca ao lado, dissera: "Bem-vindo de volta", porém, ela estava inconsciente, ligada a alguns aparelhos que lhe nutriam a vida.
Enquanto perguntavam o que eu estava sentindo, apenas pedia um pedaço de papel. Desenhei teu rosto nele, na esperança de não esquecer-me. Até então, não sei dizer se tu és apenas um devaneio, se de fato conversei com os mortos, sequer sei dizer qual era o nome do meu salvador, mas sei, que deveria ter pensado duas vezes antes de simplesmente deixá-lo para trás com aquela besta. Queria poder ter feito algo para ajudá-lo.
"Não consegues sequer lembrar o nome dele?" - questionaram-me, mas, apenas uma resposta vinha à minha cabeça:
"Não consigo... Não consigo..."
Para: As 7 Pessoas com quem Sonhei
Permita-se subir à Lua
Para: Luna
A luz prateada do luar transpassava as cortinas das janelas, no corredor dos aposentos superiores da enorme residência.
Ao acariciar meu rosto com seu calor quase imperceptível de tão suave, tive uma sensação nostálgica. Abri as cortinas e uma das janelas, para observar as nuvens transitando em frente à Lua.
Quando o céu se limpou, minutos após a transição das nuvens, percebi algo estranho no luar: suas partes escuras, que outrora desenhavam um coelho, para alguns, ou ilustrava uma batalha épica entre um dragão e São Jorge, para outros, haviam simplesmente desaparecido.
Como se não bastasse tal surpresa, pude ver uma pessoa, tão brilhante quanto a própria Lua, sentada sobre o telhado da varanda à minha frente: você.
Encarava com os olhos arregalados, surpresa, aquele brilho noturno excepcionalmente belo.
"UAAAAAAAAU" - Você gritou - "BRILHAAANTE!"
Assustado, me afastei um pouco da janela, mas, você veio até mim.
"Hey! Me desculpe pelo susto, não é sempre que posso ver a Lua dessa forma, então estava surpresa."
Ainda não conseguia reagir. Seu brilho me cegara e sequer tinha palavras para formular qualquer pergunta. Você pegou em minha mão direita e, finalmente, pude ver sua aparência: uma adolescente de cabelos dourados, presos atrás das orelhas por um arquinho com orelhas de coelho falsas; seus olhos eram acinzentados, feito prata. De suas costas, duas asas escamosas como as de um dragão, pendiam através de duas aberturas em sua armadura dourada.
"Vamos?" - Você perguntou.
"Para onde?" - Repliquei, ainda espantado.
"Ora, não é óbvio?" - Você puxou meu braço direito e o prendeu sob o seu esquerdo. Com um bater de suas asas, levou-me consigo para fora da casa, rumando os céus - "Vamos para a casa!"
Tuas gargalhadas e meus gritos de desespero preenchiam o vazio e escuro infinito a nossa volta, enquanto o brilho lunar fazia-se cada vez mais próximo. Seu grito de "CHEGAMOS", ecoou por aquela superfície enquanto você me soltava e erguia os braços para o alto. Você festejava por estar devolta ao lar, enquanto eu me perguntava em que momento acordaria daquele sonho insano.
Apesar de minhas pernas tremerem ao tentar me levantar, acabei acostumando com a diferença gravitacional e também, com você. Nos divertimos durante horas, com a gravidade baixa da Lua.
Após me cansar de tantos pulos e cambalhotas no ar, reparei em você, sentada, olhando para o céu, como havia lhe encontrado anteriormente. Aproximei-me e sentei ao seu lado.
"Veja" - Você sussurrou - "Está começando"
Olhei para a frente e vislumbrei o planeta Terra, vividamente azul.
"Olhe as estrelas ao redor" - Reparei que, delas, correntes desciam, subiam, cruzavam-se em todas as direções e prendiam-se à Terra - "O mundo é movido graças ao poder dos sonhos das pessoas. Eles carregam o planeta, com esse brilho de esperança, almejando o sucesso, mas, infelizmente, meu trabalho é monitorá-las e cortá-las quando começam a apodrecer"
"Apodrecer?" - Perguntei, completamente perdido.
Você apontou uma das correntes, que começava a enferrujar em alta velocidade. A ferrugem subia da extremidade presa à Terra, tentando alcançar a estrela. Você se levantou e, feito um raio, voou em direção à corrente, estilhaçando-a com o corte de uma espada feita de luz.
O processo se repetiu várias vezes, com várias outras correntes ao redor do mundo, até que você finalmente retornou, sentando-se ao meu lado. Derramando algumas lágrimas, você começou a explicar:
"A impureza de seu mundo triste, corrompe as esperanças dos humanos, fazendo com que as correntes que os ligam a seus sonhos se enferrujem. Antes que tal impureza chegue até a estrela, eu quebro esta ligação, e as pessoas perdem estes sonhos. Cada luz que se apaga no céu, é uma derrota da humanidade"
Olhei as luzes que flutuavam sem nenhuma base, frágeis, instáveis.
"E por que você as liberta, se ainda assim, se apagarão?" - Questionei
"Para poupá-las da dor de serem esquecidas. Elas flutuam livres por um tempo, e então..." - Você abaixou seu rosto, enquanto as estrelas começavam a cair, em uma chuva de meteoros.
Coloquei minha mão sob seu queixo e o ergui, para que visse aquela cena.
"O que você acha de tudo isso? Toda essa história?" - Você questionou, intrigada.
"É triste, que estas luzes tenham que cair, mas, veja! Não é belo?" - Você pareceu se espantar com o que seus olhos presenciavam, como se nunca tivesse visto antes, talvez, por sentir-se culpada da queda das estrelas - "Quando as estrelas caem, as pessoas na Terra as fazem pedidos, e mais uma vez, acreditam! Estrelas caem, mas, com isso, muitas outras nascem, muitas começam a brilhar mais forte e é assim que sabemos quais caminhos devemos trilhar. Enquanto você chora perante tantas estrelas cadentes, crianças na Terra se enchem de esperança por ver uma única, então, por que não tenta fazer o mesmo? Faça um pedido!"
"Meu desejo já foi realizado" - Você respondia enquanto suas lágrimas caíam - "A queda das estrelas, é tão bela quanto o luar visto da Terra"
O sorriso em seu rosto fez orgulhar-me de tudo que aprendi a seu lado. Coisas vivas em mim, que apenas fui capaz de enxergar através de ti.
Soube que o fim da noite se aproximava, ao ver que as estrelas terminavam de se despedir em suas quedas majestosas. Ainda assim, uma dúvida me assolava, e não poderia deixar de saná-la:
"Fico feliz com essa experiência, mas, diga-me, por que me trouxestes até aqui?"
Desviando seu olhar prateado das estrelas e o voltando a mim, me respondeu, sorrindo:
"Porque, de todas as estrelas vivas no firmamento, a tua é a mais brilhante. Não quero que ela caia nunca" - De meu peito, pude ver sete correntes como as outras começarem, sendo que, suas outras extremidades, prendiam-se ao Sol - "Teus sonhos são puros e belos, irradiam e contagiam outras pessoas. Nunca deixe de sonhá-los"
Enquanto a luz da Lua lentamente deixava meu rosto, despertei, sentado ao lado da janela semiaberta, coberto por uma manta branca e pelos olhares das duas garotas ruivas, que não entendiam o que eu fazia ali.
Havia algo que queria ter lhe dito, mas nosso tempo foi curto demais. Portanto, venho por meio desta, contar-lhe algo ocorrido tempos atrás: Certa vez, quando éramos crianças, eu e aquela pessoa brincávamos durante a noite, quando vimos uma estrela cadente cruzar os céus. Rapidamente, seguramos a mão um do outro com força, fechamos nossos olhos e pedimos para que, um dia, pudéssemos brincar juntos, na Lua.
Desta vez, ele não estava comigo, mas ainda assim, realizei nosso sonho. Ainda assim, pude sentir a luz daquelas memórias brilharem fortemente e, graças a você, minhas lembranças dele nunca mais foram tristes.
O que sempre desejei lhe dizer, era simplesmente, obrigado.
Para: As 7 Pessoas com quem Sonhei
Deixe queimar teus desenhos
Para: Laila
Para fugirmos da chuva, Lúcia convidou-me até seu lar. Seguimos sob sua sombrinha branca com bordas amarelas até a varanda. Ela abriu a porta e aconselhou-me a me esquentar próximo à lareira, na sala de estar, e foi lá, que te encontrei, com seus cabelos curtos e ruivos iguais aos da sua mãe, mas bagunçados; pijamas azuis, olhos verdes e bochechas sardentas, rosadas.
Tão pequenina, encolhia-se bem próxima ao fogo, enquanto amassava alguns papéis de uma pilha à sua esquerda e os jogava às chamas.
"O que está fazendo, pequena?" - Perguntei, sentando-me ao seu lado. Pude perceber que os papéis se tratavam de desenhos extremamente coloridos.
"Estou me livrando de desenhos inúteis" - Você lançou uma bolinha de papel amassado.
Os únicos sons audíveis durante alguns minutos eram as gotas da chuva sobre o telhado e os estalos dos papéis ao se desdobrarem, incinerando.
Nos desenhos, estavam sempre retratados uma garotinha em tons lilás, segurando a mão de um garoto em tons azuis.
"Ele foi embora e deixou os desenhos. Eu tinha feito para ele." - Disse, antes que eu sequer lhe perguntasse.
Observava você, olhando os papéis, sorrindo. Não entendia por quê os queimava. Mais uma vez, você leu minha mente, respondendo-me antes da pergunta:
"Não consigo ver os desenhos direito, sabia? Não sou capaz de enxergar cores. Lembro das coisas que desenhei e fico triste, então, não preciso destes papéis tão vazios."
Quando lhe ouvi dizer tais palavras, logo pensei no que sua mãe me ensinara:
"Lúcia me disse que nada se vai para sempre, mas sim, muda de forma. Não me parece correto lançar tuas memórias ao fogo"
"Mas é nas chamas que elas se fazem verdade. Aqui, em papel, elas se fazem máscaras para uma inocência destruída pela perda, palavras de uma criança traumatizada em forma de desenhos. Lá, elas ardem como a saudade em meu peito e fazem o que de fato deveriam fazer".
"E o que fazem?" - Perguntei, pasmo com tua inteligência
"Me aquecem" - Você colocou a mão direita sobre seu peito, fechando os olhos. Entendi, finalmente, que os desenhos nunca foram seus. Foram feitos para ele. Em si, você já tinha todas as respostas e memórias que precisava.
Aproximei-me ainda mais de seus desenhos e escolhi um que chamava-me a atenção: O homem azul, agora segurava a mão de outro homem, desenhado em tons muito escuros.
Olhei para as chamas na lareira, amassei o papel com minhas duas mãos em um formato esférico e o atirei. O fogo rapidamente o consumiu.
"Como está se sentindo?" - Você me perguntou, ao finalmente abrir os olhos.
"Confortavelmente aquecido" - Respondi, dando-lhe um sorriso e sendo retribuído pelo seu, o mais sincero sorriso que vi, depois que aquela pessoa partiu.
Para: As 7 Pessoas com quem Sonhei
Deixe que teu chá esfrie
Para: Lúcia
Te encontrei sentada às margens de um rio. Tuas vestes eram brancas com bordados amarelados e teus olhos, verdes como as folhagens das árvores que lhe faziam sombra. Abaixo de teu chapéu de camponês, teus cabelos ruivos cintilavam com suavidade.
Ao perceber minha presença, você sorriu e eu, timidamente, me aproximei. Sentei-me ao seu lado naquele pano estendido ao chão.
"Por favor, sirva-se!" - Você disse, apontando uma garrafa térmica e uma xícara sobre um pires, depois, bebericou alguns goles, enquanto encarava meus olhos, profundamente.
Ainda envergonhado, tomei coragem para me servir do chá que fumegava, exalando um odor desconhecido. Mesmo que incomodado, tomei um gole rapidamente, queimando meus lábios. O chá era de um amargo indescritivelmente pungente.
"Está muito quente, cuidado!" - Você exclamou, ao ver meu rosto contorcer-se graças àquele sabor único.
Procurei uma forma de explicar-me: "Não é isso. Acho que... Sinto falta de algo".
"Eu já sabia" - Colocando sua mão dentro do rio, aconselhou-me a fazer o mesmo, portanto, o fiz.
Você encarava nossas mãos no rio, com um semblante que retratava a calmaria com qual as águas nos tocavam.
"Está fria". - Eu disse, o que chamou tua atenção.
"E teu chá, pungente, não é?" - Você retrucou, imediatamente - "Mas, não se preocupe, as coisas mudam" - Continuou, enquanto a água tornava-se quente.
Ao encarar o fluxo da água, pensei ter entendido o que dissera:
"Isto é, porque tudo é passageiro. Assim como a tempestade, as águas frias se vão, e chegam as quentes."
"Errado" - Mais uma vez, respondera de imediato - "As águas, de fato, têm seu fluxo. Elas descem rio abaixo e parecem nunca mais voltar, mas, na verdade, elas evaporam, caem em forma de chuva e brotam mais uma vez, nas minas deste mesmo rio."
"Eu não entendo. O que isso quer dizer?" - Perguntei, confuso.
"As águas podem ser da tempestade, mas também podem ser aquelas que nutrem as raízes de suas árvores" - Você, mais uma vez, encarou o fundo de meus olhos - "Tuas memórias com aquela pessoa, ainda podem lhe trazer dor, mas, em breve, elas poderão se tornar seu tesouro mais precioso. As coisas nunca se vão para sempre, mas sim, mudam de forma."
Enquanto um turbilhão de lembranças e palavras atingiam-me sem qualquer pena, senti a dor da saudade penetrar minha pele como agulhas em um balão de criança. O rosto, o olhar, a voz daquela pessoa, tornaram-se tão pungentes quanto o teu chá. Tu, ainda sorrindo incessantemente, tentava aliviar-me do peso que tais memórias eram capazes de me proporcionar. Encarei a xícara de chá e, sem querer, derramei algumas lágrimas. Mais uma vez, tentei bebericar alguns goles. Você sorriu outra vez, ao perguntar:
"Como está seu chá, agora?"
Mais uma vez, a chuva caía.
"Frio, mas realmente, o mais doce e saboroso que já tomei." - Respondi, sorrindo em meio às lágrimas que era incapaz de controlar, mas que, um dia, talvez, mudariam de forma.
Para as 7 Pessoas com quem Sonhei
Não diga Adeus
Para: Você
Você partiu. Assim como na nublada manhã de setembro, iluminada pelos raios que cruzavam as negras nuvens... Aquela em que você chegara... Estava chovendo, quando você se foi.
Teu semblante aliviava-me perante os sons estrondosos dos trovões lá fora, e apesar dos vendavais assustadores quase derrubarem as paredes de nossa humilde morada, você dizia:
"Está tudo bem. Os ventos rugem para nos mostrar, que até mesmo as mais negras e densas nuvens são levadas embora, em algum momento"
Você sorria. Teu suave riso doce afagava meu coração, me fazia acreditar que o Sol viria a nascer no dia seguinte, por mais que tais tempestades rondassem teu ser, incessantemente.
Teu olhar benevolente não cedia, mantinha-se forte, poderoso, rígido e verdadeiro, enquanto teus cabelos, por outro lado, caíam aos poucos
"A tempestade é forte..." - você admitia - "Ela pode levar quantas partes de mim forem possíveis, mas ela nunca conseguirá levar aquilo que veio buscar" - teu sorriso seguia indestrutível até então... E então... Dias após, você partiu.
Teus lábios calaram-se, mas teu coração, ah, mesmo agora, teu coração insistia em afagar-me os prantos e acariciar minha incompletude, recusando-se a me deixar, assim, tão perdido.
"Havia lhe dito, não existem tempestades que não vão embora com o vento, mas, aquilo que se torna de ti, prevalece, feito as árvores, enraizadas pela vontade, pelo carinho, pela saudade. Meu sorriso sempre estará enraizado em ti"
Teus ventos derrubaram-me as paredes, revelando-me os verdejantes jardins, onde as árvores curvavam-se às forças da natureza, mas nunca desprendiam-se do solo.
Enquanto as nuvens negras se desfaziam em uma calma chuva, nutrindo os campos ao redor, meus olhos se desfaziam em lágrimas, ao ver que, assim como os vendavais levavam embora a tempestade, a leve brisa levava consigo a neblina que me proporcionava a miragem, de alguém que estaria eternamente comigo, e agora era levada para sempre, para longe de mim.
Você partiu, com as brisas leves sob uma chuva suave, e desde então, espero pelo dia em que lhe verei novamente.
O Frio
Abraçando seus próprios braços,
Sentado, a poucos passos,
Ele estava, morrendo de frio.
Seus olhos estavam fechados,
Para evitar olhar para os lados
E descobrir que tudo era vazio
Com pena de tê-lo encontrado,
Em tão deplorável estado,
Quis tentar o sentir.
Meus lábios assim se calaram,
Enquanto nossos corações conversaram:
"Por que não tentas da chuva fugir?"
Tristes, seus olhos falavam:
"Não há frio que não possa ser remediado, por um agasalho qualquer, mas quando se está congelado aquilo que deveria esquentá-lo, chuva em teus olhos não pararão de cair, nenhum segundo sequer"
"Não há frio que não possa ser remediado, por um agasalho qualquer, mas quando se está congelado aquilo que deveria esquentá-lo, chuva em teus olhos não pararão de cair, nenhum segundo sequer"
Mencioná-la
Mencioná-la me fez sentir tua presença
Tua silhueta não se fazia visível, ao mesmo que tua voz, alguriava meu interior, tremulava meu ser ao contemplar um outro lado.
Mencioná-la me fez sentir tua presença
E olhar ao redor a procurá-la, enquanto teus dedos macabros tocavam minha pele fria, agoniava-me pela sensação de não mais estar só.
Os algozes de minha paz eram em ti, pois tirava-me do conforto da crença: "estará tudo bem". Tua presença, nada além anunciava, do que um vindouro desespero.
Mencioná-la me fez lembrar de ti, e a forma invisível que habita o negro de minha vasta imensidão, agora olha por teus olhos.
Deus tenha por mim piedade, para que nada além de devaneio, tu sejas, mas imaginá-la, parada a observar-me pela porta, já torna-se suficiente para fazê-la o temor, o medo real neste mundo de devaneios, ou esse medo de devaneios, em um mundo não suficientemente real.
Hoje lembrei de ti, e mencioná-la, me fez crer que sempre esteve presente. Sempre estarás.
Torna-te tão abominável quando vestes tua máscara desejando que as tirem por você. Tu sumprimes vosso ser, vossa cruz, vossa dor, quando desejas incessantemente que alguém perceba tua angústia e lembre de ti. Esqueces criança, que vós não sois único ao mesmo tempo que diferente, todo ser humano leva teus próprios pesos escodendo-se também através de máscaras e assim, tornas aquilo que mais abomina quando não se importa o bastante para olhar além da vossa e perceber que os outros também sofrem. Coloca-te o papel de vitima e não ousa tentar ser herói.
Tudo que vê são julgamentos banais. Julgamentos carnais de seres carnais a ti voltados, graças aos quais não reconheces tua beleza e torna-se a ti mesmo um juiz como os tais que te afligiram.
Eu sou de ti, assim como és de mim e assim como este lugar é de nós, somos deste lugar. Nele, trilhamos nossos caminhos, no qual as portas são abertas através de outras partes de mim. partes de ti.
As Sete Aberrações
VII - A Mãe
Estou sentado na cama de um hospital. Minha cabeça está enfaixada e em meu pulso direito, há uma agulha, anexa à mangueira que traz um soro às minhas veias. À minha esquerda, minha mãe está sentada, sem falar uma palavra sequer, apenas me encara. Presa à parede em minha frente, uma televisão exibe a programação tediosa de domingo. Ao mesmo tempo em que encaro a tela, não assisto, meus olhos estão completamente sem foco, sem brilho.
O sufocante branco fechado ao meu redor parece manter-me preso à ilusão que a aberração da noite passada causara.
Em uma mudança de imagens da tv, pude ver meu reflexo na tela. Sorri ao estranhar minha própria aparência e, enquanto as vozes de uma plateia de talk show gargalhavam histericamente, decidi quebrar o silêncio daquele quarto quase vazio, subitamente:
"Mãe" - Eu chamei. Ela me encarou surpresa - "Eu estou parecendo uma aberração, não estou?" Comecei a rir, enquanto algumas lágrimas percorriam o rosto mais magro e pálido do que outrora.
"Como você pode fazer piadas desta situação? Será que você não entende que é culpa sua que tenha chegado a esse ponto? Nós queríamos cuidar de você! Nós queríamos fazer isso tudo passar!"
"Quem não entende é você" - Respondi, calmamente - "Não faz ideia da dor que passei, todas as sete vezes, e nada adiantou"
"E por isso você vai desistir? Como você pode fazer isso conosco?" Ela começou a chorar, pendendo seu rosto para frente e cobrindo-o com as palmas das mãos.
Envolvi em meus braços a figura daquela mãe que, outrora tão firme, inabalável, agora mostrava sua sensibilidade e tristeza.
"Eu também te amo" - Respondo.
A noite chega e com ela, meu pai. Ele entra no quarto e abraça minha mãe, que logo após, aperta minhas duas mãos, beija minha testa e dá as costas. O homem de barbas curtas e acinzentadas senta-se ao meu lado um pouco mais tímido que minha mãe e segura minha mão esquerda.
"Como está essa força, garoto?" Pergunta. Obviamente sabe minhas condições, mas seu perfil, calmo e descontraído sempre fala mais alto.
"Estão igual ao meu cabelo" - Brinquei.
"Mas..." - Ele ergue um pouco as faixas em minha cabeça. Seus olhos castanhos se estreitam para encarar o outro lado das bandagens - "É, acho que não precisamos fingir que está tudo bem" - Termina, demonstrando frustração ao falhar em sua piada.
Dou risada enquanto o encaro e ele me acompanha. Não demorou muito, aqueles risos foram banhados em nossas lágrimas.
"Eu tenho que confessar... Estou com medo" - Pela primeira vez, ouvi aquelas palavras. Pela primeira vez, soube o que meu pai estava sentindo e, pela primeira vez, vi meu grande protetor, amedrontado.
"Eu também estou, pai" - Apertei a mão dele um pouco mais firme, enquanto seu sorriso sumia completamente, dando lugar aos soluços de choro - "Imagino que seja difícil, que doa me ver assim, mas, você precisa ser forte. Quando isso acabar, você será o único com quem a mãe poderá contar. Por favor, prometa que será forte, por ela"
Ele acenou afirmativamente com a cabeça e me abraçou, como nunca havia abraçado antes.
Minha família perdeu muito pela esperança de me curar. Tudo em vão. Agora, estava sendo difícil de aceitar a derrota, apesar de toda a gratidão que sentia por eles e toda a vontade de continuar lutando, o fim era iminente.
Pouco depois, minha vista começou a se turvar. Senti frio. Assisti o vulto embaralhado de meu pai se levantar, perguntando às enfermeiras que entraram o que estava acontecendo, de forma desesperada, quando tudo finalmente tornou-se escuridão.
Tudo o que pude ouvir, ou sequer sentir, foram três toques contínuos de sinos, como os das catedrais. Logo em seguida, vi algo em minha frente, o que deduzi ser a última das aberrações.
Seu corpo era simplesmente uma capa negra e flutuante, ressaltando dois olhos brancos e profundos dentro da touca. Nas extremidades das mangas daquela capa, mãos negras e esqueléticas se faziam visíveis. Em sua mão esquerda, trazia uma grande foice.
"Olá" - Tentei dialogar. Esperei algum tempo, em vão, não recebi qualquer resposta - "Acho que sei o motivo de estar aqui"
"Ela anuncia minha vinda com as fragrâncias de crisântemo, para que um dia possa ver as cores do jardim. Não permitiria que partiste só, então abri caminho até ti, mas, eu... Sinto muito..." - Respondeu finalmente a criatura
"O que? Sério? Você não é a Morte? É seu trabalho!"
"Sabes quem sou?" - Ele pareceu confuso. Apesar de sua aparência nada convidativa, sua voz e sua forma de falar eram suaves, quase doces. - "Não me agrada que as coisas aconteçam dessa forma. Queria ser capaz de evitar-me a vir àqueles como você, que mesmo tão jovens, tornam-se sábios e aclamáveis. Bem-aventurado seria o mundo, se os viventes presenciassem tudo aquilo que já vistes"
"Tu sabes de toda a dor que já senti. Conheces cada momento, dos triviais aos fundamentais, os quais presenciei. Por isso, hoje estás aqui. Morte, tu não vens como uma aberração ou uma inimiga, eu bem a conheço, pois tu és o descanso eterno, que agora sei, dentro de mim, que sou merecedor. Assim como a acolho alegremente, espero que me aceite, sob seus mantos, de bom grado" - Agora, tudo estava feito.
A Morte surpreendeu-se ao ouvir meus dizeres. Já sentia-me muito menos carnal do que sempre fora. Apesar de não poder ver a face daquele que estava à minha frente, senti certa emoção calorosa vinda de seus olhos, então sorri.
Ele estendeu sua mão direita em minha direção. Instintivamente, fiz o mesmo, ou tentei. Algo estava me segurando. Quando olhei para trás, várias pessoas estavam ali. Amigos de longa data e alguns que há muito não via, familiares que não eram tão próximos e alguns que nunca me abandonavam, até mesmos conhecidos, aos quais apenas dizia "Oi" ou "tchau". Todos eles seguravam meus braços.
Encarei aquela que estava mais próxima. Aquela pessoa, segurando com força em meu pulso esquerdo.
"Não vá, não ainda. Por favor! Eu sequer consegui me despedir!"
Vê-la chorar foi o mais doloroso dos sentimentos que tive até hoje. Logo após suas palavras, todos começaram a fazer o mesmo.
"Volte!" - Diziam - "Não desista!"; "Nós estamos aqui" - Os gritos eram incessantes
"Eram eles que ainda precisavam de mim, não é?"
"Esta é tua última e mais difícil provação" - Respondeu-me a Morte.
Olhei para todos aqueles que estavam ali, aquelas gotas de luz em uma imensidão feita de trevas. E, com um sorriso e um último aceno de cabeça, disse: "Obrigado" e "Adeus". Quase todas aquelas luzes acenaram de volta, enquanto reconhecia meu pai no meio da multidão, abraçando minha mãe com força, transformaram-se todos em flores variadas, cheias de cor, vívidas, a não ser por uma pessoa. Sua mão ainda segurava meu pulso, enquanto seu rosto inclinado ainda lamentava nosso adeus.
Coloquei minha mão sob seu queixo e o ergui, encarando profundamente seus olhos.
"Todos temos nossas próprias vidas para seguir, com ou sem outras pessoas, mas, sei que minha vida foi tão bela quanto poderia ser, porque você estava lá. Não quero que lembre de mim com arrependimentos ou mágoas, quero que saiba que, mesmo no último momento de minha vida, você foi a mais forte luz, que teimou em brilhar no meu coração sem pulso. Agradeço por sempre ter estado comigo. Obrigado. Eu te amo"
Aquela luz, ao me abraçar, finalmente cedeu. Em minhas mãos, tudo que sobrou fora uma rosa vermelha. Os badalares dos sinos começaram mais uma vez, mas, não pararam em seu quarto toque. Ao fundo, pude ouvir uma melodia que conhecia de algum lugar. As flores que
haviam caído ao chão começaram a se multiplicar em um extenso jardim. A imensidão negra deu seu lugar a um céu azul repleto de nuvens brancas e estrelas.
Atrás de mim, a Morte removeu de sua cabeça o manto, que, outrora negro, tornara-se azul. A imagem de uma bela mulher se fez presente sob as luzes dos céus e daquele manto. Aos seus pés, todos aqueles que já haviam partido estavam presentes. Aos meus lados, todas as sete criaturas que conheci anteriormente ajoelharam-se perante a ela. Aproximei-me e fiz o mesmo gesto.
"Você conseguiu. Seja bem-vindo" - Disse ela.
"Assim como vós, ponho-me sob o manto da noite, onde hei de descansar, brilhando como estrela, com todas as outras luzes que me aceitam em seu meio. Obrigado por receber-nos." respondi, em uníssono, com A Anunciante, O Espelho, A Máscara, O Mundo, A Esperança e O Tempo, despedindo-me de tais aberrações.
Estendi minha mão direita, entregando a ela, oito rosas vermelhas.
Minha irmã acordou assustada com esse sonho, sentou-se em sua cama e enfim, entendeu: "Suas orações foram entregues a tempo".
As Sete Aberrações
VI - O Tempo
Enquanto penso no que me foi dito na noite anterior, vou até o banheiro, encho minhas mãos de água e molho meu rosto, encarando o espelho logo em seguida.
De minha narina esquerda, uma linha vermelha se estendia até meus lábios. Esfreguei com meu pulso e encarei o sangue que manchava minha pele.
"Por quê?" - Falei, em voz alta. De trás de mim, inesperadamente, recebi uma resposta:
"Será que é tarde demais?"
Me virei rapidamente. Encostado na outra parede, enquanto sentado no cesto de roupas, ele estava, ou melhor, eu estava. Olhei para o espelho mais uma vez e ambos aparecíamos no reflexo. Olhando para baixo, percebi que não estava mais no banheiro de meu apartamento. Não existia chão, meus pés se sustentavam nas solas dos pés de outro reflexo meu, que me encarou da mesma forma que o encarei. Acima de mim, na imensidão branca onde deveria estar o teto, mais três reflexos perambulavam, sem parecer me notar ali, ou sequer, viam uns aos outros.
"Somos muitos, não?" Disse aquele que foi o primeiro a aparecer, e que ainda mantinha-se à minha frente.
"Mas você é diferente. Diga, você é outro? A sexta aberração?"
Aquele "eu" andou em minha direção com um olhar sereno, encarou-me e então, limpou meu sangue com um lenço que tirou de seu bolso, lenço esse, que eu mesmo ganhara de meu pai anos atrás. O mesmo lenço estava também em meu bolso.
"Todos somos, fomos, poderíamos ter sido ou seremos versões de você, em momentos do passado, presente ou futuro. Eu, sou a sua versão de um futuro bem próximo"
"Por isso é você quem me responde?" Perguntei. Ele me respondeu confirmando, com um aceno de cabeça e um sorriso de canto de boca.
Depois de pouco tempo, estávamos sentados, olhando para cada versão de nós mesmos. Ao redor deles, memórias do passado se formavam.
Apontava, animado, para cada uma delas, contando sobre os momentos felizes como se meu outro eu não os conhecesse. Nas memórias, vi pessoas que já se foram, como meus avós, alguns tios e primos. Isso me fez transbordar algumas lágrimas, secadas pelo meu outro eu, que tentando fazer me distrair, apontou na direção das memórias mais engraçadas de minha infância. Logo me reanimei, assisti tudo o que podia e não podia me lembrar.
Olhando um pouco à minha direita, vi algumas versões de mim que não reconhecia. Antes de eu sequer questionar, fui respondido:
"Ah, todos esses são versões de você que não chegaram a existir, graças às escolhas que fez".
Alguns momentos tristes, outros felizes, que gostaria de ter vivido, sonhos que não pude realizar em lugares que não pude ir, mas nenhuma parecia tão relevante quanto aqueles que há muito haviam partido, e agora, pareciam estar a um palmo de distância.
"Eu só queria poder dizê-los como sinto falta... De cada um deles". Estiquei minha mão em direção a eles, mas apesar de parecerem tão próximos, estavam longe demais.
"Impressionante" - Disse meu reflexo, enquanto me encarava surpreso "Mesmo com todas essas possibilidades lhe sendo mostradas, ainda insiste em olhar para os momentos do passado".
"Bom..." Respondi. "Cada uma dessas versões poderiam ter acontecido, mas não aconteceram. Sendo assim, elas não fazem parte de mim, não são eu, não me são tão valiosas."
"Você prefere suas memórias, mesmo as dores que passou, mesmo os momentos ruins, as perdas, todas elas fazem parte da sua vida"
Apenas concordei com um aceno de cabeça.
"Estou sem palavras, posso apenas parabenizá-lo" Nesse momento ouvi um barulho de estática, senti uma pontada no peito, depois todo aquele local pareceu tremer. As pessoas que vi simplesmente sumiram.
Coloquei minha mão no peito, me controlei e olhei para ele de novo.
"Para onde eles foram? Isso foi uma provação ou algo assim? Qual é a lição que deveria ter aprendido com isso tudo?"
Ele me olhou mais uma vez, com um olhar triste, ainda que sorridente.
"Acho que... Quem acabou recebendo uma lição fui eu. Esperava que visse todas aquelas possibilidades e se sentisse tentado em poder viver de forma diferente. Ainda assim, você preferiu a vida que teve" - Mais uma vez, a dor no meu peito e o barulho de estática se fizeram presentes.
"Eu não entendo" respondi
"Não percebe? Você conseguiu aprender conosco! Com cada uma das aberrações! Entende cada erro que cometeu, mas ainda assim, sabe que seus erros são parte de quem você é, ou melhor, de quem somos! A perfeição vem daquilo que é, não do que poderia ser. Você,
pequeno iluminado, pôde me dar uma provação e eu sequer passei, eu devo ser sua versão que fracassou nesse teste." Sua última frase saiu em um tom de ironia.
Meu coração apertou mais forte dessa vez, junto com outro barulho de estática, fazendo com que eu quase desmaiasse. O clarão ao redor começou a se raxar e mostrar o negro atrás daquela lona de luz. Pensei em perguntá-lo se ele de fato, era a sexta aberração, mas, rapidamente, a resposta a essa pergunta se tornou clara: já havia admitido, eu mesmo, ser uma aberração.
"Eu não me arrependo de nada, e também, não é como se fosse uma desistência banal, mas, queria ficar com eles! Deixe-me ir de uma vez, eu sei que estou pronto!" Disse finalmente.
"Não se preocupe, logo você estará com todos" - respondeu. A face começou a se raxar, revelando raios brancos e negros através da carcaça feita à minha imagem e semelhança - "Mas ao menos mais uma vez, você deve acordar" - um último som de estática me atingiu, fazendo-me fechar os olhos - "Ainda há aqueles que precisam de você do outro lado". Comecei a ouvir vozes desesperadas e gritantes ao meu redor, eles pareciam pedir espaço, ordens para que outras pessoas se afastassem, em um desespero que não me parecia fazer sentido.
Abri meus olhos a ofegar, quando vislumbrei tudo que estava ao meu redor. Estava deitado e amarrado a uma maca. Uma mulher e dois homens de jalecos brancos e máscaras que cobriam suas bocas e narinas, me encaravam, secavam minha testa com esparadrapos e me pediam para me acalmar, que já havia passado. Diziam eles, que apenas quatro choques do desfibrilador foram o suficiente, para que eu recobrasse a consciência.
As Sete Aberrações
V - A Esperança
Deitado em minha cama, mas meus olhos não se fecham, não consigo dormir. A imagem do pobre menino, tudo que pude fazer, foi assistir. Enquanto ele asfixiava, em meus braços o segurava, na esperança de o salvar, mas nada foi o suficiente, até o pequeno simplesmente parar de respirar. Tais lembranças me assolam e o medo, a angústia, tornam-se inquietantes, mas percebo que os sons no quarto não são mais apenas meu choro e o coração palpitante. Após o som de três badalares, ouvi correntes chacoalharem, me surpreendi. Engolindo seco, tomei coragem, sentei-me e ergui minha voz "Tem alguém aí?"
Não esperava qualquer resposta, mesmo se outra aberração acabasse de chegar, afinal, nas últimas visitas, as criaturas vistas, não costumavam conversar. Mas na porta, uma luz bem forte, então se pôs a dialogar: "Grato pelos seus esforços, por ficar apostos e me esperar".
Em minha frente, o vi entrando, suavemente, sem o chão tocar. Em seus braços e pernas, correntes, que não eram suficientes, para fazê-lo baixar. Tal figura não parecia malevolente, então assustado, mas inconsequente, resolvi questionar: "Tais correntes parecem pesadas, afinal de contas, o que lhe faz levitar?"
"Tu percebes que minhas correntes trazem pesos suficientes para me derrubar. Mas também deve ter notado, em vossos olhos, minha pele não para de brilhar. Esse brilho é trazido a mim, pelos sonhos sem fim, que fui capaz de sonhar. Enquanto essas pesadas, estúpidas correntes, tentam me segurar."
"Toca-me que fales de sonho, mas se essa é a prova que tenho de passar, devo advertir-lhe, que a mim não há esperanças de continuar. Deve bem saber, mas tuas visitas parecem o último ato, para minha vida terminar, não há nada que em mim, os sonhos estejam fazendo, a não ser desmanchar"
"Tolo tu és, se desejas assim pensar" A criatura, antes tão calma, começou, quase gritante falar "Podes pensar que os sonhos lhe abandonam, mas tu quem fizeste tuas correntes pesar. Lembra-te do que lhe foi dito pelo monstro que outrora tentou me matar: essas correntes são a realidade, elas nunca soltarão até conseguirem lhe levar, mas eu lhe digo: deixe fluir vossa mente, e que tua corrente não aumente, para que possas também flutuar, pois sonhos não se tornam ausentes, se parecerem sumir, vão logo voltar."
O rosto daquela criatura, acabou por me consolar. Nele, vi a criança, que a mim sorriu, de novo, grato, antes de zarpar. As correntes que antes arrastavam no chão, agora no céu, começaram a farfalhar, e a luz daquele menino, por todo meu quarto, pude ver dançar. Mais uma vez, uma lição foi dada, e enquanto meus olhos não paravam de lacrimejar, outros quatro badalares, inundaram meu quarto, me fizeram acordar. A realidade é bruta, cruel, logo com minha vida vai terminar, mas não quer dizer que deva logo ceder, antes de à Morte enfim, me render, posso vencer, por isso devo lutar.
As Sete Aberrações
IIV - O Mundo
Sete latas vazias, espalhadas sobre a pequena mesa da sala. Uma oitava, em minha mão direita, apoiada no braço do sofá, enquanto insisto em assistir à tv com meus olhos pesados e piscantes. Os energéticos não pareciam estar sendo tão efetivos em manter-me acordado e afastado da próxima aberração que havia de vir.
No meu primeiro bocejo, tudo continuava normal, as latas deitadas respingavam no carpete enquanto as propagandas da programação noturna não cessavam. Fechei os olhos por instantes no bocejo seguinte, instantes suficientes, para que outra vez, mergulhasse em devaneios.
Minha pele se arrepiou quando grandes estrondos começaram a tomar conta do lugar. O chão parecia tripidar conforme os barulhos, que mais pareciam onomatopeias para passos, vinham em minha direção: nas escadas, depois no corredor, finalmente chegando à porta. Fiz tudo o que podia para mantê-lo longe e não adiantou, agora, estava mais amedrontado do que nunca.
"Como pode? Eu não dormi! Estou acordado, você não pode vir!" Lamentava, desesperado.
Até que, por poucos segundos, os barulhos cessaram. Aquele hiato foi logo quebrado com o maior dos estrondos até agora. Pude ver a porta sendo arremessada, fechadura e dobradiças de metal arrebentadas e assim, finalmente, aquela figura monstruosa revelou-se.
Sua pele, ou melhor, sua ausência de pele, revelava a carne viva, nervos e algumas veias da criatura obesa, humanoide, de cabelos e olhos negros. Meu estômago revirou-se, quase me fazendo vomitar. Pensei em correr, mas mero pensamento, meu corpo já havia sido paralisado graças ao medo e à angústia.
Trazia consigo um cheiro horrível de putrefação e em uma das mãos, algo parecido com o pernil de um animal, com o qual se alimentava. A criatura começou a aproximar-se em seus passos lentos e estrondosos, desengonçados de certa forma. Quando estava próximo o suficiente para que seu malcheiro quase me asfixiasse, pude ver que debaixo de seu braço esquerdo, trazia um corpo.
Sentou-se ao meu lado e não disse uma palavra sequer, como se eu sequer estivesse lá. Em seu colo, colocou tal corpo, que mesmo com uma aparência completamente mórbida, estava vivo. Era uma criança, um pequeno garoto esquelético, com uma corrente presa ao pescoço e aos braços. Ele me encarou por um momento, com um olhar de desentendimento. Minha mesa, que outrora coberta de latas vazias, tornou-se farta de ali
O monstro esticava seus braços, enchia suas mãos de comida e devorava ferozmente. A cada leva de alimento que o monstro devorava, a criança esticava suas mãos, tentando agarrar e roubar alguma migalha para que saciasse sua fome.
Entrei em desespero, então, qualquer sinal de medo em mim, simplesmente desapareceu. Tentei atacar ao monstro com socos, mas ele continuava sem sequer se mexer. Era como se eu realmente não estivesse lá. Então, fiz o que podia, levantei-me, peguei um copo de água e dei de beber ao garoto, depois, coloquei um pouco de comida em suas mãos e o pequeno devorou-a em um piscar de olhos, chorando de emoção ao finalmente conseguir sentir o sabor de um alimento.
Ele me deu um sorriso e então não pude aguentar a emoção. Comecei a chorar, assim como ele.
"Qual o seu nome, menino?" Perguntei. Quando ele tentou responder, uma algema presa a correntes tapou sua boca e suas narinas.
"O pequeno não é ninguém, não passa de número" uma voz grave respondeu atrás de mim.
"Solte-o! Você vai matá-lo, não está vendo?" Comecei a puxar a corrente com todas as minhas forças, mas nada adiantava.
"E a quem isso seria um problema? A você, que assim como essa criança torna-te escravo de suas necessidades, enquanto cria novas necessidades inexistentes? A mim, que me sustento do desespero daqueles que lutam para conseguir o superficial, e nada conseguem? Ou a ele, cuja vida tão miserável é repleta de doenças, dores, tristezas e tão presa a correntes, as quais o próprio criou e entregou às minhas mãos para que o controlasse?"
O menino finalmente começou a se debater, esticando suas mãos e agarrando minha camisa com todas as forças que tinha.
"Eis em vossa frente o retrato daquilo em que escolheste viver! Quem está abaixo sofre, prendendo-se em correntes, enquanto no topo, tudo que existe sou eu, nutrindo-me de tal circunstância, até que em seu finório momento, tudo o que resta é o que estás testemunhando, e a angustia de finalmente saber, que toda a luta foi em vão!"
Suas mãos soltaram minha camisa devagar. Seus olhos, agora sem qualquer brilho, fecharam-se lentamente, sua cabeça inclinou-se para trás, até que começasse a cair do colo da criatura.
"Sinto muito, mas por não dormir, tiveste que conhecer-me na vida real. Sugiro que não tente nos evitar na próxima noite. Apenas durma!"
Segurei o garoto no colo, enquanto em prantos, ouvia a gargalhada grotesca daquela aberração, seguida de quatro badalares. Fechei meus olhos e abracei o corpo do pequeno com todas as minhas forças. Mesmo de olhos fechados, senti como se um clarão tivesse se alastrado no local, então abri os olhos outra vez.
Estava sentado no sofá. Em minha mão, a lata vazia de energético ainda pendia, derramando algumas gotas. A porta, ainda estava trancada, no seu lugar de costume. Levantei-me, peguei o controle na mesa e desliguei a tv.