Coleção pessoal de silvairjunior
Certo dia, uma mosca engoliu minha alma antes de ser engolida por um sapo. Uma cobra abocanhou o sapo. Uma águia comeu a cobra e me fez entender que todo mundo precisa começar do insignificante antes de alcançar o infinito.
É com esgar de esfomeado que me ponho a saborear vorazmente o verbo. A carne minha que do escrever depende. Do viver insólito, do morrer mais insólito ainda. O que era não mais é, o que será talvez já seja. Eu não sei. Nunca vi. Se vivo, amo. Se amo, desfaço. Se desfaço, refaço uma vez mais e assim, amo novamente. O ciclo de minha vida é acíclico. Mutante, mutável. Amável, entrementes. Ouço o risco do lápis no papel, dançando ao compasso de minhas mãos gélidas, deixando palavras vulneráveis, passiveis de serem apagadas. Que se apaguem. A mesma fome do verbo que me fustiga agora é a mesma que me fará escrever tudo de novo, viver tudo de novo, e ainda assim, viver tudo diferente.
Pensem sobre a vela. Pensem apenas em como ela é vulnerável, submetendo-se ao jugo da chama a consumir-lhe cada segundo de glória. Agora pensem nas pessoas que assim vivem. Pensem naqueles que simplesmente se deixam consumir perante o brilho e calor do que quer que seja, e se esvaem sem significar nada, fadados a serem encerrados apenas num punhado de cera derretida. Me permitem dizer algo? Eu sou assim. Eu me sinto assim. Sou apenas o sustentáculo de um propósito maior, não necessariamente meu. E isso me deprime, isso me machuca. Mas querem saber de algo mais? Se vou passar por essa vida como alguém que simplesmente se foi sem fazer a diferença, aí já é uma decisão minha, mas não quero tomá-la. Tudo isso me deprime, mas não me derruba indefinidamente. Quero passar meus dias como uma vela sim, mas como a vela que trouxe luz para todos ao meu redor, e que deixou um rastro luminoso de coisas boas nas retinas cansadas do tempo.
Mas que mar me faria
descansar em calmaria?
Mar de metro, mar de milha,
mar certo, Marylia.
Mas seria a calmaria
mais de mar
ou mais de minha?
De meu mar, minha Marylia,
de agora mais o que fora menos
antes caos hoje ameno.
No cais esperei pelo mar
que me traria Marylia.
No caos aguardei,
no cais esperei.
Hoje, não mais.
De tanto em tanto, é um dia a mais e um dia a menos. O tempo consegue passar tão rápido que algumas páginas da minha vida saem incompletas. Era para estar escrito 'felicidade', mas só deu tempo de escrever 'idade'. Mas eu escrevo de trás para frente? Às vezes sim, só pra combinar com a minha vida de cabeça para baixo. Alguns trechos saem sem sentido. Mas nem sentido quero ou preciso pra viver. O dia nasce cresce, reproduz e morre e ninguém questiona. Alguns personagens vão ficando obsoletos, embora tenham sido protagonistas outrora. Começa-se a atribuir mortes épicas em respeito aos bons tempos. Ainda assim são mortes. Defuntos de lendas valem menos do que as próprias lendas. Enredos a parte, era para estar escrito numa página qualquer 'sucesso', mas saiu apenas 'cesso' (lá vai ele escrever de trás para frente). Cesso projetos antes mesmo de começá-los. Não é como se eu tivesse encontrado a cura para o câncer, mas para as feridas da minhas alma já cheguei perto. E mais uma vez a vida faz graça com a minha cara. Eu queria ter escrito 'realização', mas só deu tempo de escrever 'ação'. Mas qual?
Essa minha alma sempre muito velha se renova cada vez que contemplo um dia ensolarado pela janela e penso: sou velho, mas até o sol é velho e continua brilhando como sempre e com força.
No fim das contas, não há, na humanidade, quem esteja só. Há quem tenha a companhia da solidão, e só.
E esta vontade de subir à copa da mais alta das árvores, de voar ao mais alto dos céus, de chorar o mais intenso dos choros, de rir o mais frenético dos risos. Esta vontade se perde toda vez que olho para trás.
Há muito que preciso desaguar em tempestade lacrimosa. Antes prefiro empoçar o intrínseco e externar o superficial. Há muito preciso chorar em cascata.
Não canto o canto triste por de tristes tempos me valer, mas por nada, nada mais ter a não ser um triste canto, de desvelar, de literatura e pranto. De sempre. De nunca.
Se tem uma coisa que eu aprendi escrevendo um livro, é que, dentro da minha cabeça, há muito mais pessoas do que eu imaginava e bem menos do que eu gostaria. Há sempre pouco tempo, porque tenho que trabalhar e dar um destino ao protagonista sofrido que criei. Tenho uma vida real, que interfere na vida dos meus personagens, que sofrem e riem comigo (ou "sem migo"). Mato gente todo dia, "nasço" gente todo dia. Faço gente se amar e se odiar, faço bicho de três cabeças, às vezes sem, às vezes CEM! =O Posso voar, posso respirar debaixo d'água, posso manipular fogo, posso derreter gelo no sopro, carrego o mundo, passo pelo buraco de uma agulha, sei o que todos pensam, penso por todos. Faço e desfaço quando quero e isso tudo, senhores, sem sair do lugar. Eu, eu mesmo e minhas ideias, e minhas palavras e minhas obras. Quero muito que a vida não saia disso, porque, enquanto escrevo, sei o que é vida.
Há quem diga que é simples e rápido superar um trauma. Por acaso é rápido para uma semente tornar-se árvore?
De tanto falar em vida, espera-se viver mais intensamente. Comigo já não ocorre sob tamanha trivialidade. Falo de vida para ter do que falar de forma convicta, descomprometido com o resto. Falo de vida imaginando como ela seria, ignorando o que ela é. Falo de vida sob os acordes do tempo e o odores do acaso. Faço sim, pouco caso de quase tudo. Vida não foi feita para se levar tão a sério. Sou constantemente inconstante. O mesmo que diz: "voe!", diz: "pouse". De tanto falar de vida, me condicionei a ver algumas coisas de olhos fechados e boca calada. A vida não foi feita para que retenhamos tudo o que ela oferece. Falando de vida ininterruptamente, acredita-se saber mais dela do que qualquer outro errante. Ora, mas se é errando que se aprende, onde fica a coerência? Não sei se quero mais falar de vida. Quanto mais falo dela menos sei e mais me aproximo da morte. Sorte?