Coleção pessoal de SaoGoncalves
O silêncio é um porto de abrigo entre o rumor dos dias e as sombras da noite.
Descem dos céus lâminas de luz
O explendor cortante da beleza transcendente do universo.
Ali, naquele pequeno espaço perdido dos homens, o olhar do divino espreita e acolhe no seu regaço o desamparo da humanidade.
Nada se vê da cidade estremunhada, sopra uma brisa lenta, um beijo, uma carícia no asfalto.
Os homens perderam-se nas crateras da vida. De um lado e do outro da ponte, o vazio e o silêncio!
Sós, as árvores encolhem os ramos, despojadas do vigor da primavera tardia.
Chove uma chuva miudinha, não há sons, nem as andorinhas atravessaram ainda o oceano.
A cidade acorda, a brisa fria da madrugada estende um manto de sedutora solidão.
Natal no mundo
Não basta escrever sobre aquele menino nascido numa manjedoura há cerca de 2 mil anos, natal era o princípio da luz divina encarnada na efémera passagem do homem na terra, o princípio da esperança nos homens. O princípio do deslocamento terreno e divino, o Natal era o momento de acontecer.
E acontecia!
Acontecia natal, na luz e nas sombras dos homens, na esperança e na desesperança, na partilha e na solidão.
E nasciam palavras e poemas, nascia amor!
E algures, o vazio do mundo continuava a existir.
Mulheres continuavam a dar à luz em terrenos de guerra, a fome a espreitar os olhares moribundos, os mendigos a arrastarem-se por entre as paredes grossas das catedrais. O sangue a jorrar nas paredes vazias, em terras inóspitas
Os barcos continuavam a despejar homens, mulheres, crianças nos mares da Europa. Nessas madrugadas de Natal, não havia lareira, nem mesas fartas, o medo alastrava-se nas frágeis embarcações, alagavam-se os dias de sentimento exaurido e triste. A fome, o frio, entranhava-se na dureza dos corações amargurados e desistentes.
E acontecia!
E de novo acontecia, a dor e a esperança, a anunciação, a fuga para uma terra prometida.
A coragem revestida duma amálgama de pranto e desconsolo!
O deslumbramento e o desassossego dos homens, numa terra minada pelo desespero.
E acontecia!
Uma criança que chora, outra que que desfaz embrulhos sem olhar para algum, a fartura a confundir o sentimento de injustiça.
Mesas fartas, mesas luxuosas, o cheiro a açúcar e canela, e o vazio opaco, invisível em cada uma delas!
Mesas de pedra, vazias, geladas! O aconchego frio das pedras das catedrais, crentes que passam, homens de boa vontade estendendo um pedaço de pão, um cobertor para enganar o frio, uma sopa quente. Uma fotografia esquecida, memórias onde a família ainda era um conceito de paz e estabilidade.
E homens e mulheres percorrendo as ruas vazias e frias de uma cidade qualquer, e homens e mulheres cansados dos dias, ouvindo os sinos de uma aldeia adormecida.
E o fluxo dos homens desesperados procurando a salvação!
E Natal acontecia!
São Gonçalves.
No toque dos dedos a ternura silenciosa das palavras mudas.
O desejo de se encontrar nua
Despojada de sentimentos entendiantes
Sentir apenas o toque do perfume
De um silêncio brando e desejado.
Imagens desfocadas, distâncias marcadas
entre o corpo e a alma, realidades invisíveis à razão...
seres à deriva
por entre nevoeiros, a distância oculta
corpos cansados, a saudade sem memória
restos de gente perdida nos farrapos da sua história.
Seres perdidos sem marca, sem rosto, sem tempo
carregam a escuridão nas vestes
sinais do desalento.
São tantas as portas fechadas, mundos desconhecidos a descobrir.
Quem saberá o segredo da fechadura?
Quem ousará transpor o silêncio do vazio?
Sinto o tempo passar implacável
O vento norte a beijar o rosto e a folhagem, é outono, as cores sedutoras esmaecem num terreno lavrado.
Revolvo o húmus da terra, vou ao mais fundo da transição da terra, descubro as raízes e o caudal transbordante de energia, a força transcendente da mãe...
É frágil a condição humana na sua efémera passagem.
As estações sobrepõem-se
Os amores nascem e morrem
Os leitos de folhas secas amaciam o chão, alimentam os pássaros.
De nada serve lamentar a passagem do tempo
Se souberes contemplar
O divino na luz errante de lua.
Saúdo o entardecer no espelho das águas, no bailado colorido das nuvens envolvendo o céu, como um abraço, como o descodificar de símbolos, numa linguagem de luz e de sombras.
Não há vultos, nem vozes, apenas o som da brisa soprando aos ouvidos da cidade uma canção melódica, finamente orquestrada nas harpas dos deuses.
É este entardecer que me acalma e me embala como o berço do rio que me viu nascer.
Anos e anos a contornar a tormenta
A fintar os desígnios dos deuses e dos homens.
Anos e anos a murmurar silêncios, as mãos trémulas, carregadas de esperança.
Na página dos livros, as madrugadas eram menos penosas.
Quiseste sempre fintar a sorte, encontrar um propósito que fosse verdadeiro. Mas nada te afastava dessa incapacidade de contornar a desventura.
E mesmo assim, são suaves as palavras, e mesmo assim não trazes nos olhos a cor negra da tormenta.
São de luz as sementes que carregas na palma das mãos.
Na vida ninguém aceita a culpa do desamor, do desencanto, do fracasso. Porque isso equivale a aceitar fragilidades que a sociedade incentiva a não ter. É preciso ser o melhor, é preciso cultivar o sentimento de perfeição, a imperfeição não cabe no dicionário dos dias. Talvez este seria o primeiro paradigma a reconsiderar, o de que o caminho da perfeição só se consegue aceitando todas as imperfeições...
É na fragilidade de uma gota de orvalho que se sente a efémera ligação dos laços.
Só os mais fortes se agarram à magia das silenciosas brumas, alimentando-se das infinitas gotas translúcidas.
Restam a memória das palavras.