Coleção pessoal de raulbardeiga
Malditos sejam os deuses!
que nos deram só a febre —
e não o infinito para ardê-la!
aqueles que plantam a dor em nossos corpos
e a regam com o veneno da incerteza.
Deus — ou seja lá quem desenhou esse esboço de carne —
condenou-me a ser
um ser tão pequeno, tão estreitamente humano,
e ainda assim —
carregado de sonhos desmedidos,
maiores que os pulmões onde tento respirá-los,
maiores que o corpo onde tento suportá-los!
Pela janela da minha casa,
o céu me olha com indiferença —
infinito, azul, mudo.
Tão vasto quanto o desejo de nele desaparecer,
de me dissolver em nuvem, em vento,
em qualquer coisa que não saiba o que é ser eu.
Malditos sejam os deuses que,
no entanto, deixam a dor crescer em nós,
como uma árvore podre,
somente para se deliciar com o vento que a faz tombar.
Viver — ah, viver! — é morrer em prestações diárias,
como um empréstimo mal feito ao universo.
Não há justiça no tempo.
Não há lógica nas intenções.
É uma punhalada embebida em perfume barato.
A inveja, a rejeição, e essa miríade de pequenas mortes sociais,
são os pregos do caixão onde nos deitamos acordados, sorrindo,
porque aprenderam-nos a chamar isso de vida.
É essa dor que não nos mata porque nos quer eternos.
Ah, se ao menos a consciência fosse um pouco mais burra,
ou o coração menos estúpido,
talvez o simples ato de respirar não doesse tanto.
Há um engarrafamento em minha cabeça.
Não de carros — desses já me cansei nas ruas —
mas de pensamentos.
Ideias que bateram uma na outra como caminhões desgovernados.
Palavras estilhaçadas. Conceitos esmagados.
E eu, no meio,
como um pedestre distraído que atravessou fora da faixa da lógica.
Meu psicológico está acidentado.
Não é figura de linguagem, não!
É um fato clínico — e ninguém sinalizou o caos.
E tudo continua fluindo lá fora —
gente indo, vindo, vivendo!
E eu? Eu estou aqui, preso entre as ferragens,
num cruzamento sem sinal,
onde todos os caminhos levam ao mesmo lugar:
nenhum.
Ah, para acender uma vela, o que é necessário?
É preciso que a escuridão me engula primeiro,
que ela me envolva e me consuma,
que eu não veja sequer o mais tímido raio de luz.
Não, não se pode gerar luz onde não há sombra,
onde não há ignorância,
onde o ser não é forçado a ser,
a querer, a tentar.
A luz existe porque a treva a empurra,
porque sem o medo do escuro, sem o cansaço de lutar contra ele,
não haveria chama,
não haveria sequer o esforço de um gesto.