Coleção pessoal de MESSIASCORREIA
É preciso olhar a flor dias a fio até enxergá-la.
Não é uma tarefa fácil.
Olhar a flor e ver a flor é um exercício da alma.
O eremita é aquele que busca se libertar do homem trivial e se elevar, na descida de si, para a terrível visão de uma face escondida.
Nutro uma desconfiança das multidões. Não há nelas atratividade e inteireza. Pela multidão não se chega ao centro do ser, mas o marginaliza. Na multidão, quase sempre, não se observa a sacralidade da linguagem; é próprio dela o desperdício das palavras. Curar-se das multidões, dentro e fora, eis um efeito da vida escondida.
A FORMIGA E O DIVINO
Há apenas uma formiga ocupando a catedral
A catedral estava dentro da formiga
Em seu ventre dormia o divino
RIACHO
Puxei com dois dedos a ponta do riacho e ele rio
Não entendi a causa do seu humor.
Vi que os peixes saltavam fazendo-lhe cócegas em seu ventre...
O rio chorava e corria.
O POETA E O RIO
O poeta não cobiça o peixe
lança a rede para capturar o rio
e feliz regressa pleno de nadeiras
Na tristeza da margem
o rio atravessa-lhe a nado
e do outro lado, córrego
A QUEDA DE DEUS
Vi quando Deus caiu da vagem
O vento a partiu e o divino se fez visto em queda
Até aquele momento estava em segredo
Dele não se tinha notícia
Pois a vagem era seu esconderijo
Foi o vento que desnudou o corpo de Deus
Ao tocar o solo era uma canção inaudível
Os insetos ouviam e se alegravam
As flores captavam a presença em pétala
Os pintassilgos saltitavam e repetiam
Os matos, em valsas, celebravam a queda de Deus
A queda de Deus encheu de humor a gaivota
O pássaro no arame esticado
E as formigas em fileiras visitavam
A queda de Deus foi o espetáculo daquela tarde
Ele se arranhou um pouco
Sujou suas vestes brancas
Mas amei Vê-lo caindo.
A NUDEZ DO NADA
Não há lados
Os olhos não avistam
Suspensão de toda consciência
Apenas o Vazio pleno do Ser
O desabrochar Eterno do Nada
O Vazio gera e espera nascer a não-parte de si.
A nudez do Nada obscena
O ritmo da palavra se encolhe ao Não-Definido
O silêncio do mundo ensaia O Vácuo Existente
No Vazio, Tudo É.
O OCO
Onde está o prazer em opinar sobre tudo?
Sou douto em vazios
Especializei-me em nada
Discursar sobre coisa alguma me completa
Passo horas imaginando o oco
Sou ocológico em exercício
Levanto o dedo para a face do vácuo
A consciência expande cata-vento
Do que digo, nada se aproveita:
há uma variação entre o nada e o coisa nenhuma.
Tudo é mistério! Um vendaval se forma em quietude. Um turbilhão que arde e reinflama. Deus no humano, o humano em Deus, um desejo que grita e cala, uma palavra que diz e some. Uma ânsia e uma busca ininterrupta. Assim é o místico! Tendo encontrado Deus, não o encontrou. Tendo Deus nele habitado, o torna vazio. Beija a divina face sempre em despedida, acaricia sua face em espelho, contempla-O sem visão enquanto fé. É o mais comum dos humanos, trivial, cotidiano e orvalha o infinito. Não sabe dizer senão descodificando e sua lógica é um susto, um soluço.
O místico é a harpa do Espírito. Do seu centro surge uma melodia que não vem dele mesmo, pois nele vibra o Eterno. Do místico não se espera coisa alguma, pois ele não tem coisa alguma a oferecer, Deus não é coisa- Nele se irradia o totalmente Outro.
O místico é alguém que em Deus procura Deus. É um lançado no abismo da fé e que se alegra na distância do divino e sente saudade quando perto. Um sinal de contradição para si mesmo, na clara evidência do divino. Em seu coração a intensa luz de Deus obscurece. O místico não interpreta Deus, contempla-o. Não o ver quando mira os olhos em sua face. Nele, tudo é distância e unidade. O paradoxo do místico diz da sua própria experiência de Deus. Ele é, por natureza, um sinal de contradição. Sua palavra e silêncio "é paradoxal", uma in-explicação do divino.
O místico, enquanto caminha, seu próprio chão se abisma. Seus pequenos passos alargam-se em mistério. Ele não caminha, é o mistério que lhe atravessa. Ele caminha lentamente, pois já encontrou o que não encontrou e conhece o que desconhece.
O Místico é uma seta apontada para o vazio, uma flecha presa ao arco e cravada no exato ponto invisível.
A planta tem vida quando fincada a terra. Enquanto suas raízes percorrem os abismos e a escuridão do solo, todo resto se dirige à luz. As folhas se estendem ao céu e suplica-lhe luz e chuva. Quão distante do sol – a copa da planta existe. Assim é o Místico.
Do místico não se espera coisa alguma. Dele exala apenas o vazio. Seu olhar é abismo e seu semblante nostalgia. É um pobre andarilho. Falta-lhe até mesmo a palavra. Não há o que aplaudir ou prestar-lhe homenagem, pois seu ser beira a inexistência.
o místico experimenta as delícias de Deus, quase sempre sem paladar. A graça aguça os recipientes dos seus sentidos elevando-os a profundidade de Deus. De outro modo, retira-lhe todo vigor e obscurece as faculdades a ponto do não–sentir. O não-sentir Deus é uma das formas mais profundas de estar com Ele, pois excede toda explicação.
Devemos falar de Deus sem excesso. Quando falamos excessivamente sobre Deus, Ele desaparece. Em seu lugar erguemos nosso próprio monumento e nos tornamos manipuladores. A quietude é a linguagem mais adequada para falarmos de Deus, uma vez que é assim que Ele se comunica aos homens. Deus é quietude! Nós o anunciamos com barulho e deformamos sua beleza. Não em si, mas em nossa percepção.
EM BUSCA DA DESCRENÇA
Crendo padeço de distância
O melhor mesmo é descrer por ser
Acreditar em Deus é distância
Almejo o não crer por união
Em Deus dispensam-se as formalidades
Em Deus cala-se o ser
E não mais se ora
Essa transverberação do eco
A profunda oração é quando se é
Em Deus não se quer Deus
Não se quer dons e favores
Em Deus ausentam-se milagres
Imagens
Códigos
Estruturas
Hierarquias
Dissolvem-se o que não é Deus, em Deus
Em Deus progredimos para pura fragrância
E se alcança a evaporação
Depois disso nada se sabe
Em estado último de consciência
Em Deus não há templo
Multidões
Barulhos
Debates
Nem mesmo silêncio
Há vazio de ego e Eu pleno
Não há centro e dimensões
Em Deus a consciência cai em abismo
Não há abismo e queda
Não há pai, mãe e número
Luz e escuridão
Em Deus não há Ele mesmo
Nele somos inaudíveis
No mundo tudo é ponte
O graveto
A folha
A ferrugem
A penugem
Vês aquela pluma?
Nela se abre uma passagem
E ao pisar a grama se tem notícia
Ao transpassar o mundo desnuda
E aonde se chega não é
Em Deus não se chega
Creio em Deus negando-O.
Não em Si, mas em meu entendimento.