Coleção pessoal de Marialins
O inimigo
A Coluna descansou
da marcha, na noite fria.
Ficaram olhos acesos
e a fogueira, de vigia.
Su su su
menino mandu
dorme na lagoa
sapo-cururu
Soldados dormem quietos
Debaixo deste telheiro
em cima pia a coruja
com seu piado agoureiro.
Su su su
menino mandu
Soldados dormem quietos
no bivaque de improviso
até as armas descansam
que este descanso é preciso.
Dorme na lagoa
sapo-cururu
Soldados dormem quietos
na barraca e na varanda,
eis de repente o inimigo
- Depressa, levanta e anda!
Depressa, são feras,
depressa ou quiseras
nas mãos do inimigo
cair, que o perigo
de perto ameaça
de morte ou mordaça
cadeia ou degredo.
Galopa sem medo!
Legalista do Inferno! .
donde o Governo -
tais feras tirou?
Ah! raiva que eu sou.
Depressa e a trote
esporas, chicote,
as crinas revoltas,
de rédeas bem soltas
e bridas também
(Que medo não tem!)
depressa e a trote
mão no cabeçote
o pé na estribeira
encilha e carreira!
esquipa montado
depressa, soldado
que medo não tem.
Legalista do inferno
não vale um vintém!
A Coluna descansou
da marcha na noite fria.
Picaram olhos acesos.
E de repente partia.
Cantiga das mães (Para minha mãe)
"Fruto quando amadurece
cai. das árvores no chão,
e filho depois que cresce
não é mais da gente, não.
Eu tive cinco filhinhos
e hoje sozinha estou.
Não foi a morte, não foi,
Oi!.
foi a vida que roubou.
Tão lindos, tão pequeninos,
como cresceram depressa,
antes ficassem meninos
os filhos do sangue meu,
que meu ventre concebeu,
que meu leite alimentou,
Não foi a morte, não foi,
Oi!.
Foi a vida que roubou.
Muitas vidas a mãe vive.
Os cinco filhos que tive
multiplicaram por cinco
minha dor, minha alegria.
Viver de novo eu queria
pois já hoje mãe não sou.
Não foi a morte, não foi,
Oi!
foi a vida que roubou.
Foram viver seus destinos,
sempre, sempre foi assim.
Filhos juntinho de mim,
berço, riso, coisas puras,
briga, estudos, travessuras,
tudo isso já passou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.
Canção do amor livre
Se me quiseres amar não despe somente a roupa.
Eu digo: também a crosta feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti,
pelo sangue recebida tecida de medo e ganância má.
Ar de pântano diário nos pulmões.
Raiz de gestos legais e limbo do homem só
numa ilha.
Eu digo: também a crosta essa que a classe gerou
vil, tirânica, escamenta.
Se me quiseres amar.
Agora teu corpo é fruto.
Peixe e pássaro, cabelos de fogo e cobre. Madeira
e água deslizante, fuga ai rija cintura de potro bravo.
Teu corpo.
Relâmpago, depois repouso sem memória, noturno.
Metamorfose
Fui moleque, jornaleiro, nunca tive opinião,
ajudante de pedreiro,fui chofer de caminhão,
trabalhei na Plataforma,operário de sabão,
já morei oi! já morei no Taboão.
Carneirinho! Carneirão!
Olha pro céu! Olha pro chão!
Céu é Barra, é Avenida, outra vida!
nunca a gente foi lá não.
Nem eu sei como foi isso, foi feitiço,
arte do Cão, mas um dia fiquei rico que nem o rei Salomão.
Chave do mundo, tenho na mão.
Desceu o céu! Subiu o chão!
Minha gente venha ver coisa que nunca se viu,
um mulato virou branco, subiu! Subiu!
A formiga criou asas,o pato passou a ganso,
lagarta virou besouro, de repente virei tudo,
virei até um rei mouro, virei sábio, virei gentleman,
meu cabelo virou louro, virei genro, industrial,
tabu, ministro, escritor,quase viro ditador.
Agora cheguei em cima, agora vi que eu sou dois.
Quem sois?
Minhas senhoras:
Meus senhores:
O meu drama começou.
Serei moleque e rei mouro,serei dentro e serei fora,
serei ontem e serei hoje, serei noite e luz da aurora?
Quem sois? Serei eu e serei tu,serei Sancho e D. Quixote,
serei Deus e Belzebu? Não posso viver assim!
Serei Pierrot e Arlequim,serei anjo e homem carnal,
serei o ser e o não-ser,serei o bem e o mal?
Serei foice e serei sigma?
Enigma! Que serei eu afinal?
Ai de mim! Serei o princípio e o fim?
(1944)
Canção da Liberdade
Eu só tenho a vida minha. Eu sou pobre, pobrezinha,
tão pobre como nasci,não tenho nada no mundo,
tudo o que tive, perdi. Que vontade de cantar:
a vida vale por si.
Nada eu tenho neste mundo, sozinha!
Eu só tenho a vida minha.
Eu sou planta sem raiz
que o vento arrancou do chão,
já não quero o que já quis,
livre, livre o coração,
vou partir para outras terras,
nada mais eu quero ter,
só o gosto de viver.
Nada eu tenho neste mundo,sozinha!
Eu só tenho a vida minha.
Sem amor e sem saúde, sem casa, nenhum limite,
sem tradição, sem dinheiro,
sou livre como a andorinha,
sua pátria é o mundo inteiro,
pelos céus cantando voa,
cantando que a vida é boa.
Nada eu tenho neste mundo, sozinha!
Eu só tenho a vida minha. (1943)
Vamos fazer limpeza, mas geral e vamos deitar fora as coisas todas que não nos servem para nada, essas coisas que não usamos já e essas que nada fazem mais que apanhar pó, as que evitamos encontrar porquanto nos trazem as lembranças mais amargas,as que nos fazem mal, enchem espaço ou não quisemos nunca ter por perto.
Vamos fazer limpeza, mas geral,talvez melhor ainda uma mudança que nos permita abandonar as coisas sem sequer lhes tocar, sem nos sujarmos, que fiquem onde sempre têm estado; vamos embora só nós, vida minha,para voltar a acumular de novo.
Ou vamos deitar fogo ao que nos cerca e ficarmos em paz com essa imagem do braseiro do mundo face aos olhos
e com o coração desabitado.
Convém não facilitar com os bons, convém não provocar os puros. Há no ser humano, e ainda nos melhores, uma série de ferocidades adormecidas. O importante é não acordá-las.
Urge preveni-los do muito que se poderia fazer, com apoio no saber científico, e do descalabro e pequenez do que se está fazendo
Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui.
Tentei salvar os índios, não consegui.
Tentei fazer uma universidade séria e fracassei.
Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei.
Mas os fracassos são minhas vitórias.
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.
Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!
Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!
"Eu queria, como tu, não saber que
os outros não valem nada
pra os poder admirar como tu!
Eu queria que a vida fosse tão divinal
como tu a supões, como tu a vives!
Eu invejo-te, ó pedaço de cortiça
a boiar a tona d'água, à merce dos ventos,
sem nunca saber que fundo que é o Mar!"
Reconhecimento à loucura
Já alguém sentiu a loucura
vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exatamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem
nem resignação?
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente
e ganhar-Ihe, e ganhar-Ihe
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo?
Tu Só, loucura, és capaz de transformar
o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais.
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas.
Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar.
A SOMBRA SOU EU
A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei dó que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e que não me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!
Bendita seja a Mãe que te gerou.
Bendito o leite que te fez crescer.
Bendito o berço aonde te embalou
A tua ama, para te adormecer!
Bendita essa canção que acalentou
Da tua vida o doce alvorecer...
Bendita seja a Lua, que inundou
De luz, a Terra, só para te ver...
Benditos sejam todos que te amarem,
As que em volta de ti ajoelharem
Numa grande paixão fervente e louca!
E se mais que eu, um dia, te quiser
Alguém, bendita seja essa Mulher,
Bendito seja o beijo dessa boca!
Poema de aniversário
Procurei no dicionário,
Com paciência e cuidado,
O real significado
Da palavra aniversário.
Aquele livro pesado,
Mestre dos visionários,
"Pai dos burros" batizado,
Pareceu-me sectário,
Ao responder meu chamado.
Deveras decepcionado,
Joguei o meu dicionário
Na estante, empoeirado,
Para pregar, solitário,
O meu significado
Da palavra aniversário.
Diz assim, o verbete lendário,
Ontem, por mim criado:
"Aniversário: espécie de relicário,
Muitíssimo bem guardado
Nas folhas do meu diário,
Dos versos que eu escrevi,
Com todo amor, e não li,
Durante o ano passado."
Escolha feita, inconsciente
De coração não mais roubado
Homem feliz, mulher carente
A linda rosa perdeu pro cravo
O segredo da felicidade é o seguinte: deixar que os nossos interesses sejam tão amplos quanto possível, e deixar que as nossas reações em relação às coisas e às pessoas sejam tão amistosas quanto possam ser.
O Coração Risonho
A tua vida é a tua vida
Não a deixes ser dividida em submissão fria.
Está atento
Há outros caminhos,
Há uma luz algures.
Pode não ser muita luz mas
vence a escuridão.
Está atento.
Os deuses oferecer-te-ão hipóteses.
Conhece-las.
Agarra-las.
Não podes vencer a morte mas
podes vencer a morte em vida, às vezes.
E quanto mais o aprendes a fazê-lo,
mais luz haverá.
A tua vida é a tua vida.
Memoriza-o enquanto a tens.
És magnífico.
Os deuses esperam por se deliciarem
em ti.