Coleção pessoal de MarceloCostaDifel

Encontrados 10 pensamentos na coleção de MarceloCostaDifel

Quarenta e tantos anos
e ainda consigo pegar rodovias internas
sem que ninguém perceba.
Guiando no limite,
vagando entre dois mundos,
entre o lúdico e o tédio,
entre a boca e os dentes,
entre o chão e o amor.
Às vezes fechando os olhos,
às vezes dias sem dormir,
às vezes o copiloto de lá
vira o piloto de cá
e eu tenho que mandar o de cá pra lá
para assegurar não deixar perder a linha que faço de estrada
e que me garante
o caminho de volta à sanidade.

Porque é isso que é uma linha muito,
mas muito fina,
e há quarenta e tantos anos
eu tenho medo de me perder dela
e me perder aqui dentro,
porque sei que não teria volta
e aqui fora seria um caos,
minha casca acabaria jogada num beco qualquer,
numa prisão ou num hospício,
por ter me perdido
abusando da mais perigosa das drogas,
a droga de querer estar fora do alcance
do mundo, das pessoas,
dessa vida áspera
e em um lugar seguro onde conheça tudo
e nada possa me atingir.

E é por isso que
há quarenta e tantos anos
enquanto me gritam ou mandam enumerar papéis,
viver sem respirar,
correr pra pagar as contas,
acreditar nos homens, nos bancos e nos juros
ou aprender fórmulas,
ao invés de pegar uma estaca
e enfiar entre seus olhos
para que me façam sombra em um dia de sol,
apenas sorrio e agradeço,
pois enquanto minha boca estica até as orelhas
meu piloto de fora
é mais uma vez copiloto aqui dentro
e estamos sumindo na estrada
fazendo toda essa dor maldita virar poeira.

2017

Enterrei mais coisas nessa vida
que um filhote de cachorro

Nesse cemitério deserto,
uma pausa para respirar.
Olho em volta,
um sem número de covas abertas,
muita lama e poças de chuva,
e nenhum guarda para me parar.
O fato, amigo, é que enterrei mais coisas nessa vida
que um filhote de cachorro.
Talvez por herança genética,
de velhos lobos hoje tão non sense,
mas ainda assim,
um filhote histérico,
bobo,
desesperado
e nem por isso inocente.

Respiro fundo.
Tomo um gole antes de recomeçar
e dou uma boa olhada em volta.
Sei que o que é morto deve ficar morto,
mas é preciso
quando enterramos errado,
sem partes,
ou varremos dormindo e não falecido
pra debaixo do tapete,
de bruços ou sem pontos finais,
sem lápides ou fortes trancas nos caixões.
E como em uma gincana de crianças
onde achar uma pista leva a outra,
cada cova que eu abro
me leva exaustivamente a uma diferente
que ainda preciso abrir.

A garoa fina desce pelo rosto,
tomo coragem,
ergo a pá com um brinde
e vou para a cova seguinte.
"-Mais uma rodada?",
o barman pergunta.
"-Espero que a última...",
respondo com os olhos.
Pois esse cemitério que carrego
precisa dar descanso
a esse coveiro cansado
de enterrar erros
e fraquezas
e desculpas
e pesos
e medos.

01/03/2017

Janeiro, tem que ser diferente, vai ser diferente. Janeiro.
Eu estou aqui, brisa da chuva no rosto,
gosto de tempestade na alma, correndo em passos curtos,
tentando demonstrar calma.
Mas não há.
Não há nada calmo em mim.

Tenho um terremoto de três anos para escavar
e tentar encontrar coisas que deixei pra trás
por baixo das pilhas de caixas de papelão.
Porque foi assim Janeiro.
Não sabia o que fazer com as coisas então colocava sempre numa caixa.
Se eu não via, não estavam mais lá.
Se eu não lembro eu não fiz.

E a vida seguia.
Carregando caixas fechadas de casa em casa,
de mudança em mudança.
Só que o sol me atravessa Janeiro, e minha sombra parece peneira.
Não dá mais.
Tem que ser diferente.

Pensa assim, pode ser bom.
Feito primeiro dia de aula na escola nova,
assustador mas novo, passa uns dias e já tem gosto,
passa uns meses e já tem saudade.
E então como em uma casa toda branca e sem móveis
levaria uma caixa por vez, abriria, tiraria as pilhas de vida,
daria risadas, choraria, pensaria e guardaria uma ou outra coisa
mas aprenderia a dizer adeus.

Porque faz parte da vida.
Não dá pra carregar tanto peso assim pra sempre.
Não é Janeiro?
Não é?
Tem que ser diferente, vai ser diferente.
Janeiro.
Sei que vai…
Sei que vou…

Dezembro 2008 – “O Diabo Sempre Vem Pra Mais Um Drink”

E se eu disser que nunca sei mesmo a direção?
E se eu disser que toda vez que eu achei que ia acertar eu na verdade só arrisquei?
Você ainda ia me querer?
Diz.
Eu seria ainda o que sou para você?
E se eu disser que eu nunca soube nada de minha vida, que eu sempre deixei tudo passar por mim e as vezes ia, as vezes não ia, dependendo do gosto do café.
Você ia querer?
Será que ia mesmo?
Minha vida é correr contra os carrinhos na montanha russa esperando vencer o impossível e não ser levado outra vez para trás.
Você entende?
Ainda assim quer?
Pensa…
Eu não sei nada.
Só sei ser assim.
Eu sequer me entendo.
Nunca consegui brincar de ter certeza.
Nunca consegui 100% de não dúvida.
Ainda?
Ninguém esqueceu a sombra em meu quarto.
Ainda assim eu fugi.
Ninguém passou com pressa por mim.
Ainda assim segui… e caí no buraco da árvore.
Eu sempre fui…
Sempre passei…
Sempre acreditei em minhas próprias estórias.
E nunca dormi.
Sempre vi tudo chacoalhar meus cabelos e me deixei levar.
É isso?
Nunca morei em uma só casa.
Nunca fiquei em um só plano.
E é sempre o gosto do café.
Nada concreto.
Nenhuma teoria.
Nenhum cálculo.
Só correr contra a brisa pra sentir o gosto da chuva na boca.
Nunca cresci.
Agora perdi o trem.
E ele não para mais pra mim.
E se eu dissesse que eu também não quero que ele pare.
Você ia querer?
Será que ia mesmo?
Eu mesmo nunca sei…

2004 – “Os Funerais Do Coelho Branco”

A dor da alma não se compartilha.
E não passa.
É atemporal.
Não diminui com a idade.
Vem como a mão do demônio passando pelo peito
e espremendo tudo lá dentro.

Ela te vence.
E sempre, sempre se supera.
Você acha que se conhece.
Acha que nunca mais.
Mas ela te conhece mais ainda.
Você fica velho.
Ela fica sofisticada.

Essa maldita dor da alma
nunca vai me dar paz.
Essa maldita dor da alma
sempre quer me vencer.
É como uma máquina de tatuagem
persistente e sanguinária
que a gente tenta ignorar
mas sabe que está ali.
Te rasgando.
Descaralhando sua vida.

Insistindo em te mostrar
que você não é forte.
Mas da mesma maneira que a dor da tatuagem
te deixa uma marca bonita
a dor da alma te faz saber
que você tem alma.

E isso já me faz erguer
discretamente
um pequeno sorriso no canto do lábio.
Porque enquanto essa dor desgraçada
me acompanhar
pelo menos sei
que estou vivo.

Setembro 2010 – “O Diabo Sempre Vem Pra Mais Um Drink”

O cachorro late no portão
e tenta desesperadamente
passar algo além do focinho.
Ele quer sair
e mijar nos postes
com os outros cachorros.
Mas ninguém entende.
Ele pertence aos donos do portão.
Então ele grita.
Acham que ele é bravo.
Ele grita mais.
Acham que ele incomoda.
Aí jogam água
e além de puto ele sente frio.
Pensam em adestrar
no Método Ludovico
mas sabem que no fundo
ele será sempre o mesmo cachorro.
Então, numa certa noite,
cortam suas bolas.
E o cachorro não late mais.
Não quer mais gritar.
Não quer mais sair do portão.
Não quer mais ver os amigos
nem mijar nos postes.
Só quer ficar velho,
doente e acabar logo com isso.
Soa familiar?
Você deve ter visto algum cachorro desses
em algum espelho por aí
ou em qualquer reflexo de vitrine.
Pois é…
Agora o portão fica aberto
e o cachorro olha pra rua
sem vontade de sair
nem de latir.

Setembro 2010 – “O Diabo Sempre Vem Pra Mais Um Drink”

No meu sonho havia esse deserto.
Deserto americano sabe.
Como de filme.
Não como o do Saara.
Que também só vi nos filmes.
Mas havia esse deserto, enfim,
e eu caminhava, caminhava, e me sentia só.
Passava a noite inteira caminhando nesse sonho
e nunca chegava a lugar algum.
Mas essa não era a pior parte.
Toda vez que ventava eu precisava correr atrás de
algo para me esconder.
Uma placa, uma pedra, um esqueleto de vaca morta,
uma tampinha de garrafa.
Porque parecia que não só estava ali como também
era feito de areia.
Eu era o próprio deserto.
E toda vez que ventava forte um pouco de mim ia embora.
E eu era cada vez menos tudo que conhecia.
Até que, numa parte do sonho,
tanto de mim já tinha ido embora com o vento que
começava a doer.
O vento soprava e a pele já tinha ido embora faz tempo.
Estava só nos nervos, espirrando sangue
e sempre doía muito.
Nessa parte eu sempre acordo
e a dor fica.

(2005)

Meu corpo é um casco vazio.
Com um coração pendurado em um pêndulo.
De cada lado uma adaga com a ponta bem rente.
E pra qualquer lado que eu me mova dói.
(…)
Meus olhos vivem pra dentro.
Contemplando um universo escuro, infinito e silencioso.
Para todas as direções horizontes que nunca chegam.
E pra onde quer que olhe não acho meu caminho.
(…)
Minha alma tem gosto de mofo.
Seca a língua, raspa a garganta, perturba o sono.
Se debate feito louca por todo meu corpo.
E sempre tenta fugir de mim.
(…)
Solidão é assim, a gente tenta dividir mas nunca consegue.

Janeiro 2010 – “O Diabo Sempre Vem Pra Mais Um Drink”

Meu corpo é um casco vazio.
Com um coração pendurado em um pêndulo.
De cada lado uma adaga com a ponta bem rente.
E pra qualquer lado que eu me mova dói.
(…)
Meus olhos vivem pra dentro.
Contemplando um universo escuro, infinito e silencioso.
Para todas as direções horizontes que nunca chegam.
E pra onde quer que olhe não acho meu caminho.
(…)
Minha alma tem gosto de mofo.
Seca a língua, raspa a garganta, perturba o sono.
Se debate feito louca por todo meu corpo.
E sempre tenta fugir de mim.
(…)
Solidão é assim, a gente tenta dividir mas nunca consegue.

Janeiro 2010 – “O Diabo Sempre Vem Pra Mais Um Drink”

Vem então correr que os pesadelos estão velhos demais e cansados.
Vem olhar as estrelas que é tão lúdica a pareidolia e há só um metro entre nós e o luar.
Somos fugitivos de nós mesmos, e a poeira das estradas faz difícil respirar.
Les enfants sauvages como da primeira vez, seguir viagem sem medo dos dentes do tempo mordendo nossas pernas.
Sem estar em guerra, que me falta teu pedaço de mim.
(Julho 2015)