Coleção pessoal de marcellasaraceni

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⁠A mulher da missa
Tem as orações decoradas
Pergunte a reza do santo tal
Sobre casamento ela fica calada
Condena as que por ela passam
Não são senhoritas recatadas
A mulher da missa
Do padre é grande amiga
Exige respeito de todos
Pois não é uma rapariga
Mas quando ajeita o vestido comprido
Deixa à mostra a cinta-liga

* escrita em 2008 *

Vi o fio da vida sendo tensionado:
De um lado o corpo, o tempo, o esgotamento.
Do outro uma mente que sente
e o apego.
Eu vi a pressão formada no centro pelos extremos da mesma coisa.
Até o fio se romper.
E enfim voltar a ser.

Eu poderia ser mais equilibrada
Mas fui criada solta na cidade e vi de tudo
Estive com a burguesia e sua mesa farta de lamentações
E com os oprimidos que celebravam e bebiam seus instantes de glória
Eu disse para mim o que era certo ou não
E tantas vezes errei
Mas carreguei nas costas o peso das escolhas que fiz
Já culpei meus pais por ausência e ex namorados por falta de paciência
Hoje me dispo de mágoas, permaneço em frente ao espelho e aceito que tudo sempre foi reflexo
Tudo
Ponho a mesa para minhas sombras sabendo que elas não chegarão sozinhas
Trazem também a luz que me habita
Estão sempre juntas e não desistem de mim
Abraço a enormidade complexa e tão simples e diabólica que sou
Acarinho meu passado, danço com o presente e sorrio para o futuro distante
Se me sinto julgada percebo que a juíza está em mim
As vezes esqueço meu poder e me escondo embaixo do cobertor de ilusão
Mas quando saio vejo a frase de batom no meu espelho: “Você é incrível”
Eu sou
Incrível errante da peça da vida
Somos todos artistas
Minha tia cismava que eu seria atriz
E sou
Encarnei minha vida como a história única que é
Não quero ser ninguém que não eu
Quando penso quão difícil é existir
Olho novamente sobre outra perspectiva e me (re) encanto
Sou privilegiada
Sou abastada de questões e embora isso pese,
É parte integrante e indissociável do meu personagem-ser
Aceito todos os tropeços, as palavras não ditas, as repetitivas
Não finjo mais ser o que não sou
As vezes sim, é verdade
Dói ser o que se é e ainda não assumo todos os meus desencaixes
Que são muitos
E está tudo ok
Encaro como a oportunidade de ser um outro alguém
Só não posso me apegar ao personagem
Sempre amei histórias
As primeiras edições são tão cruas
Tudo que escrevi foram rascunhos do que existe hoje
Mas o conteúdo é o mesmo com parêntesis e correções:
A alma humana imoral
As insignificâncias
As ânsias
E o culto ao direito de errar
Não sinto nem aceito pena
Estou aberta e jogada ao mundo
Tudo pode me habitar

⁠Eu queria, algum dia, habitar o espaço onde minhas memórias estão guardadas
Eu queria entrar nesse lugar onde minhas experiências dançam juntas e pairam no ar
Queria acessar a imensa biblioteca dos livro que li
Olhar a tela onde passa o compilado de tudo que vi
Eu queria enterrar meus pés na mistura dos solos em que já pisei
Mergulhar no oceano das águas que penetrei
E nos olhares em que me afoguei
Eu queria estar no infinito dos abraços que já troquei
E acessar o arquivo da verdade que rasguei
Eu queria tocar o rosto formado por todos que amei
E a poesia criada pelas palavras que vomitei
Eu queria reaprender o tanto que esqueci
Descobrir o aroma dos cheiros que senti
E em uma dimensão sem tempo
renascer no que já vivi
Eu queria encontrar onde todos os caminhos se convergeram
E acordar os sonhos que adormeceram
Estar na papila degustativa das primeiras refeições
E pairar no vento sublime guiado pelas canções
Eu queria navegar
À luz do meio dia
Rumo à cidade vazia
Da Eutopia

⁠aquela época em que pensamos em escrever cartas à alguém


Já chegastes a ver alguma vez esses pequenos seres brilhosos que fazem do mar um grande céu estrelado?
S- p-i-r-o g-i-r-o

Eu virei o ano mergulhando nua na água cósmica da costa verde
pensava que podia ser a onda do sintético
porque eles colam no corpo da gente e viram parte
é psicodélico

Ver a festa de fora também
sombras que dançam e comemoram que o amanhã vai chegar
e tudo pode mudar mais uma vez
ufa
respiro fundo nessa esperança

Lembranças passam como os spiro giros
Estou muito presente na companhia da Malu
Mas inevitavelmente eu penso
nas ondas que me acertaram
como mergulhei muito fundo
esperei a espuma passar
boiei depois da ressaca

Quantas vezes você morreu esse ano?
Eu parei de acompanhar depois que enterramos nós duas

⁠o sonho oxigenado em uma realidade asfixiada


Lhe escrevo hoje uma carta de liberdade.
Onde ultrapassamos a barreira da materialidade e pairamos como aves voadoras no todo.
Nossos cabelos se misturam ao vento e os corpos se camuflam às paisagens.
Temos olhares animais e toques sutis que quando se encontram,
fundem-se formando portais.
Somos povos de pedra com espíritos de planta.
Damos origem à outros seres feitos de energia sem forma.
Rodopiamos nas espirais e adentramos as cores do arco íris.
O mundo é feito à imagem e semelhança do que criamos.
Nossa linguagem é o sentimento cristalino, livre de dicotomias,
pleno em se saber completo em seus polos.
Todos os elementos nos sorriem pela alma do Universo.
Desconhecemos barreiras, é o puro astral que nos carrega.
Nosso fluxo é o natural. O que nos mantém vivas é a vida de tudo.
Enxergamos o fio dourado que nos permeia e segue tecendo
a existência infinita e seus fenômenos.
Ainda respiramos. O ar divino que não tem densidade.
Sem pressa e em outro tempo nos movemos pelas vibrações:
através das alquimias que transformam, unem opostos e se fundem.

Habitamos na correspondência dos planos e no transbordamento dos espaços.

⁠Ei, você
Por que esse medo de cair
Por que esse nó no teu estômago se desde que veio a este mundo
tudo o que mais fazes é cair

Você que se expõe às beiras das alturas
que conhece a cor da rota para o abismo
você que se estilhaça que se transfigura
as vezes caminha torto até o próximo buraco da próxima esquina
por que o medo da queda

Eu sei o que você leva
eu lembro o quanto caminhou por estradas
em que nunca te disseram se eram seguras
eu lembro as porradas os abusos
a liberdade extrema e a opressão

Eu vejo as dores que carrega dentro de esconderijos
como o apêndice
que é esquecido até que dói
também vejo as luzes a poesia
o amor que transportas por todas as células

Te agradeço por ter suportado tanto
o que tantas vezes não aguentei
mas sabe
na verdade sim
porque ainda sou parte de ti
precisamos nos alinhar

Olha quero te dizer que sei que tens uma outra inteligência
além da minha
e prometo ouvi-la cada vez mais
sutilizar a existência dessa alma que te habita
para que possas sempre dançar por aí sem mim
deixar que fale a tua linguagem

Te agradeço também por ser morada leve e aquecida
ainda nas maiores tempestades

Quando quiser


Cai


É seguro

⁠Poetas e melancolias dividem a mesma camaa tempos
- isso não é mesmo nenhuma novidade

⁠Eu sóbria
Você embriagada
Tua boca amarga
Me procurou
O corpo sem peso
Cai sobre o meu
E depois da madrugada
Nada ficou
No dia seguinte
O gosto dormido
Não combinava
Com o doce
Do café da manhã

⁠Beleza delicada
Energia carnal
Sabe que é uma Deusa
E tambem um animal
Pantera que me adentrou na mata
Em minhas cavernas profundas
Viu a noite mais escura
E ali ficou intacta

Compartilhamos o salgado gosto
De lágrimas e saliva
Trocamos de pele
Rasgamos a carne
Lambemos as feridas

Bruxa cigana
Teu corpo é fogo
Não te quero só na cama
Mas no meio da mata
E no meio do povo
Eu sei que te excita
E adoro tudo que é novo

Mergulho em tuas dores
Abraça minha solidão
Somos feras com asas
Sem medo de tirar os pés do chão
De mergulhar profundo
De pisar em brasa
De penetrar o olhar

Com você aprendi a me amar
Mais um pouquinho…
E a identificar
Cada pedacinho
De você em mim
De mim em você
Você em mim
Eu em você

Sementes solares
Almas elementares
Mulheres de resistência
Dançando juntas
Em mais uma existência


Essas linhas vem manchadas de lágrimas e cheiro de sangue
Escrevo pois não tenho mais voz para gritar
Para que essas palavras possam eternizar minha revolta
E eu possa deixar a alguém esse vômito de uma vida
Escrevo porque em meu corpo não cabe
Está coberto por costuras e buracos

Remendo as letras que se perderam nas dúvidas
Que não são minhas
Mas de um povo que só questiona mulheres
E faz com que a gente pense dez vezes antes
De entrar em erupção
Que faz com que a gente morra de medo
Fale mais baixo
Seja sombra

Contorno cada palavra com a raiva guardada
E ainda que queimem os papéis grafados
Eles já terão chegado
No peito rasgado de cada fêmea que leu
De dentro delas não há como arrancar
A força internalizada pela dor de todas

Não sou nada além de uma mulher que resiste
Isso é tudo que me basta
E vou parir por escrito estampado e marcado
Um exército de lobas
Devorando o patriarcado

c⁠aminha pelo mar de provações lentamente
suavemente
encara a raiva que lhe habita e aceita
traz o peso nas costas
do feminino machucado
recalcula a rota da vida
profetiza palavras do coração
sonha um sonho que não sabe
carrega a força que não enxerga
ilumina o que não acredita
finalmente se ama
se perdoa
abraça sua criança ferida
quer caminhar feliz e leve
quer se curar
registra por vários meios
- escreve sua própria história

⁠Renasço em cada instante que me faço
Planta luz água fogo mato

Foi a terra que me pariu
Foi a terra que me pariu

Corro para os braços da minha mãe
A queda desagua em mim
Eu solo fértil
Broto
Flor que desabrocha e voa
Capitã do mato
Semente viva de amor
Circulo em êxtase esse espaço

Esse som corre em mim
Esse vento me leva
Essa cor de verde carrego no olhar

Nada se demora pois tudo é eterno no agora
Não tenho pressa em pertencer
Daqui sou vim e retorno
Feita de asas garras e cascas
Rocha firme e cheiro sutil

As clareiras das árvores me mostram o caminho
O pássaro já fez seu ninho
Eu reencontrei o meu

⁠Eu desejo que você possa enxergar a magia que existe em sua vida.
Que perceba que ela não está apenas em rituais, noites de lua cheia, em volta da fogueira,
A magia está em tudo.
Na intenção que você coloca para atrair o que deseja, na percepção da voz interior que sussurra no coração,
No reencantamento com o mundo através do seu próprio olhar, na alquimia da transmutação de sentimentos, pensamentos,
Ações, na co-criação da realidade, do seu mundo, na não submissão, na crença em si.
Eu desejo que a magia possa despertar e permear a sua vida.
Que você não permita que ninguém tire de ti esse poder que tem.
Que todas as sábias anciãs e as bruxas que te habitam possam ser suas conselheiras, companheiras e guardiãs em quaisquer encruzilhadas da vida.
Que a energia dos 4 elementos te fortaleçam.
Que possa visualizar a natureza sorrindo e ensinando em seus pequenos detalhes.
Que saiba que não está sozinha.
E que a maior magia que existe é ser você.

⁠O que o espelho mostra
É uma imagem que construo
Dessa carcaça que peguei emprestada
Vou devolver com a etiqueta de frágil rasgada
E cheia de marcas

Não vieram instruções na embalagem
Investigo e uso à vontade
Antes que seja tarde

O que o espelho não mostra
As vezes vejo
As vezes não
As vezes veem
As vezes criam
As vezes some

O que o espelho não mostra
Eu sinto
Está aí dentro dessa carcaça
Assim como em qualquer desgraça
E numa garça
Distante
Que faz como tudo que é real
- Passa

⁠Falo pouco por figuras de linguagem
Sou crua
Minhas palavras só conseguem ser literais
Aposto
Que meu oposto complementar
é Manoel de Barros

Seguro um pedaço de pão pingando azeite sobre a folha
Olhando de cima para ela como se quisesse dar-lhe forma
Criar para ela um corpo
- Consigo visualizá-la -

Chupo os dedos e pego o lápis
Escrevo no papel com gota de gordura
Minhas palavras tem fome
- Elas não são light

⁠Eu adoro me pegar desprevenida
Com o lápis na boca
E a vigília silenciosa
Pela palavra carregada no vento
Por vê-la brilhosa reluzir no céu
E encaixar nua
Confortavelmente
Nas linhas de ouro
Que criei para elas

⁠Nasci atrasada
- Eu preciso acompanhar as borboletas

⁠Folhear em câmera lenta
A poesia do teu corpo
Ler as notas de rodapé
Escondidas em tua virilha

- Recitar os versos vibrantes das tuas pernas trêmulas