Coleção pessoal de LuciaCarmen
À mesa com feras
Almoço com e janto com feras;
ursos, tigres, leões, zebras,
girafas e elefantes.
Gorilas também e até rinocerontes.
Sento-me a olhar, olho tudo em volta e fico a pensar:
quando é que meus filhos vão crescer para seus brinquedos arrumar?
Mas na vida, tudo fossem essas feras.
Calam-se, não rugem e não atacam.
São feras domadas, feras manipuladas.
Pior são as feras da vida,
Pessoas desalmadas e sem amor.
Pessoas que precisam conhecer o Criador.
Ainda há.
Ainda há lugares para se olhar, ainda há olhares para se ver, ainda há sorrisos a cativar, ainda há montanha para subir, ainda há mares para se mergulhar, ainda há brincadeiras de crianças, ainda há divertimento sem gastar, ainda há abraços e aconchegos, ainda há amor para se dar, ainda há aquela esperança que espera a caminhar.
Ainda há os frutos a saciar, ainda há a relva para se arrastar, ainda há as fontes da natureza, ainda há caminhos a caminhar, ainda há solidariedade em cada ser, ainda há mãos para se dar, ainda há aquela gargalhada, ainda há passado para aprender e futuro para sonhar.
Ainda há amigo de verdade, ainda há receitas a copiar, ainda há gestos de cortesia, ainda há enxovais para bordar. Ainda há de Deus a misericórdia, ainda há tempo para mudar. Ainda há família muito unida na mesa de jantar, ainda há escolas que acreditam e ajudam a caminhar.
Ainda há a pura honestidade, jóia tão preciosa, ainda há atitudes de amizade sem nada em troca esperar. Ainda há “nós” na conjugação dos verbos, ainda há coisas a se doar. Ainda há médicos pela causa, ainda há fé e dom de lutar.
Graças a Deus muita coisa boa ainda há.
O branco do papel
Acordei hoje com uma enorme vontade de escrever. Escrever sobre tudo. As idéias fervilhavam em minha mente com tanta velocidade que os meus gestos não acompanhavam.
Há uma vida com tantas experiências, uma gama de acontecimentos comuns, incomuns, pitorescos. Há sonhos que foram vividos e que estão por se viver.
Há personagens, idéias, desejos, acontecimentos e cenas que podem ser transcritas para o papel com muito bom humor.
Acordei hoje com uma enorme vontade de escrever, mas cadê?
Olho para o branco do papel que me afronta e não consigo delinear uma linha sequer.
Olho para o branco do papel e penso em fazer um origami, mas lembrei-me, de repente, que não aprendi esta milenar arte japonesa.
Olho para o branco do papel e sei que nenhum sabão o faria tão branco.
Olho para o branco do papel e penso que o reciclado é nobre em sua função de reaproveitamento, mas por isso não é tão branco.
O branco do papel me afronta.
Quero compartilhar o meu amor pela escrita, quero compartilhar pensamentos transformados em frases, mas o branco do papel me afronta.
Penso que talvez não seja o branco do papel, mas o branco da minha massa cinzenta é que esteja rindo-se de mim em afronta.
Quero jogar fora o papel branco que me afronta, mas não posso porque não devo desperdiçar. Ele continua branco, vou guardar. Lembro-me também que não posso amassá-lo porque é virtual, assim como o lápis que são, na verdade, meus dedos coordenando a ordem das letras e formando palavras.
O branco do papel continua tão branco no fundo com letras negras em linhas retas. As letras contam experiências, sonhos, desejos, virtudes e faltas.
As letras contam pessoas, amizades e borram o branco do papel com vida.
O branco do papel continuará sempre, se escrevermos, ao fundo; se não escrevermos em sua totalidade. Mas não escrever é não deixar uma estória e não ser.
Lucia Carmen Peixoto Fonseca
Imagem própria
A imagem própria é a que temos de nós mesmos, é o que sabemos ou pensamos que sabemos sobre nós mesmos.
Muitas vezes nos espantamos quando percebemos que as pessoas não nos percebem como nos percebemos; ficamos perplexos quando ouvimos de outra pessoa uma descrição nossa que não corresponde àquilo que enxergamos em nós mesmos.
Somos, sempre, muito condescendentes conosco, superestimamos nossas qualidades e subestimamos nossas deficiências. Psicologicamente isto é provado fazendo simplesmente uma auto-análise, quando somos induzidos a enumerarmos dez de nossas qualidades, escrevemos coisas que nem sempre correspondem às verdades que não admitimos. Quando somos induzidos a enumerarmos dez de nossas deficiências, temos muita dificuldade, ao passo que tudo se torna mais fácil quando enumeramos as dez, ou mais, deficiências de outrem. Mas isto é inerente ao ser humano, criticar sempre, reconhecer, dificilmente.
A nossa auto-imagem é superficial, colocamos debaixo do tapete as nossas deficiências e gritamos como a vida é injusta conosco.
Às vezes maquiamos a nossa imagem própria, mas é um artifício que não dura para sempre, um dia “casa cai”.
Não sei se não nos conhecemos realmente ou se nos conhecemos o suficiente para mascararmos nosso verdadeiro eu.
Nesse momento, eu não sei quem sou eu. Não sei se sou o que penso que sou. Nesse momento não tenho nada para oferecer, somente dúvidas.
Gostaria de saber se há alguém que sinta assim, que vasculhe dentro de si e diga: eu não sei. Não quero ser analisada, pois os conceitos da psicologia eu conheço, só quero alguém leigo mesmo, que não sabe nada, mas que me leia e me diga o que realmente quer dizer, que me perdoe a fraqueza ou simplesmente ignore ou compreenda o meu sofrer. Estou misturando emoções. Na verdade só quero escrever.
Será que é o desmoronamento de mim?