Coleção pessoal de luapinkhasovna

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⁠OS DONOS DESSA TERRA

Terra não é um amontoado de areia,
não é uma área, assim como também não é uma matriz de lucro,
ela é de quem não a vê como inumana, supérflua e vão
mas sim, como fundamental, cultural e histórica,
pois sabe que a mesma retém lágrimas,
sangue e restos de povos e culturas em cada grão,
a secura e a umidade carregam a história,
que conta desde os primórdios que:
muito antes de soja, Guaranis;
muito antes de gado, Caiapós,
muito antes de máquinas agrícolas, Potiguaras;
muito antes de madeireiros, Kaingangs,
muito antes de grileiros, Xoklengs,
muito antes de mineração, Tupinambás,
muito antes de empreendimentos, Pataxós,
muito antes de latifundiários, Carajás,
muito antes de ganância, Charruas,
muito antes do homem branco sonhar fazer um país,
tribos indígenas já habitavam este solo.

⁠Já não posso ser amanhã

Essa gente medrosa, manhosa, maldosa
com suas pieguices, autopiedades,
pessimismos insuportáveis
que diz que tem medo de falar
mas, na verdade, não fala porque não sabe
Desconfio de quem diz que a vida é ruim
e a mastiga como uma goma grudando
nas frestas do dente porque tem nojo do sabor
a vida exige muito pouco da gente
ela só diz: viva! O controle, egoísmo
e expectativas que geram dores
Essa gente calada, que não dão a cara a tapa
morrem de medo de morrer, mas não de não viver
empurram os dias com a barriga e depois se perguntam
porque não chegaram a lugar algum
não percebem suas manobras repetitivas
estão sempre em busca do tempo,
templo perdido, chorando pecados
a outros pecadores
que Deus não liga, ele nos fez como queria
Gosto de incomodar, desagradar, transgredir
podem me difamar o quanto quiserem
mas jamais dirão, em um minuto sequer,
que menti sobre quem era, só consigo ser eu
e ninguém mais, mesmo que mude depois
quando lágrimas chegam
digo: “e daí?”
o segredo não é permanecer em pé
é saber cair, sou forte demais para fingir não sentir
Você poderia quebrar minhas pernas
mas ainda assim eu não me curvaria
pois, crio asas pra me levantar
poderia atentar contra o meu coração
ele não é de ferro, é de carne, molinho
sangra, mas uma hora se regenera
a minha força está em cada nervo da sensibilidade
não espero o tempo melhorar
gosto da chuva e a deixo molhar
Já tive vergonha do meu nome,
“Maria é nome de mulher comum” — diziam
pois me dei ao luxo de ser a mulher mais comum que já conheci na vida
você me verá em muitos lugares, bares e pares
por que sou como todas? Talvez, mas principalmente
porque não me limito em momento algum
tenho muitas caras, ações, faço tudo e mais um pouco
Escrever é meu processo de cura
adoeço na mudez
tenho necessidade de falar, falar e falar
quando não falo, a garganta inflama
dizem que é doença do corpo,
digo que é doença da alma
antes de ser escritora, precisei corrigir minha biografia,
pois não havia um livro sequer disposto a conhecer minha história
quando me ensinaram o alfabeto vi que tinha
o mundo todo nas mãos
Já não posso ser amanhã, tenho fome de agora
se num minuto resisto, num instante explodo
sempre tento e quando encontro a tecla certa bato até quebrar
vou comigo até o fim da linha
sou muitas, em poucas estou
já não lembro mais quem eu era
não me cobre pelo ontem
sou inconstante, incontrolável e
inocente dos personagens que já fui
porque jamais me releio, escrevo e jogo fora
outros personagens e histórias sempre virão.

⁠Ser Aquarela

Desde cedo, a vida torna-se preto e branco para quem nasce destoando da tradicional paleta de cores imposta a todos por quem julga-se no direito de definir por quais nuances o rubor de um coração deve pulsar

Só, observando a todos pelas frestas empoeiradas, eu já sabia que havia vindo ao mundo com o peito iridescente
carregando o enorme fardo numa sociedade limitada
que era amar todas as cores

Em segredo, uma explosão de tons proibidos luziam em minha mente
contrastando com o silêncio gris das outras tantas pessoas coloridas da cidade
também fadadas à escuridão taciturna dos armários

Por vezes, tentei transmutar-me, regulei minha gradação,
simulei ser como me pintavam e acabei tornando-me
disforme e sem tonalidade,
expressa em inexata furta-cor

Chorava entre a dicotomia, como poderia ser preto ou branco
se em meu âmago possuía uma vibrante gama de cores traduzida em aquarela?

Rendendo-me aos gostos alheios, por anos, tornei-me a cor mais ausente nas paisagens do meu mundo, que aos
poucos, tornara-se inexistente

Ao redor, arco-íris apagados davam espaço ao céu cinza-nublado,
e a cada estalar de beijos, gritos tempestuosos vociferavam, enquanto tantas outras tonalidades eram diariamente
silenciadas para a eternidade apenas por estarem amando fora do tom ordenado

Em meio a sórdidas guerras, cruéis injustiças sociais e rotineira criminalidade
vistas de forma superficial e translúcida
todos os esforços estavam focados em nós que estávamos apenas nos misturando a outra cor

Mas no fim, o preconceito sempre será incolor, mas amar é soberano, é aquarela!
Pois todas as pessoas são cores de diversas matizes, mas só o amor é a arte criadora de obras nas molduras que são a vida,
misturar-se é a única ordem imperativa!

⁠Lei da selva

O presidente disse que no país não existia fome, mas um estranho fenômeno assustava toda a população de cachorros: não sobravam mais ossos.

⁠Metro Quadrado

Entre poeira desceu o sol
o chão que as rodas amassavam mudou de aspecto
as árvores viraram pasto e o rio tornou-se pedra,
fazendo a sede assolar a comunidade
em pouco tempo, a comida escasseou,
os animais dos produtores das cercanias morreram
e as máquinas agrícolas derrubaram o que restava
Na cidade, todos assistiam à televisão falar que
o agro é pop e que aquilo era progresso brasileiro
mas só sabia a verdade quem era morto pelos madeireiros
Sem firmamento dado pela vegetação, a terra cedeu
e muita gente morreu no deslizamento
muitos se chocaram, a prefeitura disse que contratou engenheiros
e tudo estava nos “conformes”, mas isso não diminuiu a força da natureza
e o estrago feito em tantas famílias pelas perdas
Não bastaram os milhares de hectares, os homens queriam mais
eram garimpeiros, eram grileiros
até os indígenas foram embora
tiraram as onças, os tamanduás e por fim, as pessoas
Debaixo da massa de poeira que entrava pelas narinas
sufocando toda aquela quantidade de gado,
lá sobraram os culpados procurando mais algum metro quadrado.

⁠Café de Amanhã

Pão na chapa enche de açúcares
os vasos sanguíneos do burguês ao acordar
de açúcares padece o corpo cansado
sem pão na chapa na mesa ao levantar
Frutas fornecem nutrientes essenciais,
lipídeos e vitaminas que enchem o cérebro de energia;
uma uva, uma manga, uma banana
trocam de preços todos os dias no mercado:
a saciedade está tão cara comprar!
Mas o pão, o pão têm simbolismo divino
na alimentação
foram multiplicados, são o corpo de Cristo
cada pedaço fora dividido após terem sido ungidos
em suas santas bênçãos
Hoje, à mercê do Estado
que não é divino,
nem pai, nem democrático,
o pão, de tão caro contrasta desigualmente
com miseráveis salários
condenando à inanição!
O pão divide o burguês do proletário;
enquanto a mão de um estica-se
para no miolo algo ali passar
outras, juntas, rezam à noite
para quando, no café da manhã
do amanhã,
o estômago logo acordar.

⁠Gaiola

Tec tec tec
bicava o poleiro
o pequeno Bem-te-vi
simulando ser os galhos dos pinheiros
por onde vida toda a cidade
Nunca esquecera aquele dia
em que uma mão muito ágil
olhou para si, elogiou seu canto
e o levou para bem longe daquelas árvores
Cada vez que recordava,
era tec tec tec
bica bica bica
canta canta canta
"Bem-te-vi, Bem-te-vi, Bem-te-vi"
enganando o tempo
fingindo ser um cantor
e não um prisioneiro.

Fruto Proibido

A carne adocicada da fruta-pele
desliza ao céu da boca
amaciando a fome com seu gume
tirando lascas da língua
inocente de sua safra
chega ao estômago mostrando
ter apenas sabor idêntico,
e num simples deslizar sorrateiro de garganta
se desfaz de suas cascas de alimento
revelando ser fruto proibido
pronto pra saciar a vida
do degustador sedento pelo seu
sumo.

⁠Léxico dos Sentidos

Cansei de regras
Teoremas
Cansei das ênclises
Próclises
E sempre detestei as mesóclises

Querer-te-ei?
Como poderia querer-te no futuro?
Ter você agora seria o único presente mais que perfeito aceito pelas minhas linhas

Preciso criar um novo tempo pro pretérito
Um que eu possa usar em qualquer texto
E sirva para todos os momentos com você

Eu quero rasgar o verbo
Expulsar todas as minhas hipérboles
Como alforria
Quero gritar interjeições
Sem analogias
Quero a palavra nua
E sentir todos os paradoxos da minha existência saindo pela boca

Não quero o uso correto do idioma
Quero gaguejar
Me lambuzar nos erros
E delirar entre as palavras tão livres expressadas

Quero cuspir palavrões
Buscar o sentido pejorativo
Escrever fora das linhas
Rabiscar tudo escrito
E quem sabe rasgar a folha

Quero me libertar da minha forma humana
Amar outras espécies
Afiar minhas presas
Usar minha prosopopeia
E me transformar em quem
talvez seja quem de fato sou

Eu quero a sinestesia
Aprender
Prender
A tua língua em mim
E jamais usar amar no verbo oculto
Eu quero abusar dos neologismos
E encontrar a palavra exata que sirva como palíndromo
Que mesmo que você leia de outras direções, o sentido será o mesmo

Mas antes, não se esqueça de respeitar meus parágrafos
Pois são eles que definem o começo
das minhas histórias

Então, engula minhas reticências
Não pause nas vírgulas
Saboreie cada silêncio
E você estará sentido o verdadeiro gosto do meu léxico
E o que vem depois serão palavras sinceras
sem pontos finais.

⁠Verborragia

É nos confins das mentes silenciosas
Que adormecem os verbos pungentes
Inflamados por salivas raivosas
São ricos em sentimentos latentes

Os sons que os ouvidos guardam
Reverberam pelos séculos encerrados
Emergem em meio a noites nubladas
E transbordam nos travesseiros

As noites longínquas agonizam em meio às luzes oscilantes da lua cheia
Solitária e flutuante
Despede-se no raiar do dia enquanto deixa seus apaixonados carentes

No embalar da melancolia
Em meio aos minutos escorridos
Com a cabeça latejando o vácuo
O grito se torna inaudível

O peito refreia todas aquelas emoções
Adormecidas
Mas os ouvidos inocentes
Não possuem proteção contra os sentimentos penetrados

E no epílogo do corpo
Eles são apenas a porta de entrada das emoções
Não são eles que sentem
Os sons são carregados pela veias que os levam até o coração

Esse quieto e dormente
Sente mesmo com sua derme grossa
Roupa que o veste
E sua clava de ossos na frente

Sua eclosão se dá para o corpo inteiro
Da ponta dos dedos
Percorrendo pela pele
Passa pelo rosto
Chega até a cabeça

Assim seus circuitos são acionados
Suas sinapses erram os trajetos corriqueiros
Uma tropa de pensamentos de berço
Voltam a sibilar raivosas na mente

As letras liquidificam-se
Perdem-se entre as vísceras
Preenchem os espaços
Até não mais caber e sair pelas chuvas torrenciais do corpo

A alma não escuta, não fala,
Pois quem sente é a carne
Que se desmancha em gotas pela face
Quando as palavras perversas,
Deveras diretas, a fazem pingar.