Coleção pessoal de ItaloSamuelWyatt
Vassala palavra que inala
hipocondríaca aliança devassa
miragem viagem de marte
faca opaca cravada
maré de abaeté do-mi-ré
amor destoando canto do verso
MOTRIZ
O canavial deu um gemido mais forte que a sétima trombeta do apocalipse. Fogo morto, talvez. Engenho de menino, também. Bem perto da solidão de José Lins do Rego e da melancolia desgraçada de João Cabral de Melo Neto. O canavial rompeu as barreiras de suas possessões várias, pinicou os boias que insistem em roubar-lhe as pétalas enormes que namoram o vento, adoçou a infância das crianças que pulam corda pertinho de si. O canavial surrupiou o sol, bebericou a última água do solo, venceu o eucalipto, devastou as criações de roça e fingiu indiferença aos versos imortais do Recôncavo Baiano. Canavial é palavra que poderia ser sinônimo de catarse.
POEMA MAS INTIMISTA DO MUNDO
(PARA OS ANDES, NA TOADA DE PABLO NERUDA)
PUEDO escribir los versos más tristes esta noche.
Este poema que despertou-me tantas catarses durante a vida
tornou-se um retrato piegas e
emporcalhado na lembrança.
Escribir, por ejemplo: "La noche está estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos".
El viento de la noche gira en el cielo y canta.
Toda esta composição do cosmos, agora
reflete o voo de uma borboleta
o cravo pregado no peito do passarinho
a insinuação mansa e irregular dos amantes.
Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos.
Amei e fui amado. Rejeitado. Desprezado.
até consumar-se a oratória do poeta popular:
SÓ SOU GRANDE SE SOFRER!
La misma noche que hace blanquear los mismos
árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.
Já não somos os mesmos. E será que fomos algum dia?
entortamos os nossos destinos na curva da aliança?
fizemos arquétipos pessoais?
ya no somos los mismos!
tampouco, o verbo intransitivo direto: amar.
De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.
E isso: consola-me. Eis que a primavera floreou
os meus braços não te pertencem mais
nem o beijo
a voz
o corpo
meus olhos. O meu olhar já tem a quem...
Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero...
Não quero. Pois já tenho a parte desejada
a rama do outono
o verão do vale
a manhã que entra pela janela.
aquela foi a última dor
pois o meu caminho tornou-se valsa
tango
transeuntes desesperados
e a inspiração do aconchego de
meu novo amor.
GRACINHA
Eu sou aquela caixa d'água a tilintar dentro da noite veloz. Lá fora, o sereno caía vadio enquanto os rumores dos carros mexiam com as luzes dos postes. Tchiqui, tchiqui, tchiqui... Quase sempre, o ventilador ao pé da cama. A cama. A cama. Aquela cama... Na área, o churrasco embalava os nossos estômagos famintos. A fumaça passeava por todo espaço. Chegava na cama. A cama. Aquela cama... Ao meu lado direito, meu mano: pequeno, raquítico, olhos negros, cabelos lisos. No centro, a mana: covinhas amontoadas, coqueirinhos na cabeça, chorinho fácil a descolar na boca. Ao lado esquerdo: vovó. Vovó. GRACINHA. Corpo roliço, cabelo despreparado, pele macia e branca. Sua mão a "irribuçar" os netinhos com colcha vermelha. Sua mão a cantarolar no meu peito. Um dois três carneirinhos. O ronco, o sereno a cair, os rumos dos carros e eu-caixa d'água, eu-saudade, eu-vontade-de-voltar.
(PARA CANDIDO PORTINARI)
A sua lágrima colore duas açucenas. Nas mãos: o mestiço sorrir dos olhos fechados. Colhes as flores que nascem em cima dos túmulos e te alimentas dos vermes expostos aos urubus. De manhã, o suor da capoeira. A tarde, fome na seca. Noite: o sonho. Fantasias um Brasil que existe e crias o surrealismo do cotidiano. Levas a morte às sesmarias desnutridas, cantas os cores de João Cabral de Melo Neto e invades os postigos da grande impossibilidade. Hades ergue-te adorações. Zeus curva às prosopopeias dos teus pincéis. O Olimpo arruína. A Arte é tua filha. A inspiração é tua mãe. O olhar perdido: a vereda do teu coração.
Veranear como pássaro que procura ninho - paz!
Pela forma como corre a carruagem, a palavra tem pressa de chegar! Dentro dela, princesa ou vassala, senhorio ou o próprio cocheiro: há pressa em dizer. Arrancar dos lábios a vírgula que ficou presa no olhar, as reticências incômodas acorrentadas na boca, os pontos de exclamação entupidos nas vias nasais, a verdade neurótica e possessa atormentada no peito-masmorra. Enfrenta o barro escorregadio, enfrenta as árvores contorcidas na estrada, os bichos peçonhentos dotados de curiosidade, os labirintos dos lodos, a chuva, salteadores e serial killers, o breu da noite. Apressa os cavalos com com as chibatadas e beijinhos, atravessa pontes e Idades Médias. E chega. Ao Adeus de Teresa, à Musa encurralada no alto de uma torra, à hora íntima e fatal.
A palavra é o precipício para o inefável, a oportunidade do cego de atravessar a rua, o começo, o fim. Por ela, amores nascem. Por ela, Pandora morre. E, se carruagem faltar, a palavra voa: pelos ares, ondas, raios. Despesa é pra guardar feijão, arroz, lata de leite; relicário: joias; palheiro: agulhas. A palavra é bicho solto, leão, tigre, água, vontade que dá, passa e não fica.
FOI UM ITAÚNAS QUE PASSOU EM MINHA VIDA
(Paródia do samba "Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida", Paulinho da Viola)
Roubou-me as forças e a enxada
Cuícas e prateleiras de mim
E toda matéria que outrora nadava na Prainha.
Roubou-me a infância e meu pai
Beijos de mamãe e água de cheiro da babá
Triturou na correnteza, esfarelou na cachoeira mansa e irregular
Meu espírito que submerge no escuro das águas claras
Encontra versos e prosas e narrativas e passados e futuros
Foi o Itaúnas que passou em minha vila
Foi o Itaúnas que afogou em minha vida
Suas mágoas... Fui banhar além do Itaúnas
Foi o Itaúnas que me conduziu pra longe de lá
Foi o Itaúnas que me conduziu pra Itaparica
A saudade não conseguiu desaguar
Pelo rio que passou em minha vida.
(A Janela do Éden, Italo Samuel Wyatt)
Musa-meu-mundo,
As fragatas de nossa baía frustraram os comércios e especiarias do além-Continente.
Frustraram em nódoas e marolas de uma Copacabana desnudada pelos ventos e coices de cavalos-marinhos. Frustraram os escafandristas que esperavam excrementos e outras drogas.
Talvez um batom.
Não se esqueça das maquiagens e dos perfumes.
Nosso divã e nossos porta-retratos.
Os Coqueiros de Itaparica cintilaram um luar mais fecundo, mais absinto, mudo.
Nossos sóis cansados, os frutos aos pés do pé, um poema em verbo transitivo direto na areia molhada. Meu bem, aquela ilha remota e ignota perdeu-se: mar findo.
Risque meu nome do mapa. Peço-lhe sem sabores. Sem ardores. Outrora, bem outrora, além dos advérbios temporais, por cima das larvas, por baixo do colchão: desejei-te alfa e ômega.
Perdestes a beleza. Perdestes o encanto.
Musa-meu-mundo,
já não sei se te amo.
Pois digo sem pensar, sem refrear, em caudalosos verbos-croniquetas:
Até longo,
à próxima primavera que não mais cantarei.
POR CAUSA DE VOCÊ
solteiro
só inteiro
interior só
out só
s'outeiro
sol
soltei
roei
orei
ter sol
ir
iro
ei! ei! ei!
MEMÓRIA
Minha avó fazia café bem doce. Talvez, por uma necessidade de se procriar além dos filhos legítimos. Biscoitos na gordura, pão de queijo no forno, bolo de chocolate em cima da geladeira. O cenário aparentemente bucólico escondia guerra das mais matutas em orvalhos e outras fragrâncias. Cheirava a cozinha um cheiro forte do que se come. No quintal, cheiravam as flores um cheiro que se vislumbra. Alimentar dos produtos da casa vigorava a minha carne. Alimentar do beija-flor que tomava o néctar de hibiscos em diversos matizes alimentava a minha alma. O cachorro latia freneticamente. Eu não sabia que o bichinho também comia: a alegria das folhinhas em domingo. Ao pé da jabuticabeira, meu Drummond chorava todos os lirismos nascidos da terra caudalosa, terra de muitas veredas e rupturas. Minha mãe afagava meus cabelos, o pai e os tios viam futebol, a pequena irmã devorava porções de desenhos animados.
Não fosse eu poeta, esta prosa seria pólvora. Não fosse eu poeta, partículas cintilantes de minha vida perderiam na guerra dos tempos que não se curam: saudade.
SENTIMENTO DO NADA
Inspiração exige transpiração
Abba! Enojei-me nesta viagem
A musa abriu suas pernas, vi o Parnaso desmoronar dentro de seu
Útero. Fiz poesia sem ser poeta. Comi a musa
[Ou ela me comeu?
Pouco Importa!
Temos filhos agora:
Crise existencial de Sousa
Solidão da Silva Encarnada
Maria das Dores
Zé Pelintra Nosso de Cada Dia.
Por hora (sou) pouco importa: uma poeira descolada
O tempo fez-me Europa!
Por hora (fui) isto importa: uma gotícula no mar
A gaivota não tem misericórdia!
Modelaram-me num tipo humano
Faz graça
Estou imberbe: não fumo, não bebo, não mato.
Reproduzo o existir: como, defeco, amo.
Minhas amantes envelheceram
O cupim devorou minha biblioteca, devorou minha planta, minhas pupilas, minhas
Raízes. Viver além da conta
Há morte aqui
Há morte debaixo do meu travesseiro
Em minhas pupilas mulatas - há morte.
E eis que vivo: posto morto
Já não questiono o Universo
Sinto!
(Italo Samuel Wyatt, A Janela do Éden)
; é como se, diante disso tudo, eu visse (sozinho) a aguinha do córrego marejar debaixo de uma ponte velha. Lembro-me sempre daquele belo quadro da copa de minha avó a figurar pieguices de camponesas, pobres camponesas. O lustre não suportou tamanho calor: frangalhos. Onde ficou meus suores, meus pelos despetalados, os beiços cintilantes? Sei lá.
... só ficou a poesia. O restante na estante, o mar levou. Subverto sinais gráficos, afronto a língua, blasfemo as compilações e sintaxes. Deus habita nas ruas vazias de minha alma, naquele solzinho gostoso que, vez em quando, põe a vista barquinhos fagueiros.
? Onde está você. Pois seja cada linha dessas não-ditas nas entrelinhas: inevitável e inconscientemente: saudade:
LEMBRANÇA
A casa era branca como a lã branca. Nos fundos: o cachorro rottweiler, as mangueiras, carambolas, forno a lenha, varais, ruínas do cantinho deleitoso da finada Narda e o chiqueiro. Centro de Mucurici. Os coqueiros-imperiais a chilrear um canto melindroso acompanhados dos sinos de Fátima compunham as auras interioranas.As solidões de pores alaranjados já enterneciam o poeta da família. A casa era branca como a branca neve. Na varanda: verde-mato. Vértices e colunas prestes a desgarrar da construção. Vez em quando, sentíamos a noite. Branco-breu, sem fundos, sem varada, sem mato. Mas havia a cadeira de balanço e nela vovó sentava-se.
Um jovem escritor.
Minha vida é como uma imensa praia de muito areal e pouca maré. Preciso de água: as dislexias em semântica, passarinhos a miar nas sentinelas dos caranguejos, sóis a formar plebe em nome da lua. Dispo-me. Não tenho vergonha de me expor. Salve Drummond que compreendeu toda precisão do mundo: pessoas, cafés, livrarias. As notas estrugem como vulcões: música, versos, pelicanos e outras delicadezas tímidas do dia. Há em mim enxaquecas dos byronianos, a vontade de encontrar o que perdi (despretensiosamente), fichas de carrossel. E essa manhã que ainda não raiou... Volta?
DELÍRIO
Acima da cintura, ela é toda cetim púrpura, luminescências das lantejoulas, marfins no colo. O redondo do violão guarnecido por um vermelho-escarlate, figurinhas de melancias, caranguejos e moluscos. Suas pernas estão em matizes caribenhos: esverdeados-mares. As pontinhas das orelhas adornadas por duas açucenas, as maçãs são manjares-turcos e o queixo um caracol estático.
Isso é porque falo somente da pele!
Apontava para as estrelas do céu como quem rogasse: por favor, uma verruga! E, num sinal de vacância cognitiva (ou não), sentia um desejo libertino de fugir do mundo num casco de uma tartaruga. Escrevia compulsivamente como quem escreve um testamento e deseja legar uma memória ao Amor. Não se aquietava enquanto dormia. Entre sonambulismos e desvarios era: ele mesmo, a moeda de uma face, o capim da caatinga. E, tampouco era tão pouco, por ironia semântica. Fez-se poeta, pela simples liberdade que há em poder versificar(se).