Coleção pessoal de hildadutra
Só pode compreender o escritor quem conhece a linguagem da brisa, a textura dos senões e a (im)permeabilidade das palavras. Por isso o escritor ouve muito mais do que fala. E, ao ouvir, e sobretudo ao olhar, ele capta a alma, a essência das pessoas. Percebe o que talvez nem elas próprias saibam: descobre, quantas vezes mesmo sem querer, suas máscaras: entrevê suas hipocrisias, sente seus segredos, perscruta suas misérias." (Corina, 2007)
O filósofo especula o sentido da vida, o psicólogo compreende o funcionamento da psique humana, o historiador desvenda as razões e desrazões da História, o ator os representa na palco, mas o escritor é o único capaz de apreender a alma humana e registrá-la de forma estética no papel." (Corina, 2007)
O corredor que me leva do portão até a área dos fundos da casa, onde está minha avó, nunca me pareceu tão longo. A casa, com a pintura ainda intacta, parece falar por si mesma, vencendo minha ansiedade pela sua força, pela dimensão de suas paredes, pela altura de seus telhados novos. Mas eu sei que, um dia, estas paredes estarão velhas e descascadas, como também se escurecerão suas telhas cor de terra. Entrarei por seus cômodos e verei que eles próprios parecerão cansados, sem elegância nenhuma. Sentirei saudades de minha avó e dos dias que se foram. Estarei velha e me sentarei, desta vez sozinha, para me lembrar de Corina e das conversas que tivemos." (Corina, 2007)
Volto de uma longa viagem pelas ondas da memória, pelas vagas do tempo. Uma longa viagem, através da qual conheci um pouco mais de mim e dos que me rodeiam. Vi ruínas, aprendi rastros, pontos e estrelas. Jamais viajei sozinha: sempre encontrei heróis e heroínas, aparentemente mumificados, protegidos por ventos de areia. Meu livro é meu souvenir e quero que Corina seja a primeira a lê-lo." (Corina, 2007)
Ali, absorvida no viverbrincar, as meninas fazem parte de um outro universo, quase posso senti-lo. A impressão que tenho é que, se estender a mão, toco na finíssima bolha que forma esse mundo só delas. Olho-as novamente e, no meio da tarde, aquelas meninas como que parecem mágicas, ancestrais. São todas alices em seu país de maravilhas. Ali, brincando, o tempo não existe para elas." (Corina, 2007)
E a brisa que nos afaga o rosto e os cabelos é a mão do futuro, com jeito de presente, empurrando-nos gentilmente para o vazio do tempo, pelo qual, um dia, seremos engolidos, nós e todos os que nos conhecem, dando passagem a um novo mundo que, surgido de nós, será, um dia, também engolido. É a lei da reescrita, na dança do tempo, no véu do vento, no tecido da vida."
Cada um de nós somos fotos invisíveis de outros tempos, de outras vidas, de outras culturas, que se vão desenhando no nosso presente, atualizando jeitos, faces e vozes." (Corina, 2007)
Para o mundo, não acabamos quando morremos, mas quando morre o último dos seres humanos que fizeram parte de nossa vida, levando com eles as derradeiras ressonâncias de nossa existência. Minha tetravó índia, o seu mundo, as pessoas com quem conviveu, os conflitos, os erros e os acertos, tudo: palavras, nomes, grandes atos, mesquinharias, dúvidas, certezas, gargalhadas, o que era importante e o que não era: tudo foi engolido pelo tempo. Resta-nos um enorme espaço amarelado, onde o passado se confunde com a eternidade e o Nada, e de onde surgem, como que por encanto, nossos bisavós, seres meio míticos, meio inteligíveis, representantes de um tempo que não vivemos".
(Corina, 2007)
Não, não é fácil escolher as palavras, ora atropelo umas, ora atropelam-me outras, quando vejo, estou lá na frente ou cá atrás, no meio de um deserto assassino. Desespero-me, deixo lacunas, gritos, medos... Bolas!" (Estranhos na noite, romance, 1988)
A festa vai começar nas horas redondas do tempo. Confraternização dos aprendizes. E as pessoas se abraçam, Luíza, Ulisses, Beatriz, Iracema, Moacir, Capitu, Lóri, dianas, apolos, júpiteres, primeira vez se vendo, chineses renascidos em vitória. Na noite estranha, surreal quanto a própria terra, a harmonia dos plurais. Festejar é o destino de todos. O canto e a felicidade são nosso fim." (Herança, romance, 2002
O crítico é um investigador, um Sherlocky Holmes. Bem que gostaria que ele descobrisse quem era o defunto do Seminário, o que eu apalpei no corpo do Cristo. Mas ele é um tonto. A culpa não é dele, é daquela luneta que ele usa, como se fosse astrônomo, como se caçasse estrelas. O que eu conheci era de artes plásticas. E tinha a sensibilidade de um hipopótomo! Mas eu queria um crítico assim: que pusesse Tomé na cadeia por causa de Faropa, que torpedeasse o navio de Padre Souza, lógico que ele vai para Roma num cruzeiro! E que fizesse tudo aquilo que eu não fiz. Por exemplo: não deixar mãe Rosa envelhecer." (Estranhos na noite, romance, 1988)
Cada século apresenta no máximo dois ou três grandes originais. O resto não é plágio, mas redundâncias de um gênio". (Estranhos na noite, romance, 1988)
Método de escrever: falo de mim mesmo até quando falo dos outros. Quando fico cansado, páro. Não releio o que escrevo. Para não ter vômitos. Por não ter tempo. (...) Engulo as vírgulas como se fossem purê de batatas. A tais alturas, pouco interessa escrever bem, interessa escrever. Depois, é muito difícil saber o que é escrever bem". (Estranhos na noite, romance, 1988)
Ser escritor deve ser algo mais que um simples espirrar de palavras. Aliás, tenho algo de escritor: terríveis olheiras, minhas olheiras estão pavorosas. Um jeito esquisito, jeito de anjo ou desesperado. Tenho alguma coisa que é quase ódio, quase orgulho de mim mesmo." (Estranhos na noite, romance, 1988)
Fiquei apreensivo ao pegar a nova caneta, eu sabia que esta, esta me venceria. E sobrariam canetas, folhas, palavras, vidas. E o leitor, o sapo, teria de construir o que faltasse, pobre leitor, um escritor em extensão. Sofredor também." (Estranhos na noite, romance, 1988)
Meu pai... Ah, meu pai. Meu pai era assim: um homem deitado numa pilha de travesseiros. Lembro-me ainda de que ele era uma imensa pessoa, vermelha e inchada, espirrando sangue e chamando pela neném. Jeruza tinha dez meses e então traziam-na para o quarto. Mal via papai, a menina abria a boca no mundo e os dois enchiam o quarto de choro e sangue até quase se afogarem. Era um rio de borbulhas quentes e fétidas. uma vez, fui surpreendido pelas suas águas e só não me afoguei porque alguém me puxou pelos cabelos e soprou-me os lábios. Duvida? Não tem problema, livro aceita tudo. E que importância tem se, quase trinta anos depois, resolvo passar um rio de águas e borbulhas vermelhas bem no quarto de papai?! O tempo faz-nos perder coisas, mas dá-nos obter outras". (Estranhos na noite, romance, 1988)
Como calcular a real importância do escritor? Valeria mais que um padeiro? Que um médico? RECEITAS DE MÃE ROSA. Não, não. O escritor e o idiota são uma coisa só. O mesmo espanto, a mesma confusão de significados." (Estranhos na noite, romance, 1988)
Abro os olhos, o coração aos pulos. A vela quase toda queimada dentro do pires. A caneta presa à mão, com desespero. O caderno caído. As palavras... As palavras haviam escorregado, escorregado, até caírem da margem direita, irremediavelmente perdidas. Estendo as mãos, consigo pegar algumas que ainda não haviam despencado no abismo. Sinto sede. Preciso engolir as palavras." (Estranhos na noite, romance, 1988)
Ouço os passos de mãe Rosa, incessantes, invadindo a noite desdentada. Passos de mãe Rosa. Ainda quando morrer, ficarão os seus passos. Mãe Rosa na sua labuta alegre durante os dias intermináveis, os passos noturnos de rumos imprevisíveis e inacabáveis... Não saberia quantas vidas ou quantos desesperos ocultam esses passos."
As letras, elas tremem. Um cair de letras, e vejo tudo vazio quanto antes. (Estranhos na noite, romance, 1988)