Coleção pessoal de Glissia

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O transe poético é o experimento de uma realidade anterior a você. Ela te observa e te ama. Isto é sagrado. É de Deus. É seu próprio olhar pondo nas coisas uma claridade inefável. Tentar dizê-la é o labor do poeta.

A folha se descobriu a perder a cor, a ficar cada vez mais frágil. Havia sempre frio e a neve pesava sobre ela.
E quando amanheceu veio o vento que arrancou a folha de seu galho. Não doeu. Ela sentiu que flutuava no ar, muito serena.
E, enquanto caía, ela viu a árvore inteira pela primeira vez.
Como era forte e firme! Teve certeza de que a árvore viveria por muito tempo, compreendeu que fora parte de sua vida. E isso deixou-a orgulhosa.
A folha pousou num monte de neve. Estava macio, até mesmo aconchegante. Naquela nova posição, a folha estava mais confortável do que jamais se sentira. Ela fechou os olhos e adormeceu. Não sabia que a folha que fora, seca e aparentemente inútil, se ajuntaria com água e serviria para tornar a árvore mais forte. E, principalmente, não sabia que ali, na árvore e no solo, já havia planos para novas folhas na primavera.

Meu corpo treme...

um frio gostoso sobe pela espinha...
quero-te... agora...
neste minuto...
antes...e depois...
Quero tua mão buscando meu corpo...
teu cheiro...teu sabor...
teu corpo encostado ao meu...
quero tua boca se esfregando na minha
loucamente...sem pudor...
numa fúria sem limite...
Quero ouvir...meu corpo gemer por ti...
Quero ouvir-te sussurrar..meu nome...

Senti frio. Senti medo. Senti falta. Corri pra tentar chegar antes mas por meros instantes cheguei atrasado. Menti pra evitar estragar e quando acordei já estava estragado. Bebi pra esquecer que bebia pra esquecer o que eu não esquecia. Gritei pra arrancar do meu peito o passado imperfeito que tanto me afligia. Chorei pra lavar a alma e os olhos incrédulos no que nao enxergavam. Escrevi por insegurança pra manter a eperança,pra desabafar. Rezei pra não te ver. Pensei pra te alcançar. Vivi pra não morrer. Cai pra levantar. Calei por falta de opção e interlocutor. Amei por falta de amor. Beijei a boca errada ,sem paixão,sem desejo e com gosto de nada. Lembrei de voce todo dia vivi a agonia de um condenado. Lembrei de voce todo dia e por covardia estive calada!

É você...

Quando te vejo sinto algo diferente
É como se o tempo nunca tivesse passado
Um frio na barriga, o coração acelera...
Às vezes fico a pensar se isso é amor
Será???
Não sei ainda, mas é você
A primeira pessoa que eu penso
Quando eu acordo e a última
Quando vou dormir...
Você me faz falta...
Mas não sei se é apenas amizade
Não quero confundir
Talvez esse carinho enorme que eu sinto
Não seja amor...
Mas se for??? Talvez eu esteja desperdiçando
A oportunidade de ser feliz por medo
De tentar...
Mas também tem um porém
Não sei se você pensa em mim da mesma
Forma que eu penso em você....
E se eu te amar e você me vê só como amiga
Não sei...
São tantas dúvidas que me levam a pensar
Que o melhor da vida talvez não seja
Se apaixonar...

Pra se falar de amor é indispensável que eu tenha vivido tudo que ele pode provocar. Do frio na barriga aos olhares perdidos nas nuvens, no ar. Ter lembranças das reações à tímida troca de olhares e aos primeiros sorrisos da paquera. Sem deixar de lado o arrepio na espinha do primeiro beijo seguido do olhar feliz, porém envergonhado. Mas não posso negar que há dores em amar. Há a desilusão que todo mundo conhece e a tristeza por não ser agrado aos olhos de quem tanto se quer bem. A aflição maior se dá quando sequer conseguimos dizer o quanto é puro o amor que temos, mesmo que ele só cause dor. Provamos o gosto ruim das lágrimas pesadas, choro aos soluços, que arrancaram dos olhos a beleza sorridente e mascararam os olhares com um pesar descontente. E a mágoa de ter sido deixado pra trás, então. Sonhos deixados de lado, resumidos à frustração. Mas há que se acreditar, que o que há de pesado, pode também ser suave e puro. Há amor que pode ser leve, delicado e gentil. Que sabe ser intenso e febril e pode ser a coisa mais singela que já se viu. Não que ele prefira ser dicotômico. Não creio que seja assim, tão radical. Do tipo escolhe entre fazer bem ou fazer mal. Acontece que, quando comparamos, amarramos os extremos para sentir quão diferentes são. E quando o amor é agradável, colorido e leve que basta um sopro pra formar bolhas de sabão só pra representar o que ele causa, sinto que amando é possível levitar. Assim, o que doeu fica tão pequeno e insignificante que daqui do alto ninguém consegue lembrar.

Gosto do outono porque ele é frio suficiente para refrescar o calor...
E é quente o suficiente para aquecer o frio!

“Amar só há uma entrada na vida:
é entrar num beco sem saída.
É sentimento que dá frio na barriga
como se ferir e não ver a ferida.
Acho que amar é tanto quanto necessário:
é um alimento diário.
Amar é algo de dentro pra fora
como uma flor que desabrocha.
Amar não é algo do imaginário:
é simplesmente extraordinário.”

Como Entender
nao tenho medo nem coragem,
nem sinto frio agora
nao sei o que quero e se quero
nao sei nada sobre tudo,
ou seria tudo sobre o nada

como dizem: será que um copo que está meio cheio
nao está também meio vazio?

então será que um coração que odeia, pode tambem amar
ou seria que esse coração que ama, pode começar a odiar?

suspiros, medos, agora nao sei mais,
sabia, mas nao sei mais...

O SOL E O VENTO...

O sol e o vento discutiam sobre qual dos dois era mais forte.
O vento disse:
- Provarei que sou o mais forte.
Vê aquela mulher que vem lá embaixo com um lenço azul no pescoço?
Aposto como posso fazer com que ela tire o lenço mais depressa do que você.
O sol aceitou a aposta e recolheu-se atrás de uma nuvem.
O vento começou a soprar até quase se tornar um furacão, mas quanto mais ele soprava,
mais a mulher segurava o lenço junto a si.
Finalmente, o vento acalmou-se e desistiu de soprar.
Logo após, o sol saiu de trás da nuvem e sorriu bondosamente para a mulher.
Imediatamente ela esfregou o rosto e tirou o lenço do pescoço.
O sol disse, então, ao vento:
- Lembre-se disso... a gentileza e a amizade são sempre mais fortes que a fúria e a força.

Os ventos que às vezes
Levam para longe o que amamos
São os mesmos
Que trazem algo mais para ser amado

Nós não podemos chorar pelo
Que nos foi tirado
Nós não iremos... / Nós não iremos...
Nós amaremos o que nos foi dado
Pois tudo que é realmente nosso, não irá embora.

Use-se

No que se refere a adultos, todo mundo sabe mais ou menos onde está se metendo, ninguém é totalmente inocente. Se nos usam, algum consentimento a gente deu, mesmo sem ter assinado procuração. E se estamos assim tão desfrutáveis para o uso alheio, seguramente é porque estamos nos usando pouco.

Se for este o caso, seguem sugestões para usar a si mesmo: comer, beber, dormir e transar, nossas quatro necessidades básicas, sempre com segurança, mas também sem esquecer que estamos aqui para nos divertir. Usar-se nada mais é do que reconhecer a si próprio como uma fonte de prazer.

Dançar sem medo de pagar mico, dizer o que pensa mesmo que isso contrarie as verdades estabelecidas, rir sem inibição. Dane-se se aparecer a gengiva. Mas cuide da sua gengiva, cuide dos dentes, não se negligencie. Use seu médico, seu dentista, sua saúde.

Use-se para progredir na vida. Alguma coisa você já deve ter aprendido até aqui. Encoste-se na sua própria experiência e intuição, honre sua história de vida, seu currículo, e se ele não for tão atraente, incremente-o. Use sua voz: marque entrevistas. Use sua simpatia: convença os outros. Use seus neurónios: para todo o resto.

E este coração acomodado aí no peito? Use-o, ora bolas. Não fique protegendo-se de frustrações só porque seu grande amor da adolescência não deu certo. Ou porque seu casamento até-que-a-morte-os-separe durou "apenas" 13 anos. Não enviuve de si mesmo, ninguém morreu.

Use-se para fazer amigos, use-se para evoluir. Use seus olhos para ler, chorar, reter cenas vistas e vividas – a memória e a emoção vêm muito do olho. Use os ouvidos para escutar boa música, estímulos e o silêncio mais completo. Use as pernas para pedalar, escalar, levantar da cama, ir aonde quiser.

Sua boca pra sorrir...
Sua barriga para gerar filhos...
Seus seios para amamentar...
Seus braços para trabalhar... Sua alma para preencher-se...
seu cérebro para não morrer em vida.
Use-se.

Se você não fizer, algum engraçadinho o fará.

Gente light

Vou ao supermercado e observo o crescimento do setor de dietéticos. Abro revistas e me deparo com as exigencias de ter um corpo esbelto. As clínicas de cirurgia plástica estão com a agenda lotada de homens e mulheres esperando sua vez para lipoaspirar, contar, reduzir. A sociedade toda conspira a favor da magreza, e de certo modo isso é positivo, sem magro faz bem para a auto-estima e para a saúde. Mas não tenho visto ninguém estimular outro tipo de dieta igualmente necessária para o bem estar da população. Encontro suco light, chocolate light, iogurte light, mas pessoas light é raridade.
Muita gente se preocupa em ser magro, mas não se preocupa em ser leve. Tem criaturas aí pesando 48 quilos e é um chumbo. São aqueles que vivem se queixando. Possuem complexo de perseguição, acham que o planeta inteiro está contra eles. Não se dão conta de sua arrogância, possuem a certeza de que são a razão da existência do universo. Estão sempre dispostos a fazer uma piadinha maldosa, uma fofoquinha desabonadora sobre alguém. Ressintidos, puxam o tapete dos outros para se manter em pé. Não conseguem ver graça em nada, não relevam as chatices domuns do dia-a-dia, levam tudo demasiadamente a sério. são patrulhadores, censores, carregam as dores do mundo nas costas. Magrinhos, é verdade. Mas que gente pesada.
Ser minimalista todo mundo acha moderno, mas ser leve - cruzes! - parece pecado mortal. Os leves, segundo os pesados, não têm substância, não têm profundidade, não têm consciência intelectual: não são leves, e sim levianos. Os pesados não conseguem fechar o zíper das suas roupas de tanto preconceito saltando pra fora.
Não bastasse a carga tributária, a violência, a burocracia e a corrupção, ainda temos que enfrentar pessoas rudes, sem a menor vocação para se divertir. Diversão - segundo os pesados, mais uma vez - é algo alienante e sem serventia. Eles não entendem como alguém pode extrair prazer de coisas sérias como trabalho e família. Não entendem como é que tem gente que consegue viver sem armar barracos e criar problemas.
Eu proponho uma campanha de saúde pública: vamos ser mais bem-humorados, mais desarmados. Podemos ser cidadãos sérios e responsáveis e, ao mesmo tempo, leves. Basta agir com delicadeza, soltura, autenticidade, sem obediência cega às convenções, aos padrões, ao patrões. Um pouco mais de jogo de cintura, de criatividade, de respeito às escolhar alheias. Vamos deixar para sofrer pelo que é realmente trágico, e não por aquilo que é apenas um incômodo, senão fica impraticável atravessar os dias.
Dores de amor, falta de grana e angústias existenciais são contingências da vida, mas você não precisa soterrar os outros com seus lamentos e más vibrações. Sustente seu próprio fardo e esforce-se para aliviá-lo. Emagreça onde tem que emagrecer: no espírito, no humor. E coma de tudo, se isso ajudar.

Fecha e deixa solto...

Se você não aguenta mais ouvir aquela mesma ladainha de sempre seja do/da teu/tua namorado(a), marido (esposa), rolo, ficante ou caso, aquele questionamento irritante e initerrupto do tipo:

- "Onde foi?"
- "Onde estava?"
- "Por que não ligou?"
- "Não me disse que foi... "
- "De quem é esse número?"
- "Liguei e você não me atendeu... "
- "Eu vi que você olhou para ela (e)"
- "A que horas você chegou?"

QUER UMA SOLUÇÃO? Os apaixonados precisam aprender a lidar como os flanelinhas.
Como???

O flanelinha te orienta a estacionar num lugar e diz: FECHA E DEIXA SOLTO!

É simples assim... Esse é o segredo para fazer teu relacionamento durar mais que três semanas.

FECHA (sim, um relacionamento fechado, fiel e bacana), mas DEIXA SOLTO.

Possibilite uma manobra ou encaixe, mas nunca puxe o freio de mão. A saída é flexibilizar!!!

Caça

Por que é importante ler? Pergunta recorrente em qualquer encontro de escritores com estudantes. E a gente acaba desfiando um rosário de respostas prontas, um blá blá blá repetitivo, apesar de necessário. Mas hoje vou dar um exemplo prático. Estava lendo uma revista - nem era um livro - quando me deparei com uma entrevista feita com o chef Philippe Legendre, estrela da gastronomia francesa de quem nunca provei um ovo frito. Ignorante sobre quem era o cara, li. Lá pelas tantas, o repórter: "É verdade que o senhor adora caçar?" O chef: "Eu caço o silêncio. Atiro no barulho."

Bum!

Perdizes, faisões, coelhos, sei lá o quê o tal homem caça todo final de semana - e nem me interessa. O importante foi o impacto causado por aquelas duas frasezinhas curtas que pareciam um poema e que empurraram meu pensamento para além daquelas páginas, me puseram a pensar sobre minhas próprias perseguições. Caço o silêncio. Atiro no barulho. Eu idem, monsieur.

Eu caço o sossego. Atiro na tevê.

Eu caço afeto. Atiro em gente rude.

Eu caço liberdade. Atiro na patrulha.

Eu caço amigos. Atiro em fantasmas.

Eu caço o amanhã. Atiro no ontem.

Eu caço prazeres. Atiro no tédio.

Eu caço o sono. Atiro no sol.

E quando caço o sol, atiro em relógios. Acho que é isto que a leitura faz. Nos solta na floresta com uma arma na mão. Nos dá munição para atirar em tudo o que nos distrai de nós mesmos, no que nos desconcentra. O livro não permite que fiquemos sem nos escutar. A leitura faz eu mirar em mim e acertar no que eu nem sabia que também sentia e pensava. E, por outro lado, me ajuda a matar tudo o que pode haver em mim de limitante: preconceitos, idéias fixas, hipocrisias, solenidades, dores cultuadas.

Lendo, eu caço a mim e atiro em mim.

Perder a viagem

Você pede ao patrão para sair mais cedo do trabalho, pega um ônibus lotado, vai para um consultório médico que fica no centro da cidade, gasta seus trocados, seu tempo e seu humor, e, ao chegar, esbaforido e atrasado, descobre através da secretária que sua hora, na verdade, está marcada para semana que vem. Sinto muito, você perdeu a viagem.

Todo mundo já passou por uma situação assim, de estar no lugar errado e na hora errada por pura distração. Acontecendo só de vez em quando, tudo bem, vai pra conta dos vacilos comuns a qualquer mortal. O problema é quando você se sente perdendo a viagem todos os dias. Todinhos. É o caso daqueles que ainda não entenderam o que estão fazendo aqui.

Estão perdendo a viagem aqueles que não se comprometem com nada: nem com um ofício, nem com um relacionamento, nem com as próprias opiniões. Estão sempre flanando, flutuando, pousando em sentimento nenhum, brigando por idéia nenhuma, jamais se responsabilizando pelo que fazem, pois nada fazem. Respirar já lhes é tarefa árdua e suficiente. E os dias passam, e eles passam, e nada fica registrado, nada que valha a pena lembrar.

Estão perdendo a viagem aqueles que, em vez de tratarem de viver, ficam patrulhando a existência alheia, decretando o que é certo e errado para os outros, não tolerando formas de vida que não sejam padronizadas, gastando suas bocas com fofocas, seus olhos com voyeurismo, sem dedicar o mesmo empenho e tempo para si mesmo.

Estão perdendo a viagem aqueles preguiçosos que levam semanas até dar um telefonema, que levam meses até concluir a leitura de um livro, que levam anos até decidir procurar um amigo. Pessoas que acham tudo cansativo, que acreditam que tudo pode esperar, que todos lhe perdoarão a ausência e o descaso.

Estão perdendo a viagem aqueles que não sabem de onde vieram nem tentam descobrir. Que não sabem para onde ir e nem tentam encontrar um caminho. Aqueles para quem a televisão pode tranqüilamente substituir as emoções.

Estão perdendo a viagem aqueles que se entregam de mão beijada às garras do tédio.

Amantes promovidos

Venho percebendo um fenômeno da ordem dos menos importantes, mas, ainda assim, curioso. Antigamente, a pessoa casada que vivia um relacionamento extra-conjugal tinha o quê? Um amante. Homens tinham amantes, mulheres tinham amantes, e amantes não tinham a menor chance de receber alguma condescendência por parte da sociedade. O povo caprichava na hora de estereotipá-los. No caso das amantes, eram descritas como notívagas que vestiam vermelho, mantinham garras afiadas, lingerie de tigrinho e cabelos excessivamente compridos. No caso dos amantes, eram homens com emprego incerto, que podiam escapar no meio da tarde, e que usavam camisas listradas. Por que camisas listradas? Sei lá, deve ter alguma relação com a imagem do malandro, uma coisa meio Moreira da Silva. Mas sem o chapéu.

Os amantes exalavam luxúria. Eram pessoas de índole duvidosa, já que pouco se importavam de estar colaborando para a ruína dos lares. As amantes eram umas sem-vergonhas que queriam fisgar um marido a qualquer preço, os amantes eram uns farristas que divertiam-se comendo a mulher do próximo. Um pessoal absolutamente sem coração.

Alguém ainda tem amante? Nunca mais ouvi falar. E olha que eu lido com gente à beça, de tudo quanto é tipo, formato, cor, idade, estado civil. Ninguém mais tem amante. É uma raça em extinção. As pessoas, agora, casam e são felizes para sempre. E, quando acham que o "pra sempre" anda meio tedioso, arranjam um namorado.

Homens têm a esposa e uma namorada. Mulheres têm o marido e um namorado. Nunca vi nada mais familiar. As namoradas são estudantes, médicas, bibliotecárias, mulheres que usam jeans e camiseta, cabelo curto e unhas curtas, elegantes e discretas. Discutem Nietzche, são companhia para um cinema, passam as festas de fim de ano com a turma sem reclamar.

Os namorados são surfistas, engenheiros, instrutores de informática. Mandam e-mails carinhosos, sugerem discos de jazz, dizem eu te amo.

Amante é coisa de quem curte relações clandestinas, transa atrás das portas e exagera no perfume. Uma decadência. Os amantes foram promovidos a namorados. Adeus vestidos vermelhos e camisas listradas.

As fotos é que pagam o pato

Depois de uma briga histórica, daquelas de não deixar coisa nenhuma em pé, você se vê completamente sozinha, o romance acabou. Ele não era nada daquilo que você pensava, é um cafajeste, um galinha, um insensível. Você corre até a cozinha, pega uma tesoura afiada, voa para seu quarto e, bufando de ódio, tira do armário a caixa com todas as fotos que vocês tiraram durante o namoro e começa a (não faça isso, garota, você vai se arrepender, o cara fez parte da sua história, um dia esta raiva vai passar e você nem lembrará do rosto dele, vai querer recordá-lo, larga esta tesoura, não faz bobagem, me escu...) picar bem picadinho todas as fotos em que aparecem juntos, menos aquela em que você está uma deusa - esta você vai cortar pela metade, e a parte em que ele aparece vai para o lixo, naturalmente.

Serviço feito. Nem mesmo um expert em quebra-cabeças de 20.000 peças conseguiria juntar o olho direito com o olho esquerdo daquele infeliz, as fotos viraram farinha. E agora? Está se sentindo melhor?

Você está se sentindo um trapo. A dor da perda não se aplaca com um gesto extremado, e se o propósito era vingança, grande porcaria: o modelo fotográfico que foi esquartejado segue inteirinho da silva tocando a vida dele, não sentiu nem um arrepio quando você praticamente moeu seu sorriso lindo. Ele tinha um sorriso lindo, não tinha?

Você vai lembrar do sorriso, dos olhos, da boca ainda por muito tempo. Picotar fotos é só a materialização de um desejo: gostaríamos que certas pessoas saíssem da nossa vida instantaneamente, bastando pra isso uma tesourada. Mas o processo de despedida é bem mais lento e mais difícil. É preciso deixar o tempo agir. E o tempo age com mais parcimônia.

Mas quem quer saber de parcimônia? Mulheres com o orgulho ferido seguirão mutilando seus álbuns de fotografia, arrancando cabeças, amputando casais que pareciam colados com superbonder. Uma pena aleijar assim o passado, mas, por outro lado, talvez seja conveniente deixar bem livre este ímpeto destrutivo e o pouco apego às lembranças. Nenhum problema em descarregar nosso ódio num pedaço de papel. Sabe-se lá o que aconteceria se o engraçadinho aparecesse na nossa frente e nos encontrasse com uma tesoura na mão.

Percepção de solidão

Uma mulher entra no cinema, sozinha. Acomoda-se na última fila. Desliga o celular e espera o início do filme. Enquanto isso, outra mulher entra na mesma sala e se acomoda na quinta fila, sozinha também. O filme começa.

Charada: qual das duas está mais sozinha?

Só uma delas está realmente sozinha: a que não tem um amor, a que não está com a vida preenchida de afetos. Já a outra foi ao cinema sozinha, mas não está só, mesmo numa situação idêntica a da outra mulher. Ela tem uma família, ela tem alguém, ela tem um álibi.

Muitas mulheres já viveram isso - e homens também. Você viaja sozinha, almoça sozinha em restaurantes, mas não se sente só porque é apenas uma contingência do momento - há alguém a sua espera em casa. Esta retaguarda alivia a sensação de solidão. Você está sozinha, não é sozinha.

Então de repente você perde seu amor e sua sensação de solidão muda completamente. Você pode continuar fazendo tudo o que fazia antes - sozinha - mas agora a solidão pesará como nunca pesou. Agora ela não é mais uma opção, é um fardo.

Isso não é nenhuma raridade, acontece às pencas. Nossa percepção de solidão infelizmente ainda depende do nosso status social. Se você tem alguém, você encara a vida sem preconceitos, você expõe-se sem se preocupar com o que pensam os outros, você lida com sua solidão com maturidade e bom humor. No entanto, se você carrega o estigma de solitária, sua solidão triplicará de tamanho, ela não será algo fácil de levar, como uma bolsa. Ela será uma cruz de chumbo. É como se todos pudessem enxergar as ausências que você carrega, como se todos apontassem em sua direção: ela está sozinha no cinema por falta de companhia! Por que ninguém aponta para a outra, que está igualmente sozinha?

Porque ninguém está, de fato, apontando para nenhuma das duas. Quem aponta somos nós mesmos, para nosso próprio umbigo. Somos nós que nos cobramos, somos nós que nos julgamos. Ninguém está sozinho quando curte a própria companhia, porém somos reféns das convenções, e quando estamos sós, nossa solidão parece piscar uma luz vermelha chamando a atenção de todos. Relaxe. A solidão é invisível. Só é percebida por dentro.

Festa no outro apartamento

Anos atrás a cantora Marina compôs com o irmão dela, o poeta Antônio Cícero, uma música que dizia: "eu espero/acontecimentos/só que quando anoitece/é festa no outro apartamento". Passei minha adolescência inteira com esta sensação: a de que algo muito animado estava acontecendo em algum lugar, porém eu não havia sido convidada.

Até aí, nada de novo. Não há um único ser humano que já não tenha se sentido deslocado e impedido de ser feliz como os outros são - ou aparentam ser. O problema está em como a gente reage a isso. A grande maioria que espera "acontecimentos" fica ligada demais na festa do vizinho, se perguntando: como fazer para ser percebido? A resposta deveria ser: percebendo-se a si mesmo. Mas é o contrário que acontece: a gente passa a se vestir como todo mundo, falar como todo mundo, pensar como todo mundo. Só então consegue passe livre: ok, agora você é um dos nossos, a casa é sua.

As festas em outros apartamentos são fruto da nossa imaginação tão infectada por falsos holofotes, falsos sorrisos e falsas notícias de jornal. As pessoas alardeiam muito suas vitórias, mas falam pouco das suas angústias, revelam pouco suas aflições, não dão bandeira das suas fraquezas, então fica parecendo que todos estão comemorando grandes paixões e fortunas, quando na verdade a festa lá fora não está tão animada assim.

É preciso amadurecer para descobrir que a grama do vizinho não é mais verde coisíssima nenhuma. Estamos todos no mesmo barco, com motivos pra dançar pela sala e também motivos pra se refugiar no escuro, alternadamente. Só que os motivos pra se refugiar no escuro não costumam ser revelados. Pra consumo externo, todos são belos, lúcidos, íntegros, perfeitos. "Nunca conheci quem tivesse levado porrada/todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo". Fernando Pessoa sacando que nada é o que parece ser.

Sua solidão, sua busca por paz interior, seus poucos e leais amigos, seus livros, suas músicas, fantasias, de desilusões e recomeços, tudo isso vale ser incluído na sua biografia, e pode ser mais divertido que uma balada em algum lugar distante. Pegar carona na alegria dos outros é preguiça, e quase sempre é furada. Quer festa? Promova-a dentro do seu apartamento.