Coleção pessoal de GiseleTeixeira

Encontrados 4 pensamentos na coleção de GiseleTeixeira

Os Três Mal-Amados

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

É o sussurrar de um olhar que esconde o brilho da alma e a sua beleza infinita...

As palavras que te ouvi dizer, no escuro
Ecoaram pelo meu pescoço, sufocando os meus pulmões
Quando as lágrimas já não eram simples gotas e gotas,
Os pequenos fios dos meus cabelos sonharam
Pela última vez (vi-te).

A cor que respiravas naquele momento
Metamorfoseou-se na cor da minha pele, afligindo…
Vestias a sorte, em simples pedaços de pano preto ou verde
Nas escadas onde eu esperava a sede, tu bebias do meu amor.
Os meus olhos renderam-se (pela última vez).

Odeio-me por não saber de cor a tua voz,
Mas por sentir os teus passos consigo fingir que me odeio
Pregando monstros, despedaçando quimeras azuis ou verdes
Amo-te mil vezes sem mil, enquanto os dias entristecem as calçadas
Molhadas pela chuva do temporal que a minha razão criou.

Já nada pode acompanhar a rota deste ébrio navio
Onde nado sufocadamente a teus pés (banhados pelo perdão).
Tristes sonhos, amargas mágoas, miseráveis e ridículos dias
Preenchem o meu calendário, ansioso pelos teus olhos.
Amor (pela única vez) senti.

Nunca fiz da vida uma epopeia, mas conheci a mais bela de todas as poesias...