Coleção pessoal de flaviacavalcante

1 - 20 do total de 24 pensamentos na coleção de flaviacavalcante

Derramei lágrimas de sangue por aquele soltado que lutou por uma pátria miserável. Você sabe o nome dele? Não, eu duvido que saiba o nome de cada soltado que foi para aquela maldita guerra. Ou pelo menos de um. O seu nome era João. João tinha sonhos, tinha planos. Ele se casaria comigo. Me faria feliz. Mas por causa desse patriotismo barato e medíocre ele morreu. Acabou. É o fim para mim, que viveu a vida toda a espera de João. Não do Soldado João, mas do Homem João. Aquele pelo qual largaria tudo por amor. Ele morreu como tantos outros. Inúmeros nomes, inúmeros mortos enterrados em terras desconhecidas. Eu nunca verei seu corpo novamente. Só tenho essa carta vergonhosa que me trás lágrimas. Eu bem que avisei a ele. Falei que não sabia lutar. E não havia porque e por quem lutar. Porém ele foi e foi com coragem. Era teimoso, astuto e esperto. Mas não era um soltado. Não, não era um matador de pessoa e muito menos um atirador profissional. Perdi meu João para esse país que nunca fez nada para ele. Que o máximo que fez foi dar roupas, treinamentos e uma arma para matar. Feito ovelha rumo ao matadouro ele foi. Só morrer. Só me deixar uma dor.

É por certo que te fazias de louca todas as vezes que pedia um beijo em seus lábios carnudos e lindos. Sempre inventava uma desculpa. Dizia que não podia porque seu pai não lhe deixava beijar antes do casamento. Ora, eu era apaixonado por tu, Ana. Eu me casaria no primeiro dia que a vi. Mas por algum motivo você me evitava. O que eu tinha? Eu não era feio, mulheres matariam para ficar comigo. Era um pouco, apenas um pouco mais alto que o normal. Mas tinha dinheiro. Porque Ana? Porque me obrigastes a ficar sem ti? Porque não me querias da mesma forma que te queria? Então um dia saindo de casa eu a vi. Você beijava outros lábios. Era uma homenzinho do jornal que nada mais deveria ter que uma caneta e papel. Meus lábios se contraíram e jurei vingança.
Entenda Ana, não foi porque eu quis. Eu te amava e preferia vê-la-te morta a ficar com alguém que não chegava aos seus pés. Então te matei porque aquele jornalistazinho não merecia nem um pouco da sua consideração. Mas me perdoa, eu sei que em outra vida ficaremos juntos porque fomos feitos um para o outro.

Enquanto envelhecia meus ossos, me olhavas de forma constante e perturbadora. Até gosto um pouco desse negócio de envelhecer. Esvaziar daquilo que nos torna mesquinhos, valorizar mais o momento e desvalorizar o material. Envelhecer é um dom que poucos tem. Não, meu querido. Envelhecer é diferente de ficar velho. Ficar velho são os ossos ficarem mais fracos, a pele enrugada, a vista embaçada, o andar dificultoso e a mente na época que passou. No olhar do passado. É isso que é ficar velho. É ter uma vida inteira e viver apenas o início dela. Envelhecer é viver tudo, inclusive e principalmente o presente. É que por mais que a dificuldade no andar e falar sejam presentes, a experiência também é. O valor da família. O valor daquilo que vivemos no momento nos torna completos e satisfeitos. Envelhecer é uma dádiva. Uma dádiva essa que tanto ansiei e consegui. A morte? Bem, a morte simplesmente faz parte da vida.

Ela então sorriu ao ver aquela flor. Adorava flores de todo tipo. Orquídeas, tulipas, rosas e até girassóis amarelinhos cor de verão. Isso era completamente encantador naquela menina de treze anos. Todos diziam que ela era madura demais para sua idade, que seu corpo era adulto demais, que seu olhar era de mulher. Mas ela não era mulher não. Ela era uma garotinha como qualquer outra sua idade. Menina moça, sorridente, linda, grandes bochechas, cabelos grandes e encaracolados. Ela era linda e ninguém via isso. Assim como muitas pessoas nesse mundo ridículo. Todos passam pela gente sem nos olhar de verdade. E com ela também era assim. Até que um dia…

Existe um dragão em meu quarto. Ok, não tem dragão nenhum até porque eles são gigantescos. Mas eu estou convencida de que existe um animal que cospe fogo e cheira a enxofre que mora em meu quarto. Talvez seja com meus cigarros semi-apagados. Minha vida é uma verdadeira bosta mesmo. Como posso falar que um bicho que cospe fogo mora em meu quarto se o único bicho que que tem por aqui sou eu? Completamente desnorteada da vida, eu bato nos móveis com meus pés incrivelmente grandes para uma garota de dezenove anos. Vai ver é por isso que ele escolheu morar em meu quarto já que se identifica com o meu pé. Mas que droga, não tem nenhum bicho em meu quarto. É que ando tão sozinha que fico inventando personagens para morar comigo. Isso ajuda quando me sinto só já que penso: pelo menos em meu quarto um animal me quer bem. Mas esqueço que esse animal faz parte da minha imaginação. Eu o até apelidei de Bob. O que a solidão faz com a gente, não é? Inventamos coisas para nos fazer companhia. Por exemplo, quando algum namorado briga comigo? É só falar: “Quem precisa de você se tenho o Bob?”. Eles ficam pirados comigo dizendo que nunca viram esse Bob. Eu fico rindo por dentro porque sei que nunca vão ver, mas eles não precisam saber disso. Nem eu vejo o meu Bob. Aliás, não existe animal nenhum em meu quarto. É melhor parar por aqui porque essa conversa não vai chegar a lugar nenhum.

Não sou legal. Eu nem sei calcular direito. Não falo muito bem, sou um pouco monótona. Demoro para entender as coisas, quando saio do sério falo demais. Quando estou nervosa eu também falo demais. Quando estou quieta é porque tenho algo. Quando estou triste eu realmente choro por qualquer coisa. Tenho a mania de não contar meus sofrimentos pra ninguém, a não ser pra quem realmente confio.
Então você apareceu. Não era para ser clichê, nunca foi para ser. Fazia de tudo para que não fosse. Mas você apareceu e mudou todo o meu conceito sobre isso. Mudou a minha forma de pensar, o meu juízo sobre Deus e as coisas. Nunca foi pra não ser. Só queria que fosse da forma correta. Que a vida tivesse sido um pouco mais justa. Que o coração e o amor não fossem tão desestabilizados. Que isso que sentimos não fosse tão errado. E isso não é clichê, isso é real. Podia ser um pouco menos difícil. Mas acontece que me apaixonei. Sei, sei, eu sei. Eu sei que isso sim é clichê. Mas o que eu posso fazer? Só esperar que isso passe, que te veja como uma das pessoas mais importantes em minha vida, porém com outro sentimento que não seja esse.

Sei que não sou desprovido de erros, meu amor. Mas sou perfeito. Perfeição vem da palavra inteiro. E eu sou inteiro, de corpo e alma. Eu sou inteiro teu.

O que sempre Maria procurara em sua vida era ser feliz. Durante sua infância em sua casa conturbada vivia como um fantasma. Dizia a si mesma todo o dia que quando casasse e tivesse sua família, faria diferente. Em sua adolescência viveu como deveria. Sem beber, sem desobedecer sua mãe, já então separada de seu pai, viveu em uma jaula sem poder realmente viver. Não fez nada que pudesse dizer: aproveitei minha adolescência de fato. Formou-se em Medicina e logo dedicou sua vida ao trabalho. Casou-se aos vinte e cinco anos de idade com um homem que julgava ser o homem de sua vida. Ele era completamente diferente dela: extrovertido, engraçado, simpático e bem humorado. Ela era fechada, na dela, um pouco antipática e não tinha nenhuma senso de humor. Juntos tiveram Alice, a primeira e única filha do um relacionamento de dez anos que acabou depois da descoberta de uma traição. Maria ficou desolada. Não queria comer, não queria beber e nem sair de casa. Queria ficar em seu quarto, em seu mundo. No lugar onde ela nunca, nunca poderia ser julgada. Após uns meses de terapia, Maria voltou a trabalhar e viver normalmente. Ou melhor, viver não seria a palavra indicada. Ela passou a sobreviver.

Ela era infeliz. Era toda infeliz. Seus olhos, seu nariz, orelhas, suas curvas, seu corpo, era toda infeliz. Tudo que sempre quis na vida ela não conseguiu. Mesmo se formando, trabalhando no que amava e recebendo muito bem, ela era infeliz. Sua casa era triste. A filha mal falava com ela, o ex-marido enviava dinheiro pela conta corrente, havia ficado bem mais velha do que aparentava. O que havia acontecido com Maria? Porque ela vivia naquela tristeza angustiante? Sem amigos, sem família, uma filha que mal falava com ela, um trabalho desgastante, uma vida cheia de decepções emocionais. Dificilmente se divertia ou saia. Todas as quintas ainda saia para tomar um café na cafeteria da esquina que tinha um café barato e de quinta. Pegava algum livro, sua bolsa e jaleco e ia para a cafeteria, sentava sempre no mesmo lugar, pedia sempre a mesma coisa e ficava lá horas até dar sua hora de ir para o trabalho.

Era uma quinta chuvosa quando Maria resolveu que mesmo com a chuva grossa ela iria tomar seu café de quinta, na quinta-feira. Pegou seu livro e saiu de casa ainda com o guarda-chuva e uma capa. Abriu a porta do estabelecimento e quando ia se dirigir para seu local de costume, havia um homem sentado lá. Ela parou, olhou o lugar quase vazio e voltou a olhar para o homem que lá estava sentado. Porque, em meio a tantos lugares bons, ele escolhera logo seu lugar. O mais no canto, o mais escuro, o mais depressivo? Resolveu que pediria a ele para se retirar do lugar. Um absurdo! Ela ia todas as quintas e sentava ali. Se ele quisesse sentar naquele espaço, que fosse outro dia. Decidida a discutir se possível, ela caminhou até à mesa e parou bem em frente. O homem lia um jornal e pareceu demorar para notar a presença de Maria ali. Ele baixou o jornal, levantou o olhar e sorriu:

“Sim?”

“O senhor está em meu lugar!” Disse ela decidida e autoritária. Com aquele jeito bem arrogante e antipática de quando queria alguma coisa.

Ele ainda confuso, olhou para os lados, para baixo da mesa, para as cadeiras e com um sorriso exclamou:

“Não estou vendo nenhum nome na mesa, suponho que ela seja de qualquer cliente que a encontrar vazia primeiro.”

“Todas as quintas eu venho aqui, eu sento nesse lugar, eu leio esse livro e depois de duas horas eu vou trabalhar! Então suponho que o senhor não queira atrapalhar minha vida. Por favor, escolha outra mesa e sente nessa amanhã”

“Mas eu já estou sentado!”

“Fique sentado em outra!”

Ele pareceu suspirar, mas tinha um ar tão arrogante quanto ela:

“A cafeteria está vazia, escolha outro lugar. Eu não vou sair daqui!”

“Não vai? Tem certeza?” Ela falou indignada com a arrogância do homem.

“Não, eu não vou. Se quiser sentar-se comigo tudo bem, mas não vou sair!”

Ela, já com raiva e bufando, jogou as coisas na mesa e sentou-se. Ele deu um sorriso pequeno e vitorioso e continuou lendo o seu jornal. Ela fez o seu pedido e enquanto bebia o café, ficava fitando o jornal dele querendo que o jornal queimasse ou que ele saísse logo. Era a única hora que ela tinha para ela. Aquele homem não poderia acabar com isso!

“Então é médica?” Ele soltou ainda enquanto lia o jornal.

“Não te interessa” Respondeu ela durona e com raiva enquanto bebia um pouco do seu café.

“Oras, pare de ser infantil. Só fiz uma pergunta por causa do jaleco” Ele baixou o jornal e pôs-se a beber o seu café com leite que havia sido trazido pela moça simpática que servia sempre com um sorriso no rosto.

“Sim, Hospital Santa Cruz. Que saber minha credencial?”

“Você me lembra minha filha, e ela tem cinco anos.”

“Porque você não se detém a apenas ler seu jornal e tomar seu café rápido?”

“Não se preocupe, tenho bastante tempo de sobra para conversar.”

“Não quero conversar.”

“Qual seu nome?”

“Qual a parte do ‘não quero conversar’ você não entendeu?”

“Tem cara de Sandra, Marisa…”

“Maria. Meu nome é Maria” Ela falou virando os olhos e bebendo o seu café.

“Um belo nome esse: Maria.”

“Você acha?” Ela levantou o cenho e depois deu os ombros “Acho normal, igual demais”

“Não gosta de coisas iguais?”

“Gosto de coisas diferentes.”

“Então porque tem que vim toda quinta com o mesmo livro, na mesma cafeteria e senta na mesma mesa?” Ele olhou para ela que piscava um pouco surpresa com essa afirmação.

“Isso é… É completamente diferente!”

“Não, não é. Sabe, tenho observado você todas as quintas. Já esbarrei com você várias vezes aqui, porém parece que seus olhos estão fechados para o que é novo. Parece que eles estão vendados para a vida. Sempre, sempre a mesma rotina.”

“Você não tem… Não tem absolutamente nada a ver com minha vida!”

“Ricardo!”

“O quê?”

“Meu nome. Ricardo. Prazer em te conhecer Maria.”

Ele levantou e deixou ela sentada ali, perplexa, sem nenhuma palavra. O dia todo ficou pensando naquela conversa. O dia todo, a semana toda. Passou a semana e quando chegou na cafeteria, ele não estava mais lá. Olhou para os lados procurando aquela figura masculina que a havia deixado confusa e não achou. Quando ia caminhar para sua mesa de costume, algo lhe parou. Ela voltou e sentou em outra mesa. Deixou o livro e lado e pegou um jornal. Não pediu o de sempre. Ela havia aberto os olhos para a vida. Chega de rotina, chega de tristeza! Ela iria mudar, e que começasse com as pequenas coisas!

Sou um amontoado de clichês. São tantos clichês que eu realmente não tenho certeza de todas as coisas que sinto. Nada durona, sem nenhum orgulho aparente, sorridente, cretina porque, para mim, cretino é aquele que acredita em tudo. Eu acredito em tudo, principalmente no amor. Acredito no sentimento, nos sorrisos, nos olhares, acredito em tudo que me fascina. Eu sou clichê.

Acontece que minha pseudo-intelectualidade aparece apenas na madrugada. A culpa não é minha se o efeito do café quente só vem a noite. E cá estou com milhares de ideias que deveria ter tido de manhã. Mas não tive, e tenho agora. E agora, ao som de Cícero, eu posso olhar para mim e me perguntar: o que tens feito da tua vida? Paro e penso que as vezes estou apenas passando pela vida sem realmente vivê-la. Olha para mim e me vejo chorando por dentro. Talvez a culpa não seja realmente minha por me sentir impotente. Por me sentir deliberadamente estranha a cada vez que entro dentro dos meus pensamentos. Novas sensações, novos sentimentos que tenho medo de ir fundo.
Eu sei, não sou uma pensadora, eu só sou uma mortal com problemas mínimos. Então me calo.

aquele velho álbum. Várias vidas em uma vida. Eu, Angélica, oitenta e nove anos com uma vida inteira e com uma vontade de viver mais oitenta anos. Ou voltar todos eles para vivê-los novamente. A vida é assim, não é? A gente nasce morrendo já. Eu não sei exatamente o que fiz, só sei que meu tempo é chegado. Não sei, apenas sei que está chegando. Não sei se existe vida depois da morte, mas eu sei que minha valeu a pena. Amo viver, e lamento por ter que morrer. Lamento mais ainda não poder deixar um legado tão grande. Eu lamento. Mas eu vivi minha vida. E você? Vive a sua?"

Angélica sobre sua morte três dias antes dela chegar.

Não, meu caro. Eu não me importaria uma vez de lhe explicar duas vezes que a dor é algo passageiro. Que as lágrimas, que hoje são abundantes em seu rosto, vão se transformar em sorrisos. Meu maior esforço é poder dizer que tudo isso vai passar, por mais que não passe. Porque é essa minha função: fazer você acreditar em um sonho, mesmo que eu não acredite.

Então me perguntei o que havia feito até hoje. Minha vida, minhas escolhas, os meus sentimentos. Olhei para mim no espelho e vi alguém completamente diferente do que imaginava que seria a uns cinco anos atrás. Mudei. Mudei mesmo. Mas a mesma alma ficou, o mesmo olhar ficou, o mesmo sorriso, as manias, o coração é o mesmo. O corpo? Que importa o corpo? Que importa a carcaça quando se tem um coração sincero? Um coração puro e verdadeiro? Sou a mesma essência. Roupas mudaram, sorriso permaneceu, altura mudou, coração continuou. Me sinto com a mesma intensidade de amar, de me entregar, de conhecer o milagre que há em mim.

Acordei. Percebi quanto humano eu era. Quanto frágil, quanto dissolúvel e esquecível eu era. Ontem? Ontem eu era um Deus, e hoje eu sou mortal. Dormi como um ser imortal e hoje vejo o quanto a vida é pequena diante de tantas vidas. Solidão para mim é como uma rocha. É sólida, é única, é escorregadia quando se coloca em uma praia. Acordei mortal, sozinho, como uma pedra. Acordei mortal como sempre fui e nunca quis acreditar. A gente nasce morrendo, não é o que dizem? Busquei tantas riquezas, tanto dinheiro, tanta glória para mim mesmo que esqueci que um dia vou morrer e tudo aquilo que juntei não vai para o caixão comigo. Um dia as pessoas vão me esquecer. Pessoas que herdarão todo meu dinheiro nem se lembrará que eu quem consegui batalhando. Não sou um deus. Nunca fui, apesar de muitas vezes na vida ter achado que era.
Então morri ao descobri quão mortal eu era. Estou morrendo a cada minuto e a única palavra que vem em minha cabeça é “babaca

Tristeza não define fim. Talvez tristeza seja o começo de muitas alegrias que experimentemos no decorrer da vida. O que define o fim é a desistência. Largar tudo, “chutar o balde”, desistir de viver e de lutar. Eu te desejo, meu caro, toda a força e coragem para seguir em frente. Não desista por causa da tua tristeza. É nela que você se descobre, se ama e se supera. Te desejo milhares de tristezas na vida para que te conheças melhor.

Era uma canção de amor

bem no meio dos meus olhos

mas você não viu, nunca vês quando pego em tuas mãos

e mesmo calejadas de tanto trabalhar, eu falo que são macias.

E quando olho para o seu rosto e me vejo em você,

você não percebes que te quero com o fundo de minh’alma?

Olhos teu.

São tão meus os olhos teu, e os olhos meus me fazem teu, e teu sorriso é meu como o meu é teu. Tudo é teu que é meu. E meu eu é seu.

Acordei com uma dor de cabeça incessante. Tomei aquele velho café, olhei pela janela e vi o dia lindo lá fora. Sábado, sol, praia, as pessoas estavam felizes. Mas não eu. Eu sabia que era uma fase, que era o dia. Que diz seguinte eu estaria bem. Todo dia quatro era a mesma coisa. Tinha até vergonha de dizer que ainda chorava pela morte do meu gato. Mas não me culpe. Ele era minha única companhia desde criança. Não conhecia nenhum ser humano tão bom quanto era o meu gato. Botas era alegre, divertido, brincalhão. Ele era preguiçoso como eu, um amor de gato que ninguém no mundo iria imaginar em fazer mal. Mas um ser fez, um ser que eu não sei quem é. Ele matou meu Botas. E eu estou aqui, triste. Era meu gato. Meu único amigo, e não me venha me criticar.

Puros e simples sorrisos. Mãos tremendo. Olhos cheios de lágrimas e medo de decepcionar. Era assim a primeira paixão. A segunda já não havia lágrimas nos olhos. A terceira não havia lágrimas e sorrisos puros. A quarta já não havia tudo isso e as mãos tremendo. A quinta nem existia o medo de decepcionar. As pessoas são assim, mudam. Esquecem do que há de mais belo em amar e ser amado. Tratam mal, falam de qualquer jeito, sentem necessidade de ser superiores. E isso não é amor. Isso é uma paixão banal que elas esqueceram como vivê-la.

No silêncio da noite ela olhou para a parede. Estava difícil enxergar até de dia, imagine a noite. Mas ela viu a sombra das árvores na parede. Não se era criança naquela época. Ela tinha certeza que não era criança naquele século. Pouco entendia o motivo de está ali naquele quente com aquelas pessoas que no início eram desconhecidas e agora elas faziam parte de sua vida. Ser Judeu no auge de uma guerra daquele tipo já era ruim, imagine uma criança judia. Ela sabia que estava sendo punida por algo que nem sabia se tinha feito. Todos os dias morriam pessoas que nada faziam a não ser trabalharem embaixo de chicoteadas. Naquele dia ela mesma havia presenciado a morte de uma de suas vizinhas. Era uma boa mulher. Gostava de cozinhar para os filhos e marido. Sempre que fazia um bolo, ela lhe levava um pedação enorme. E ao ver aquilo, Alizah começou a chorar. Apesar de estar acostumada com a morte, se é que pode se acostumar com alguma morte, aquela não era uma má mulher. Sua mãe, que estava ao lado, a abraçou e a levou para um lugar escondido. Os alemães não podiam ver uma criança chorando daquela forma.
E foi aquela noite de insônia que Alizah ficou olhando para a parede. Ela não havia feito nada, absolutamente nada para ser privada até de chorar. Ela era uma boa pessoa como sua mãe. Seu pai havia ido para longe com outros homens e seu irmão. Elas não tinham notícias deles a muito tempo.
Levantou devagar e foi até a pequena janela. Ficou olhando para fora. Viu alguns alemães conversando sobre alguma coisa. Pensou em como vivia bem antes. Tinha toda boneca que queria, sua mãe, que era linda, estava um pouco mais velha. Continuava linda, porém parecia ter envelhecido vinte anos. Lembrou-se do que um soldado havia dito ao desocuparem sua casa: “ratos”. Era ela mesma um rato? Uma criança de 10 anos, inteligente, bonita, era um rato? Então voltou para a sua cama improvisada do lado da mãe. Sairiam dessa, de alguma forma aquilo passaria. Elas voltariam para casa onde estavam seu pai e irmão e eles a receberiam com música, comida e uma boa história.