Coleção pessoal de COSTAMACEDO

Encontrados 15 pensamentos na coleção de COSTAMACEDO

FLORES

Erguidas entre as finas mãos das plantas,

rescendentes de mística beleza,

as flores são as hostis sacrossantas,

carnes e sangue de Máter-Natureza.



Fabricam-nas com tal delicadeza

forças ocultas, celestiais e santas,

que lembram traduções de etérea reza

que sonho ouvir de angélicas gargantas.



Sacerdotisa envolta em verde manto,

ó planta, expõe, aos povos, altaneira,

as flores (graça pura, excelso encanto):



- São hostis, para os olhos que pecarem

aurirem delas a pureza inteira,

para os meus olhos crentes comungarem.


Santo Tirso, 1914

"TEMPUS PERDIDI" - O TEMPO PERDIDO

Levei a arquitetar, no meu passado,
Uma torre de sonhos e quimeras,
E lá dentro, na torre, como feras.
Prendi os meus desejos com cuidado.

Numa aureola de amor, inebriado,
Meu coração, perdeu-se, nessas eras,
Em Loiras fantasias, primaveras
Cheias de flor, num sonho embalsamado.

Um dia despertei; olhando o mundo,
Perdi a fantasia; diante de meus olhos
Havia um longo abismo negro e fundo.

E o meu olhar chorava! hoje sorri:
É que num roseiral transformo abrolhos;
Pasmado só - do tempo que perdi!

Coimbra, Portugal - 1907

MOEDA AMOR

Quem tem a moeda Amor
tem a riqueza mais cara,
a sua arca é uma ara,
possui o maior valor.

Só a Alma, quando vibra,
é a sua fundição
e tem maior cotação
do que o dólar ou a libra.

Arrecada esse tesouro,
porque to podem roubar.
Essa moeda sem par
vale mais que prata e oiro.

Os ladrões andam à solta,
a manobrar pelo escuro,
nenhum tesouro é seguro...
depressa a sorte se volta.

Nossa Senhora Roubada
tem sete espadas no peito;
assim, quem ama é sujeito
a ter vida torturada.

E Jesus Nosso Senhor,
o imaculado Jesus,
foi pregado sobre a cruz
só por ser o Rei do Amor.

Lágrimas de Amor não vêm
apurar ao canto dos olhos;
cristalizam entre abrolhos,
o coração as detém.

Correr por Amor não cansa;
quero, amando, envelhecer...
Morrer de amor é viver,
quem ama é sempre criança.

Martírios de Amor! Quem há-de
condenar-lhe os desvarios,
se ele corre, como os rios,
para o Mar...da Santidade!

Porto, Portugal, 19...

A CRIANÇA

A música de um rádio esvai-se da taberna,
espalha-se na rua estreita e mal calçada;
é compasso, talvez, de uma dança moderna,
talvez ária de amor, febril, apaixonada.

Com dois anos ou três, vestida cor de rosa,
de bracinhos ao ar, uma menina dança,
tão linda, tão gentil, tão pura, tão graciosa,
que toda a gente pára a mirar-se na criança.

O seu corpo volteia, os seus braços são asas,
seus pequeninos pés estão pisando flores,
em roda surge, em vez das mais humildes casas,
parede palaciana embriagante de cores.

Esta criança transforma a pobreza em riqueza,
adoça alegremente aquele ambiente triste,
o que é sórdido morre ante a sua pureza,
só ela, ela somente, ali impera e existe.

Ao som daquele rádio, a criança ingénua e calma,
dançando, nos conduz ao sobrenatural,
a ser apenas sonho, a ser apenas alma,
a viver para além de este mundo mortal.

Já não se escuta a rádio, a música é divina;
a taberna sumiu-se, há um portal do Céu;
é um Anjo-de-Deus a forma menina;
da sideral mansão, até ali, desceu.

Porto, Estio de 1959

A HISTÓRIA MAIS BELA E MAIS SOMBRIA


De família modesta, sem dinheiro,
casou-se com humilde carpinteiro.

E tão pobre ficou este casal
que nasceu o seu filho num curral.

O berço deste foi a manjedoura
onde comiam a jumenta e a toura.

De palha solta deram-Lhe o colchão
como se fora a uma ovelha ou cão.

Nunca, até agora, mais modesto abrigo
se dispensou para qualquer mendigo.

Mas este quadro de miséria extrema
é um canto de amor, um doce poema.

Não é por ser nascido num castelo
ou em palácio que se nasce belo

ou que se tem o génio ou o talento,
íman na voz, o sol no pensamento.

A simpatia, a graça, a formosura,
dons afectivos, candidato, ternura,

não fazem privilégio de alta roda,
das damas da nobreza e grande moda.

Dessa pobre Mulher do humilde povo
nasce um Menino que é o Mundo Novo,

a ideia nova, a redenção, a aurora,
a luz do amor, a voz libertadora.


Logo ao nascer era de maravilha


toda a expressão que no seu modesto leito
o crê predestinado a grande feito.

Tanto correu e se espalhou a fama
que até os Reis de muito longe chama

e também veio vê-Lo pressuroso
o tirano, o soberbo, o invejoso,

que logo acharam, para si, perigo
no mísero curral, no humilde abrigo;

que logo, tendo em conta seu regalo,
ao Menino, planearam de matá-Lo,

Mas esta pobre Mãe, triste plebeia,
para o seu Filho todo o mal receia;

Da visita dos maus Ela adivinha
o fim, o vil intuito que continha;

E resolve fugir... espera a noite,
sombra que tudo esconda, onde se acoite;


Numa jumenta cavalgando vai,
com o Filhinho ao colo, aquela Mãe,


levando ao lado atento caminheiro,
como zeloso guarda, o carpinteiro.

Procuram os caminhos mais escusos,
apavorados, trémulos, confusos,

e só pararam atingindo o alvo,
o seu Menino Amado ver a salvo,

quando chegaram a outro país amigo,
onde encontraram protecção e abrigo.

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E o Menino cresceu e correu Mundo
e mais cresceu o seu saber profundo,

pois ainda criança aos mestres espantava,
com as sábias respostas que lhes dava.

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A Força avassalava a maioria,
o povo, a multidão, tudo sofria;

O Senhor tinha mando e privilégio,
e dava e transmitia o poder régio;

Filho de escravo era também escravo,
que podia espremer-se como um favo,

amoldar-se à vontade do senhor,
sem compaixão, sem atender à dor;

O idolatra da força estava em voga,
era o carrasco que vestia a toga.

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Então Esse de humilde nascimento
começou a pregar seu pensamento.

Era belo e incisivo no dizer,
quem o escutasse era incitado a crer.

Discípulos, em breve, conquistava,
sua doutrina mais se propagava.

O sofredor, o pobre, o deserdado
achavam maravilhas no Seu brado.

O tirano, o soberbo, o invejoso
também veio escutá-Lo pressuroso.

Ele exaltava o humilde, o que sofria;
o império de Seu Pai lhe prometia.

Pregava o amor a Deus, Seu Pai Celeste,
e se exprimia sempre em nome Deste:

«Quem não amar, na terra, o semelhante
ofenderá Meu Pai, no mesmo instante»

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E a Mãe no Filho toda se revia,
mas o tirano não adormecia

e novo susto, nova dor a espreita;
ele prepara-lhe a feroz receita:

Entre os amigos de O que prega o Amor,
descobre, encontra o réptil traidor.

O beijo duma boca envenenada
foi o primeiro gesto da cilada.

O beijo denuncia, identifica,
depois surge a chicana, a fraude, a trica;

esbirros são armados em juízos,
a decisão do arbítrio quer raízes,

quer dar-se à burla aspecto de decência,
o traficante joga na aparência.

A causa de principio está julgada,
em bastidor foi a sentença dada,

se pinta a Via Sacra e o Calvário
para servir de fundo no cenário.

A trama urdida só a um fim conduz,
a que se pregue o Justo sobre a cruz.

Aquele que somente amor exprime
se acusa e culpa do mais negro crime;

a gente rica, bem tratada e nédia
nem sequer se apercebe da tragédia;

o povo ladra, no seu louco engano,
cão assolado, a soldo do tirano;

com medo dos terrores, dos castigos,
apavorados fogem os amigos.

Só Ela fica, sem receio a nada,
quer com o Filho ser crucificada.

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A Igreja, velha, sábia e previdente,
todos os anos, infalivelmente,

grita ao rebanho, chamar-lhe à memória
essa tragédia, essa sombria história,

pois nela vive o sentimento amargo
de que anda o lobo farejando ao largo;

para evitar o assalto do inimigo
que é bem preciso reforçar o abrigo,

manter, para o combate ao malefício,
espírito de heroísmo e sacrifício,

se for preciso, transportar a cruz,
saber nela morrer, como Jesus!

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A Mãe que mais amou e mais sofreu,
ao Filho inteiramente consagrada,
em nuvens de almas se elevou ao Céu,
ao som de hinos de Glória e de Alvorada.

Humilde, frágil, filha de plebeu,
com simples carpinteiro era casada,
curral foi a morada onde nasceu
a Vida que Ela viu crucificada.

Atingiu da beleza a plenitude:
Pela escada subiu do sofrimento
ao vértice do amor e da virtude.
Nunca existiu amor tão vivo e atento!
Mães, que supondes vossa empresa rude,
eis montanhas de fé, rios de alento!

Porto, Abril de 1955

A MENTIRA

Este jeito tão agudo
tornou-a célebre atriz:
Mentira se presta a tudo
e em tudo mete o nariz.

Verão a fé que ela inspira,
afirmando à gente nova
que se engana, que é mentira
o que Mentira reprova.

Digam lá ao poderoso,
a quem ela lisonjeia
e cativa e traz baboso,
que seja a Mentira feia!

Se lho dizeis, sois corridos,
alcunhados de intrigantes,
de patifes, de vendidos,
de pandilhas, de tratantes.

Mentira, Calúnia, Intriga,
Lisonja ou Hipocrisia
são capas em que se abriga,
mantos com que se atavia.

A Mentira é cadastrada,
usa vários apelidos,
sempre bem caraterizada,
sempre a mudar de vestidos!

Tem modos de regateira,
usa navalha na liga
e pistola na algibeira?
É a Calúnia, A Intriga;

Vem de carinha de santa,
de voz meiga e fala pia
e de ternura que encanta?
Chama-se a Hipocrisia.

Mentira sabe viver,
com jeito viver procura;
é amante do Poder
e dá o braço à Fartura.

Mentira tira partido
do seu engenho matreiro,
tal como o lobo vestido
com pele de cordeiro;

É coxa, se ouve dizer,
mas, quando se põe a andar,
nem sempre, mesmo a correr,
ela é fácil de apanhar.

Lá vem um dia a Ciência,
de imortal tenacidade
e de invencível paciência
e proclama a Verdade.

Muitas vezes a Verdade
mora nos mais altos Céus,
não desce à Humanidade,
é privilégio de Deus;

Então aí a Mentira,
achando-se sem rival,
traça, volta, risca, gira,
orgulhosa e triunfal.

Mentira diz triunfante:
«Mentira existe, logo há-de
(Mentira comediante!)
ser a Mentira...Verdade».

Mentira consome a vida
a fingir ser a Verdade
é como mulher perdida
a aparentar castidade.

Mentira toda se vira,
Mentira toda se ajeita,
Mentira toda se enfeita,
mas fica sempre Mentira.

Mentira toda taful,
Mentira toda aparência
é de incógnita ascendência
e afirma ter sangue azul.

Se acaso lhe perguntais,
ao vê-la passar ligeira:
- «Ó Mentira, onde é que vais?»
responde toda lampeira:
- «Vou a casa de meus pais».

Tem sete filhos Mentira,
filhos bem originais;
Estes filhos da Mentira...
...são os pecados mortais.

TEUS SEIOS

De tanto os ver arfar, arfar, arfar...
- quando os meus olhos a mirar-te quédo -
os teus seios me fazem recordar
dois pombos novos a tremer de medo,
que fugir tentam... sem poder voar.

São o altarzinho, Virgem sem pecados,
que tanto olhar enamorado atrai;
teus seios são os frutos delicados
que, tão somente quando sejas mãe,
poderei ver de todo sazonados.

E tão puros até, que o próprio Deus
os não destina as bocas venenosas.
Ele os criou para os filhinhos teus
com lábiozinhos tenros como rosas,
com o candor dos querubins dos Céus.

Por isso, meu Amor, depressa, vem,
vem a meus braços, dá-te por isso vencida;
que havemos de vivera mesma vida
e que teus filhos serão meus também.

Ânforas cheias de preciosos vinhos!
teus seios - dias ondas de desejos -
são como dois emplumes passarinhos
que para o cibo - meus ardentes beijos -
cheios de fome estendem seus biquinhos.

OS PECADOS MORTAIS

I
SOBERBA
Soberba, orgulho, vaidade,
(chamam-lhe alguns presunção)
é cheia de magestade,
vazia de coração.

Soberba tem grande pança,
cara carrancuda e torta,
Soberba, cheia de chança,
de si apenas se importa.

II
AVAREZA
Avareza tudo quer,
se tem muito mais quer ter;

Com a vista arregalada,
Avareza não vê nada;
Põe-se a ouvir, a escutar,
e só ouve blasfemar;

Arrecada noite e dia
e acha sempre a arca vazia.

III
LUXÚRIA
Luxúria desvergonhada,
em impudica atitude,
maneira a língua acerada
a difamar a Virtude.

Com rastejada paciência,
e o seu fito principal
é cativar a inocência,
conduzi-la para o mal.

Luxúria, filha infecunda
da Mentira e do Pecado,
saboreia a nódoa imunda,
ama o chão enlameado.

Pelas vielas impuras
a Luxúria se conduz,
mas sempre a horas escuras,
sempre a escapar-se da luz.

IV
IRA
Ira é atolada,
tem um focinho ferino,
grita por tudo e por nada,
fala sem jeito e sem tino.

O senso dela é um vime,
a sua agulha um punhal
afiado para o crime;
tem cadastro criminal.

V
GULA
Gula come, come, come,
mas por vício, não por fome;

de mastigar não descansa,
nem que tenha cheia a pança;

quando trata de entornar,
então bebe até tombar;

a mastigar e beber
é que ela sabe viver;

os seus dentes são os malhos
e as digestões seus trabalhos;

de seus feitos alardeia
se se senta à mesa alheia;

para comer do que gosta,
sempre a comer vence a aposta;

da Gula (cano de esgoto)
é a palavra o arroto.

VI
INVEJA
A Inveja é maldizente,
a todos chama canalha;
sua língua impenitente
é verdadeira navalha;

como nasceu torta e feia,
tem rancor à Formosura,
mas toda se pavoneia
e sobrepô-la procura;

até o próprio Talento
ela despreza e odeia,
porque todo o seu tormento
é não achar uma ideia.

VII
PREGUIÇA
Doença gera indolência
e a indolência a doença;
são da mesma parecença
e são a mesma na essência.

A preguiça não se lava,
na porcaria vegeta;
como o tempo a envergonhava,
espatifou a ampulheta;

é a viscosa minhoca,
que se arrasta e mal caminha,
para meter-se na toca
ou no papo da galinha.

Um dia, diz-lhe alma forte:
- «Preguiça, qual o teu mal?»
e ela, trágica e fatal,
responde-lhe: - «pouca sorte».

OS MEUS VERSOS

Os meus versos não são meus!
São um fio delgadinho,
Mais fino que o fino linho,
Da inteligência de Deus!

Sou o espelho unicamente:
Colho a imagem fulgurante
de estrela, de sol ardente,
Milhões de léguas distante.

Como, no búzio, cantando
Vem o mar, seu cavo grito
Anda talvez silabando
Em mim a voz do Infinito.

A frágil haste do trigo
Vibrou ao passar o vento;
Sucede o mesmo comigo.
Sacode-me o pensamento.

Ando, às vezes, distraído
E a ideia sorrateira
Vem-me achar de que maneira!...

E quando os meus versos traço
E os assino, como autor,
Reconheço que não passo
De receptor-transmissor.

Surge na várzea rasteira
Seara em verde lençol;
E cresce e fica altaneira
E quem a ergueu foi o Sol.

Até ao fundo covil
Do coração mais lapuz
Chega o hálito de Abril,
Vai uma réstia de luz.

O que somos, nesta vida,
Nós o devemos a Alguém
E passamos, de corrida,
Do além para o Além.

Viseu, Março 1948

ESCRAVIDÃO

Eu que a Liberdade tanto adoro,
Vivo por Ela e sempre Dela;
Que, só de imaginar venha a perde-la,
Derramo na minha alma intimo choro;

Eu que escutei, como celeste coro,
A voz, dos Ramas e dos Cristos, bela,
Eu cuja crença, cuja mente, vela
O seu altar onde, prostrando-me, oro;

Eu que lamento a mão fraca e indefesa
Contra qualquer humano despotismo,
Contra o poder até da Natureza;

Nasci para viver nesta ansiedade.
E, porque Nela, e sempre Nela, cismo
Sou escravo da mesma Liberdade.

AS MÃOS

As duas mãos
talhadas como irmãos,
entrelaçadas,
casadas,
unidas,
erguidas,
nas orações,
são, penso ao vê-las,
creio, ao erguê-las,
dois corações.

E no labor
lançadas,
acasaladas,
são o amor,
amor fecundo
e construtor
renovador
do Mundo!

O CLAMOR D'OS SEM TRABALHO

As fábricas encerradas,
Fechadas as oficinas;
Só estão escancaradas
As mil bocas pequeninas,
As mil bocas adoráveis,
Dos filhos dos miseráveis!

É o trabalho um dever
A que o Homem foi sujeito?
Nós julgamo-lo um direito.
Qual será maior pesar:
Pedir pão e não o ter,
Ou não ter onde o ganhar?

O MEU VARINO

Ao Dr. Francisco Ferreira Neves

Gabão, varino de Aveiro,
quase sexagenário,
tem sido meu companheiro,
com vigor extraordinário;

O alfaiate Gafanha,
autor do risco e do corte,
deu-lhe rigeza tamanha
que tarde verá a morte;

Estaria como novo,
se não surgisse a desgraça,
o descuido, que reprovo,
de defendê-lo da traça;

Acalenta tronco e pernas,
é completo agasalho;
tem o ar das coisas eternas,
no inverno de ele me valho;

Protege cabeça e rosto,
a ser cantado tem jus,
a ser em relevo posto,
seu altaneiro capuz.

Que boa fazenda aquela,
já se não vê no mercado!
Não entrava a chuva nela,
nem o vento mais danado!

Ficou por onze mil réis,
nos tempos que já lá vão,
em que eram outras as leis,
o meu valente gabão.

«Precisa o senhor Roberto»
disse o Diretor, com tino,
para meu Pai, e deu certo,
«de abrigar-se num varino».

Ele deu esta sentença
justa e mui sensatamente,
porque de séria doença
me achava convalescente.

Agora está interdito
vir à rua em tal farpela,
pois o automóvel maldito
quer pressa, tudo atropela.

Mas em casa, no sossego
que não tem tal desatino,
me agasalho, me aconchego,
me envolvo no meu varino.

Gabão, varino de Aveiro,
é trajo tradicional
e português verdadeiro,
mas do antigo Portugal.

Meu gabão dos tempos idos,
dos tempos de colegial,
estamos envelhecidos,
fora da moda, afinal!

Porto, Portugal, Maio de 1963

O MEU PAÍS

Quero país
Flor-de-lis;
Democracia
De fidalguia;
Povo lavado
E penteado;
Cidadão
Cristão,
Homem irmão,
Filho de Deus,
Anjo dos céus;
Habitação,
Um coração,
Conchego e amor;
Embalo e flor;
Piso
Liso;
Rua de luz,
Que conduz,
Aos largos da Saúde,
Da Força e da Vitude,
Cidade,
Mocidade;
Grandeza
De Beleza
E movimento
Sem tormento;
União,
Ação
Coordenação;
A apologia
Da harmonia;
Tudo a girar
No seu lugar.

Vieira do Minho, 1937

POLÍTICOS

O ladino do polvo toma a cor
Da pedra, areia, ou lodo, em que se deita,
A fim de conseguir, assim, melhor
Caçar a presa que escondido espreita.

Quando ela passa, longe da suspeita,
Esperto, como um tímido traidor,
Na água negro líquido ele deita
Que cega a presa e esconde o caçador.

Políticos também em Portugal
Há que MUDAM DE COR perfeitamente,
Sem quase meio mundo dar por tal.

Mas, quem tem uma vista regular
Está a vê-los por aí continuamente
De olhar attento à CATA DE UM LUGAR.

Coimbra, 20-02-1908