Coleção pessoal de ClareteBomfim

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ANNE FRANK E O COVID 19

Estou confinada na minha casa há apenas dois dias e já entendo um pouco do que sentia Anne Frank em seu esconderijo na Holanda. Em 1942 teve que se esconder dos nazistas, juntamente com sua família e mais quatro amigos, em um anexo da fábrica onde seu pai, Otto Frank, trabalhava. Mesmo tendo nascido na Alemanha, sua família era vista como inimiga dos nazistas, pelo simples fato de serem judeus.
Ontem me peguei pensando em Anne quando iniciei meu diário da quarentena. Não posso comparar meus sentimentos ao dela por várias razões - ela tinha 13 anos, cheia de sonhos a realizar e muitas aventuras a viver - eu tenho 56 anos, já realizei muitos sonhos, constitui família e vivi muitas aventuras (apesar de ter alguns sonhos que ainda gostaria de realizar...). Anne não tinha TV, celular, nem internet que a conectasse com o mundo exterior. As noticias chegavam por intermédio de quatro funcionários da fábrica, que eram da confiança de seu pai. Uma delas era Miep Gies que também trazia comida.
Eu tenho à minha disposição todos os meios de comunicação que a tecnologia pode dispor. Além disso minha despensa está abastecida e posso ir ao mercado quando quiser, tomando os devidos cuidados conforme as orientações que recebemos o tempo todo pelos noticiários. Não estou confinada em um pequeno espaço, precário e sem conforto como Anne. Ao contrário, tenho o privilégio de morar em uma casa confortável, com um belo e amplo quintal, onde posso circular à vontade sem me preocupar em fazer silêncio absoluto para não chamar a atenção das autoridades.
Então, o que me fez lembrar do cativeiro onde a jovem Anne viveu por 03 anos? Acho que foi o sentimento da privação compulsória da liberdade, da impotência diante de uma realidade que impacta nossos relacionamentos e pode nos lançar em uma crise econômica de difícil recuperação. Também o medo que a morte nos encontre, por um tiro, uma bomba ou um vírus.
Só nos resta a fé em Deus. Agora o tempo é nosso aliado e eu rezo todos os dias para que este triste momento de crise tenha curta duração. Que tenhamos um final mais feliz do que Anne e sua família tiveram, juntamente com milhões de pessoas que pereceram no Holocausto. Oremos!

COMUNISMO CAPITALISTA

Em 2008, a General Motors, passando por uma grave crise econômica, decide fechar sua fábrica no estado de Ohio (EUA), deixando mais de dez mil pessoas desempregadas. Grande parte destes trabalhadores não conseguiram retornar ao mercado de trabalho, perdendo todos os seus bens.
Em uma queda vertiginosa rumo à pobreza extrema, a esperança em retornar à classe média veio com o anúncio da compra do espaço da antiga fábrica, por um grupo chinês, fabricante de vidro para carros - Fuyao.
O documentário "AMERICAN FACTORY" traz a história desta integração sino-americana com todos os benefícios e dificuldades, principalmente no cenário de exploração dos funcionários pela empresa "Fuyao Glass America". Resultado da parceria formada pela NETFLIX e a produtora Higher Ground, do ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama e sua esposa Michelle, com direção de Steven Bognar e Julia Reichert, esta produção recebeu o Oscar 2020 de melhor documentário.
Um dos temas apresentados no enredo é o modelo de cooperação onde o trabalhador chinês atua com um norte-americano, integrando as duas culturas. em todos os níveis de função e de comando. O presidente Cao, supervisiona diretamente os trabalhos de instalação e a produção nos primeiros meses de funcionamento. Cada americano é capacitado e supervisionado por um chinês todo o tempo. A legislação americana de direito trabalhista é criticada pelo empresário, mas respeitada, apesar do salário oferecido ser abaixo da média do mercado americano.
Esta integração vai além dos muros da fábrica. O documentário apresenta cenas onde os chineses pescam com os moradores americanos, participam de festas tradicionais, apresentando a cultura americana aos chineses, desenvolvendo laços de amizade. Eles se surpreendem com a liberdade de expressão dos americanos, ao descobrir que ali é permitido fazer piadas sobre o presidente, sem nada acontecer.
Cao tenta constantemente impor a cultura econômica chinesa, fazendo exigências incomuns aos executivos americanos, tanto no aumento da exploração dos espaços reservados aos funcionários, reduzindo o refeitório para aumentar a linha de produção, quanto na proibição da sindicalização dos funcionários, ameaçando com demissões e até mesmo o fechamento da fábrica, caso isto acontecesse.
Na cultura chinesa os funcionários trabalham incansavelmente, em jornada de doze horas e uma folga mensal. Passam longos períodos de tempo longe da família, até anos em alguns casos. Comem pouco, o salário é baixo - ganha mais quem trabalha mais. Não conversam durante o trabalho, que, geralmente é repetitivo e monótono na linha de produção. E seu maior objetivo é o sucesso da indústria, pois ela é a razão de estarem empregados e garantir o sustento da família. Eles crescem com esta mentalidade e se surpreendem com jeito americano "preguiçoso" de trabalhar e com a postura destes trabalhadores, que não conseguem servir seus patrões sem nenhum questionamento.
O enredo é desenvolvido pela narrativa de forma linear pelos diretores Bognar e Reichert. Inicia-se apresentando o desalento dos desempregados com o encerramento das atividades da GM em Ohio, a esperança do retorno à classe média com a notícia da instalação da fábrica Fuyao, a integração das duas culturas no trabalho e na vida social, a imposição do modelo econômico chinês com exploração do trabalho e pressão contra a sindicalização, o desânimo e a decepção dos trabalhadores, que são obrigados à se submeterem ao atual modelo de trabalho oferecido pela fábrica, pois o cenário econômico é de crise e falta de emprego. No final é apresentada uma ameaça ainda maior - o início da substituição de trabalhadores por máquinas mais produtivas.
O sucesso deste documentário está na reflexão sobre o momento econômico atual, com companhias chinesas conquistando diversos novos mercados e substituindo marcas antes consolidadas, geralmente americanas. Mas isto não acontece só com os chineses. A narrativa tem a possibilidade de expor ao público as dificuldades enfrentadas por trabalhadores de todo o mundo.
Respeitando as peculiaridades culturais de cada nação, com maior ou menor intensidade, funcionários de todos os níveis, precisam do emprego para sobreviver e manter a família e por isso são obrigados a se calar diante da exploração empresarial e retirada de seus direitos básicos. Quem trabalha, ou já trabalhou em linha de produção de uma empresa de grande ou médio porte, vai se identificar vendo este documentário.
São duas visões diferentes sobre o capitalismo, ambas voltadas para o consumo de milhões, tendo no modelo americano a apresentação de um processo produtivo mais humano. Já o modelo chinês visa a produção e só se interessa em extrair o máximo de seus trabalhadores, sem se importar com acidentes, condições de trabalho ou sua opinião.
Trate bem o seu chefe, porque o próximo pode ser pior! As máquinas vem aí...

ENTRE DEUSES E DEMÔNIOS

by Clarete Bomfim

Proteu era uma divindade marinha, pastor dos rebanhos de seu pai, Poseidon. era visto como profeta por ter o dom da premonição, mas não gostava de comentar os acontecimentos futuros. Sempre que um humano se aproximava ele fugia, assumindo a forma de criaturas marinhas monstruosas e assustadoras.
Reza a lenda que, um dia, sorrateiramente, Proteu acende uma tocha no fogo do sol do Olimpo e o devolve à humanidade, contrariando a vontade de Zeus. Sua vingança veio, primeiramente em forma feminina. Os deuses criaram a primeira mulher - Pandora - que foi enviada à terra, levando uma caixa onde estavam guardadas todas as desgraças que assolariam a humanidade. Não satisfeito, ordenou que Proteu fosse acorrentado no alto do monte Cáucaso, na fria e ventosa região da Cítia. Todos os dias, ao nascer do sol, uma águia viria comer seu fígado, lentamente, bicada por bicada, que voltava a se regenerar durante a noite.
Como divindade, Proteu era imortal, por isso o castigo seguiria por toda a eternidade. Mas seu castigo terminou anos depois, quando foi salvo por Hércules, que, após realizar os doze trabalhos propostos por Zeus, matou a águia e o libertou das correntes, substituindo-o no castigo por Quiron, o centauro.
E como a lenda de Proteu, da mitologia grega, tem relação com o filme "O Farol" do diretor Robert Eggers?
Nota-se o entrelaçamento entre a realidade e a mitologia. Muitas são as referências emprestadas ao filme - Winslow vivido por Robert Pattinson, almejando descobrir os segredos que habitam o último andar da construção, bem como as tarefas exaustivas realizadas por ele (os doze trabalhos de Hércules). Thomas Wake (Willem Dafoe) tendo vivido naquela terrível e solitária ilha por tantos anos, funciona como uma extensão da deidade marinha intitulada Proteu. Sem falar nas visões ilusórias de Winslow (monstros marinhos e sereias) e as gaivotas (o sentido de sua presença na ilha e sua atuação no final do filme).
"O Farol" traz a mesma atmosfera de suspense angustiante e complexo de outro sucesso do diretor - "A Bruxa" (2015). é um filme lento que traz muito mais do que mostra. A forma visual incomum incomoda o público, com tela quadrada "apertando" a cena, com referência ao lugar onde estão, que é muito apertado. Com uma fotografia escura, em preto e branco, remete o público à um mergulho completo na insanidade mental do personagem e com imersão nos momentos mais íntimos.
O terror apresentado na narrativa é marcado por planos longos, ambientação úmida e cenas com alucinações cercadas de mistérios. Foge do padrão do uso de uma trilha sonora tradicional em volume crescente culminando num grande susto.
O tempo realmente não é importante naquele lugar. A interpretação de intensa entrega de Pattinson e Dafoe, faz o público experimentar sensações de instabilidade emocional e desgaste, visto que eles não se entendem - ora se amam, ora se odeiam. Difícil entender a mentalidade deste dois guardiões de um farol. Afinal, que tipo de pessoa aceitaria este tipo de trabalho?
O autor fez uma longa pesquisa sobre a vida dos faroleiros, utilizando estórias reais na narrativa, vividas por estes homens, em situações de extremo estresse gerado pelo isolamento. Utilizou-se também de referências cinematográficas como o machado no filme "O Iluminado" (1980) de Stanley Kubrick, as gaivotas que lembram o filme de Alfred Hitchcock - "Os Pássaros" (1963). A composição do personagem Thomas Wake foi baseada no filme de 1941 "O Lobo do Mar", uma adaptação do livro do mesmo nome, escrito por Jack London, dirigido por Michael Curtiz. Não há espaço para a improvisação, pois foi utilizada a linguagem de marinheiro da época, não permitindo a infidelidade ao roteiro.
A produção demorou quatro anos para ser finalizada. A locação aconteceu em uma ilha isolada, com gaivotas locais, sendo que três delas foram adestradas para atuação em takes específicos. Foram utilizadas câmeras antigas (1905) para que as imagens geradas proporcionassem ao espectador a imersão na época da narrativa e se sentisse no lugar mais desconfortável do planeta. A música intrigante e a fotografia densa, usando perfeitamente as sombras, a câmera claustrofóbica e a manipulação da narrativa com aumento da tensão e forma crescente, proporcionam uma experiência sensorial única e inexplicável. Já que o público não consegue distinguir: alucinação - sonho - realidade. Ele sai do cinema com um olhar próprio para cada acontecimento ali representado.
É um filme de muitas camadas e de terror psicológico, onde "ela" (o farol) é o terceiro personagem desta história de fundir o cérebro, em uma dualidade de sentimentos sobre ele - amá-lo pela temática e produção audaciosa, primorosa e original - ou odiá-la pelo mal-estar que nos proporciona. Quer um conselho? Assista de mente aberta e com o coração em paz. Se estiver vivendo algum problema emocional, espere mais um tempo...