Coleção pessoal de Aryanesilva
Sinto saudades das conversas no portão até altas horas, onde uma “dobrinha” na barriga não era motivo de chacota. Falta-me a valorização do caráter, dos valores, da vida compartilhada, dos sorrisos distribuídos ao longo da vida, de braços dados com a essência que cada um carrega, mas que para alguns evaporam. Sinto a ausência de pessoas que são e não precisam aparentar para serem. Pessoas de carne e osso e não pele e osso.
Eu conheci várias partes de você. Uma principiante, fresca, apaixonada até o último fio de cabelo e entregue. Um pedaço que ligava às três da manhã para perguntar se eu estava bem e não se importava se minha voz estava rouca, embebida de sono. Uma partícula de presença pintada à mão dentro de uma distância devastadora, que não media os metros da saudade (sabia que eram incalculáveis). Um bocado de preocupação nas recomendações diárias, no “bom dia” diário que não podia faltar e no “te amo” esticado, que era nossa ponte imaginária.
Dar adeus é mole, seja ele com um caixão, flores e uma novena, ou com malas no chão esperando o próximo trem para ir para algum lugar. O mais difícil é lidar com o que fica, com o que não foi dito, o que foi comemorado, tudo que foi acalentado e todas aquelas fotografias mentais que chamamos de memórias. Complicado mesmo é carregar um coração cheio de saudade, uma mente povoada de lembranças. Tudo que remonta o que foi verdade, seja uma música, uma comida, um lugar. Com um “tchau” dado às pressas, tudo se perde, ficamos apenas com o espaço liberado para novos hóspedes se alojarem. Isso é, se permitirmos isso algum dia.
Já tivemos a criatividade dos enredos entrecortados com nossa respiração ofegante. Paramos por muitas vezes para recuperar o fôlego e criar mais alguns versos. A melodia era o nosso natural, nossa alegria diária, a sonoridade de nossos sorrisos livres e escandalosos, malfeitos, impróprios e eternos. Eu não sabia sambar quando te conheci, mas você me ensinou passo a passo, numa desenvoltura corporal que ninguém tinha. Não precisávamos de alegorias, adereços, até mesmo porque o melhor espetáculo era feito em silêncio. E no escuro. Deixávamos a agremiação chegar e causar como ninguém, embalada pelas batidas descompassadas e apressadas de nossos corações. Colocávamos nossa escola na avenida com a habilidade dos bambas, daqueles que não negam quem são e que sabem a que vieram. Éramos desses: sem pudor, sem medo, sem rima, um contexto desconexo que no final dava certo.
Se for para escrever, que seja uma carta de euforia, daquelas que não há hora, lugar certo e papel apropriado. Quero uma daquelas bem reais, onde você é início, meio e fim, sem abreviações e com sentido. Que registre as nossas alegrias mais eméritas, loucas e intensas. Onde tenha a sua mão grudada na minha, seu perfume pela casa depois do banho e bagunça decorando meu quarto. Que haja muito de você e pouco de mim, mas o suficiente para nós dois. O encaixe perfeito em suas expectativas e o humor inteligente de nossas conquistas. A união de dois corpos perdidos no espaço, mas encontrados no olhar que não paira, flutua. Que seja breve, doce e pesada nos termos ilegais da insanidade. Nossa doce loucura cotidiana.
Gosto da paz que você traz pra mim com a verdade de que tudo dará certo. Preciso disso. Você é o horizonte que paro para olhar sempre quando necessito de uma pausa breve. Assim como o mar traz as melhores respostas, seu abraço é a própria certeza. Nele eu deposito tudo o que há em mim e que precisa ser acalentado. Admiro o seu jeito de varrer a minha tristeza para longe de mim e pôr um sorriso no meu rosto. Você é muito bom em colocar coisas, como algumas pitadas generosas de paciência e lucidez. Cobertor e filme antigo só se tornam bons quando estamos juntos.