Clarice Lispector Liberdade
Eu me permito mais liberdade e mais experiências.
E aceito o acaso.
Anseio pelo que ainda não experimentei.
Maior espaço psíquico.
Estou felizmente mais doida.
Está fazendo um dia de sol. A praia estava cheia de vento bom e de uma liberdade. E eu estava só. Sem precisar de ninguém. É difícil porque preciso repartir contigo o que sinto. O mar calmo. Mas à espreita e em suspeita. Como se tal calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto improvisado e fatal me fascina. Já entrei contigo em comunicação tão grande que deixei de existir sendo. Você tornou-se um eu. é tão difícil falar e dizer coisas que não podem ser ditas. É tão silencioso. Como traduzir o silêncio do encontro real entre nós dois? Dificílimo contar: olhei para você fixamente por uns instantes. Tais momentos são meus segredos. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isto de estado agudo de felicidade.
Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.
Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome. – Sou pois um brinquedo a quem dão corda e que terminada esta não encontrará vida própria, mais profunda. Procurar tranquilamente admitir que talvez só a encontre se for buscá-la nas fontes pequenas. Ou senão morrerei de sede. Talvez não tenha sido feita para as águas puras e largas, mas para as pequenas e de fácil acesso. E talvez meu desejo de outra fonte, essa ânsia que me dá ao rosto um ar de quem caça para se alimentar, talvez essa ânsia seja uma ideia – e nada mais.
Não sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Mas enquanto eu estava presa, estava contente? ou havia, e havia, aquela coisa sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira?
Quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama.
Eu tenho uma aparente liberdade mas estou presa dentro de mim.
Quero aceitar minha liberdade sem pensar o que muitos acham: que existir é coisa de doido, caso de loucura. Porque parece. Existir não é lógico.
Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No entanto não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.
Mente-se e cai-se na verdade. Mesmo na liberdade, quando escolhia alegre novas veredas, reconhecia-as depois. Ser livre era seguir-se afinal, e eis de novo o caminho traçado. Ela só veria o que já possuía dentro de si. Perdido pois o gosto de imaginar.
O mistério do destino humano é que somos fatais, mas temos a liberdade de cumprir ou não o nosso fatal: de nós depende realizarmos o nosso destino fatal.
Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.
Ir para o sono se parece tanto com o modo como agora tenho de ir para a minha liberdade. Entregar-me ao que não entendo será pôr-me à beira do nada.
Estremeço de prazer por entre a novidade de usar palavras que formam intenso matagal. Luto por conquistar mais profundamente a minha liberdade de sensações e pensamentos, sem nenhum sentido utilitário: sou sozinha, eu e minha liberdade.
É tamanha a liberdade que pode escandalizar um primitivo, mas sei que não te escandalizas com a plenitude que consigo e que é sem fronteiras perceptíveis.
Esta minha capacidade de viver o que é redondo e amplo - cerco-me por plantas carnívoras e animais legendários, tudo banhado pela tosca e esquerda luz de um sexo mítico.
Vou adiante de modo intuitivo e sem procurar uma ideia: sou orgânica. E não me indago sobre os meus motivos. Mergulho na quase dor de uma intensa alegria – e para me enfeitar nascem entre os meus cabelos folhas e ramagens.
Fico com medo de me afastar da Ordem e cair no abismo povoado de gritos: o Inferno da liberdade. Mas continuarei.
Agora sei: sou só. Eu e minha liberdade que não sei usar. Grande responsabilidade da solidão. Quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama.
No fundo a gente não está querendo alterar as coisas, está querendo desabrochar de um modo ou de outro, né?