Citações de Carlos Drumond de Andrade

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A palavra Minas

Minas não é palavra montanhosa
É palavra abissal
Minas é dentro e fundo
As montanhas escondem o que é Minas.
No alto mais celeste, subterrânea,
é galeria vertical varando o ferro
para chegar ninguém sabe onde.
Ninguém sabe Minas. A pedra
o buriti
a carranca
o nevoeiro
o raio
selam a verdade primeira,
sepultada em eras geológicas de sonho.
Só mineiros sabem.
E não dizem nem a si mesmos o
irrevelável segredo
chamado Minas.

Temos o direito constitucional...
...de escarnecer,...
...de ridicularizar,...
...de esclarecer,...
...de cultivar inimigos...
...e influenciar pessoas.

Irmão, Irmãos
Cada irmão é diferente.
Sozinho acoplado a outros sozinhos.
A linguagem sobe escadas, do mais moço,
ao mais velho e seu castelo de importância.
A linguagem desce escadas, do mais velho
ao mísero caçula.

São seis ou são seiscentas
distâncias que se cruzam, se dilatam
no gesto, no calar, no pensamento?
Que léguas de um a outro irmão.
Entretanto, o campo aberto,
os mesmos copos,

o mesmo vinhático das camas iguais.
A casa é a mesma. Igual,
vista por olhos diferentes?

São estranhos próximos, atentos
à área de domínio, indevassáveis.
Guardar o seu segredo, sua alma,
seus objectos de toalete. Ninguém ouse
indevida cópia de outra vida.

Ser irmão é ser o quê? Uma presença
a decifrar mais tarde, com saudade?
Com saudade de quê? De uma pueril
vontade de ser irmão futuro, antigo e sempre?

Carlos Drummond de Andrade
Boitempo I. Rio de Janeiro: Record, 2023.

A metafísica do corpo se entremostra nas imagens. A alma do corpo modula em cada fragmento sua música de esferas e de essências além da simples carne e simples unhas. Em cada silêncio do corpo identifica-se a linha do sentido universal que à forma breve e transitiva imprime a solene marca dos deuses e do sonho.

Quero romper com meu corpo, quero enfrentá-lo, acusá-lo, por abolir minha essência, mas ele se quer me escuta e vai pelo rumo oposto. Já premido por seu pulso de inquebrantável rigor, não sou mais quem dantes era: com volúpia dirigida, saio a bailar com meu corpo.

Dizem que no Vinho está a Verdade.... Depende do Vinho !...

Eu bem me entendo.
Não sou alegre. Sou até muito triste.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole, preguiçosa.

Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
[...]
Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices a maior é suspirar pela Europa.
[...]
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,
lê o seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fim dá certo.

Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta.

A noite dissolve os homens

A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tão pouco os rumores
que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
sem esperança… Os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo…
O mundo não tem remédio…
Os suicidas tinham razão.

Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio…
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.

Até a cor do arrependimento desbota com o tempo.

Carlos Drummond de Andrade
O avesso das coisas: aforismos. Rio de Janeiro: Record, 1990.

Há uma hora propícia ao arrependimento: a da morte, quando já não é possível nos arrependermos dele.

Carlos Drummond de Andrade
O avesso das coisas: aforismos. Rio de Janeiro: Record, 1990.

A obra de arte é o resultado feliz de uma angústia contínua.

Carlos Drummond de Andrade
O avesso das coisas: aforismos. Rio de Janeiro: Record, 1990.

O artista plástico violenta a realidade para melhor ou para pior; é um terrorista bem ou malsucedido.

Carlos Drummond de Andrade
O avesso das coisas: aforismos. Rio de Janeiro: Record, 1990.

O ano passado

O ano passado não passou,
continua incessantemente.
Em vão marco novos encontros.
Todos são encontros passados.

As ruas, sempre do ano passado,
e as pessoas, também as mesmas,
com iguais gestos e falas.
O céu tem exatamente
sabidos tons de amanhecer,
de sol pleno, de descambar
como no repetidíssimo ano passado.

Embora sepultos, os mortos do ano passado
sepultam-se todos os dias.
Escuto os medos, conto as libélulas,
mastigo o pão do ano passado.

E será sempre assim daqui por diante.
Não consigo evacuar
o ano passado.

Carlos Drummond de Andrade
Poesia Completa, Rio de Janeiro: Nova. Aguilar, 2002.

⁠Órion

A primeira namorada, tão alta
Que o beijo não alcançava,
O pescoço não alcançava,
Nem mesmo a voz a alcançava.
Eram quilômetros de silêncio.
Luzia na janela do sobrado.

O dia dos Namorados
para mim é todo dia.
Não tenho dias marcados
para te amar noite e dia.

O dia 12 de junho,
como qualquer outro, diz
(e disso dou testemunho)
que contigo sou feliz.

Especulações em torno da palavra homem

Mas que coisa é homem,
que há sob o nome:
uma geografia?

um ser metafísico?
uma fábula sem
signo que a desmonte?

Como pode o homem
sentir-se a si mesmo,
quando o mundo some?

Como vai o homem
junto de outro homem,
sem perder o nome?

E não perde o nome
e o sal que ele come
nada lhe acrescenta

nem lhe subtrai
da doação do pai?
Como se faz um homem?

Apenas deitar,
copular, à espera
de que do abdômen

brote a flor do homem?
Como se fazer
a si mesmo, antes

de fazer o homem?
Fabricar o pai
e o pai e outro pai

e um pai mais remoto
que o primeiro homem?
Quanto vale o homem?

Menos, mais que o peso?
Hoje mais que ontem?
Vale menos, velho?

Vale menos, morto?
Menos um que outro,
se o valor do homem

é medida de homem?
Como morre o homem,
como começa a?

Sua morte é fome
que a si mesma come?
Morre a cada passo?

Quando dorme, morre?
Quando morre, morre?
A morte do homem

consemelha a goma
que ele masca, ponche
que ele sorve, sono

que ele brinca, incerto
de estar perto, longe?
Morre, sonha o homem?

Por que morre o homem?
Campeia outra forma
de existir sem vida?

Fareja outra vida
não já repetida,
em doido horizonte?

Indaga outro homem?
Por que morte e homem
andam de mãos dadas

e são tão engraçadas
as horas do homem?
Mas que coisa é homem?

Tem medo de morte,
mata-se, sem medo?
Ou medo é que o mata

com punhal de prata,
laço de gravata,
pulo sobre a ponte?

Por que vive o homem?
Quem o força a isso,
prisioneiro insonte?

Como vive o homem,
se é certo que vive?
Que oculta na fronte?

E por que não conta
seu todo segredo
mesmo em tom esconso?

Por que mente o homem?
mente mente mente
desesperadamente?

Por que não se cala,
se a mentira fala,
em tudo que sente?

Por que chora o homem?
Que choro compensa
o mal de ser homem?

Mas que dor é homem?
Homem como pode
descobrir que dói?

Há alma no homem?
E quem pôs na alma
algo que a destrói?

Como sabe o homem
o que é sua alma
e o que é alma anônima?

Para que serve o homem?
para estrumar flores,
para tecer contos?

Para servir o homem?
Para criar Deus?
Sabe Deus do homem?

E sabe o demônio?
Como quer o homem
ser destino, fonte?

Que milagre é o homem?
Que sonho, que sombra?
Mas existe o homem?

INOCENTES DO LEBLON

Os inocentes do Leblon não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe emigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.

Inserida por tomazdeaquino

Às vezes sou tentado a me admirar, e isto me causa a maior admiração.

Carlos Drummond de Andrade
O avesso das coisas: aforismos. Rio de Janeiro: Record, 1990.
Inserida por AdagioseAforismos

Não é obrigatório ter motivo para estar alegre; o melhor é dispensá-lo.

Carlos Drummond de Andrade
O avesso das coisas: aforismos. Rio de Janeiro: Record, 1990.
Inserida por AdagioseAforismos

Pouco importa o objeto da ambição; ela vale por si, independente do alvo.
Sempre necessitamos ambicionar alguma coisa que, alcançada, não nos faz desambiciosos.
Todas as ambições se parecem, mesmo que se contradigam; só a desambição não tem similar.

Carlos Drummond de Andrade
O avesso das coisas: aforismos. Rio de Janeiro: Record, 1990.
Inserida por AdagioseAforismos