Poemas de Cecília Meireles
Acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante.
Os livros que têm resistido ao tempo são os que possuem uma essência de verdade, capaz de satisfazer a inquietação humana por mais que os séculos passem.
Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.
"Serás possível um peito, comportar mais saudade que seu próprio tamanho? pois eu lhe juro, logo já, meu coração arrebenta minhas costelas e vai correndo ao encontro do teu de tanto não suportar mais você tão longe. tenho medo que meus braços durante a noite se rebelem, destaquem-se de mim e saiam correndo ao enlaço do teu pescoço e minha boca se recuse a fazer qualquer movimento que não seja atado à tua. ando de um lado pro outro o dia inteiro, só pra ver se meus pés aquietam e deixam de tentar correr na tua direção. Dear, a verdade é que sem você aqui comigo, meu corpo inteiro tenta dar jeito de te alcançar. é mais que consciente minha vontade de você. é involuntário como cada batida do meu coração - que sussurra seu nome, seu nome, seu nome, tum-tum, seu nome…"
O instante existe (...) Não sou alegre nem sou triste: (...) Não sito gozo nem tormento. Atravesso noite e dias no vento. Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço. não sei, não sei. Não sei se fico ou passo.
Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, mas foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde foi nessa área que os livros se abriram e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano.
"Hoje eu queria ler uns livros que não falam de gente, mas só de bichos, de plantas, de pedras: um livro que me levasse por essas solidões da Natureza, sem vozes humanas, sem discursos, boatos, mentiras, calúnias, falsidades, elogios, celebrações...hoje eu queria apenas ver uma flor abrir-se, desmanchar-se (...)."
Máquina Breve
O pequeno vaga-lume
com sua verde lanterna,
que passava pela sombra
inquietando a flor e a treva
- meteoro da noite, humilde,
dos horizontes da relva;
o pequeno vaga-lume,
queimada a sua lanterna,
jaz carbonizado e triste
e qualquer brisa o carrega:
mortalha de exíguas franjas
que foi seu corpo de festa.
Parecia uma esmeralda
e é um ponto negro na pedra.
Foi luz alada, pequena
estrela em rápida seta.
Quebrou-se a máquina breve
na precipitada queda.
E o maior sábio do mundo
sabe que não a conserta.
Se me contemplo,
tantas me vejo,
que não entendo
quem sou, no tempo
do pensamento.
Vou desprendendo
elos que tenho,
alças, enredos...
Formas, desenho
que tive, e esqueço!
Falas, desejo
e movimento
— a que tremendo,
vago segredo
ides, sem medo?!
Sombras conheço:
não lhes ordeno.
Como precedo
meu sonho inteiro,
e após me perco,
sem mais governo?!
Nem me lamento
nem esmoreço:
no meu silêncio
há esforço e gênio
e suave exemplo
de mais silêncio.
Não permaneço.
Cada momento
é meu e alheio.
Meu sangue deixo,
breve e surpreso,
em cada veio
semeado e isento.
Meu campo, afeito
à mão do vento,
é alto e sereno:
Amor. Desprezo.
Assim compreendo
o meu perfeito
acabamento.
Múltipla, venço
este tormento
do mundo eterno
que em mim carrego:
e, una, contemplo
o jogo inquieto
em que padeço.
E recupero
o meu alento
e assim vou sendo.
Ah, como dentro
de um prisioneiro
há espaço e jeito
para esse apego
a um deus supremo,
e o acerbo intento
do seu concerto
com a morte, o erro...
( voltas do tempo
— sabido e aceito —
do seu desterro...)
Contemplação
Não acuso. Nem perdôo.
Nada sei. De nada.
Contemplo.
Quando os homens apareceram
eu não estava presente.
Eu não estava presente,
quando a terra se desprendeu do sol.
Eu não estava presente,
quando o sol apareceu no céu.
E antes de haver o céu,
EU NÃO ESTAVA PRESENTE.
Como hei de acusar ou perdoar?
Nada sei.
Contemplo.
Recado aos Amigos Distantes
Meus companheiros amados,
não vos espero nem chamo:
porque vou para outros lados.
Mas é certo que vos amo.
Nem sempre os que estão mais perto
fazem melhor companhia.
Mesmo com sol encoberto,
todos sabem quando é dia.
Pelo vosso campo imenso,
vou cortando meus atalhos.
Por vosso amor é que penso
e me dou tantos trabalhos.
Não condeneis, por enquanto,
minha rebelde maneira.
Para libertar-me tanto,
fico vossa prisioneira.
Por mais que longe pareça,
ides na minha lembrança,
ides na minha cabeça,
valeis a minha Esperança.
“Eu canto porque o instante existe
E a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
Sou poeta”.
(do livro "Viagem", 1939.)
“Adormece o teu corpo com a música da vida.
Encanta-te.
Esquece-te.
Tem por volúpia a dispersão.
Não queiras ser tu.
Querer ser a alma infinita de tudo.
Troca o teu curto sonho humano
Pelo sonho imortal.
O único.
Vence a miséria de ter medo.
Troca-te pelo Desconhecido.
Não vês, então, que ele é maior?
Não vês que ele não tem fim?
Não vês que ele és tu mesmo?
Tu que andas esquecido de ti”?
"E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim..."
" Meus pés vão pisando a terra
Que é a imagem da minha vida:
Tão vazia, mas tão bela
Tão certa , mas tão perdida!"
Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre, — e resiste,
Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente...
Cabecinha boa de menino mudo
que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.
Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.
Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.
O mosquito escreve
O mosquito pernilongo
trança as pernas, faz um M,
depois, treme, treme, treme,
faz um O bastante oblongo,
faz um S.
O mosquito sobe e desce.
Com artes que ninguém vê,
faz um Q,
faz um U, e faz um I.
Este mosquito
esquisito
cruza as patas, faz um T.
E aí,
se arredonda e faz outro O,
mais bonito.
Oh!
Já não é analfabeto,
esse inseto,
pois sabe escrever seu nome.
Mas depois vai procurar
alguém que possa picar,
pois escrever cansa,
não é, criança?
E ele está com muita fome.
Música
Noite perdida,
não te lamento:
embarco a vida
no pensamento,
busco a alvorada
do sonho isento,
puro e sem nada,
- rosa encarnada,
intacta, ao vento.
Noite perdida,
noite encontrada,
morta, vivida,
e ressuscitada...
(Asa da lua
quase parada,
mostra-me a sua
sombra escondida,
que continua
a minha vida
num chão profundo!
- raiz prendida
a um outro mundo.)
Rosa encarnada
do sonho isento,
muda alvorada
que o pensamento
deixa confiada
ao tempo lento...
Minha partida,
minha chegada,
é tudo vento...
Ai da alvorada!
Noite perdida,
noite encontrada...
"Vejo o arrepio da morte,
à voz da condenação
Quem ordena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?
Na mesma cova do tempo
cai o castigo e o perdão
Morre a tinta das sentenças
e o sangue dos enforcados...
liras, espadas e cruzes
pura cinza agora são"