Cartas e Prosa de Fernando Pessoa
Política é exercício de poder, poder é o exercício do desprezível. Desprezível é tudo aquilo que não colabora para o enriquecimento do humano, mas para a sua (ainda) maior degradação. Como se fosse possível. Pior é que sempre é. (…) Ah, a grande náusea por esses pequenos poderosos, que ferem e traem e mentem em nome da manutenção de seu ego imensamente medíocre. Porque sem ferir, nem trair, nem mentir tudo cairia por terra num estalar de dedos. Eu faço assim — clack! — e você desmonta. Eu faço assim — clack! — e você desaparece. Mas você não desmonta nem desaparece: você é que manda, essa ilusão de poder te mantém. Só que você não existe, como não existe nem importa esse mundo onde você se julga senhor, O outro lado, o outro papo, o outro nível — esses, meu caro, você nunca vai saber sequer que existem. Essa é a nossa vingança, sem o menor esforço.
Muito mais que com amor ou qualquer outra forma tortuosa da paixão, será surpreso que o olharás agora, porque ele nada sabe de seu poder sobre ti, e neste exato momento poderias escolher entre torná-lo ciente de que dependes dele para que te ilumines ou escureças assim, intensamente, ou quem sabe orgulhoso negar-lhe o conhecimento desse estranho poder, para que não te estraçalhe entre as unhas agora calmamente postas em sossego, cruzadas nas pontas dos dedos sobre os joelhos.[...]
Mesmo consciente de que nasci sozinho do útero de minha mãe, berrando de pavor para o mundo insano, e que embarcarei sozinho num caixão rumo a sei lá o quê, além do pó. O que ou quem cruzo esses dois portos gelados da solidão é vera viagem: véu de maya, ilusão, passatempo. E exigimos o eterno do perecível, loucos.
Mergulho no cheiro que não defino, você me embala dentro dos seus braços, você cobre com a boca meus ouvidos entupidos de buzinas, versos interrompidos, escapamentos abertos, tilintar de telefones, máquinas de escrever, ruídos eletrônicos, britadeiras de concreto, e você me beija e você me aperta e você me leva pra Creta, Mikonos, Rodes, Patmos, Delos, e você me aquieta repetindo que está tudo bem, tudo bem.
Fico tão cansada às vezes, e digo pra mim mesma que está errado, que não é assim, que não é este o tempo, que não é este o lugar, que não é esta a vida. E fumo, e fico horas sem pensar absolutamente nada: então eu não sentia nada, podia fazer as coisas mais audaciosas sem sentir nada, bastava estar atenta como estes gerânios, você acha que um gerânio sente alguma coisa? Quero dizer, um gerânio está sempre tão ocupado em ser um gerânio e deve ter tanta certeza de ser um gerânio que não lhe sobra tempo para nenhuma outra dúvida. Claro, é preciso julgar a si próprio com o máximo de rigidez, mas não sei se você concorda, as coisas por natureza já são tão duras para mim que não me acho no direito de endurecê-las ainda mais.
Tudo que eu andava fazendo e sendo, eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era. Começou a acontecer uma coisa confusa na minha cabeça, essa história de não querer que ele soubesse que eu era eu, encharcado naquela chuva toda que caía, caía, caía e tive vontade de voltar para algum lugar seco e quente, se houvesse, e não lembrava de nenhum, ou parar para sempre ali mesmo naquela esquina cinzenta que eu tentava atravessar sem conseguir.
Hoje eu estava assim: mais lento, mais verdadeiro, mais bonito até. Hoje eu diria qualquer coisa se você telefonasse. Por dentro também eu estava preparado para dizer, um pouco porque eu não agüento mais ficar esperando toda hora você telefonar ou aparecer, e quando você telefona ou aparece com aquelas maçãs eu preciso me cuidar para não assustar você e quando você me pergunta como estou, mordo devagar uma das maçãs que você me traz e cuido meus olhos para não me traírem e não te assustarem e não ficarem querendo entrar demais dentro dos teus olhos, então eu cuido devagar tudo o que digo e todo movimento, porque eu quero que você venha outras vezes (...)
Cuidar dos vivos: Isso significa exatamente cuidar do presente, consertar o que restou, e trabalhar com o que sobrou... É prosseguir e investir no que ainda resta. É valorizar aquilo o que temos perto, e não reclamar pelo o que se foi. É fazer o que pode ser feito. Esse é o momento das decisões corretas, o nosso destino é só uma questão de escolhas. Eu decido o que terei amanhã. É a lei de plantar e colher. A minha semente de hoje, será o meu fruto amanhã.
Mesmo que o telefone não toque nunca mais, mesmo que a porta não abra, mesmo que nunca mais você me traga maçãs e sem as suas maçãs eu me perca no tempo, mesmo que eu me perca. Vou terminar por aqui, só queria pedir uma coisa, acho que não é difícil, é só isso, uma coisa bem simples: quando você voltar outra vez veja se você me traz uma maçã bem verde, a mais verde que você encontrar, uma maçã que leve tanto tempo para apodrecer que quando você voltar outra vez ela ainda nem tenha amadurecido direito.
E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia, talvez eu tivesse febre, tudo ficara muito confuso, idéias misturadas, tremores, água de chuva e lama e conhaque batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, na mesma porta que não abre nunca.
Parei um pouco de escrever para olhar pela janela e principalmente para ver se eu conseguia deter o pensamento. Acho que consegui. Porque quando começo assim não consigo mais parar, e não quero ouvir eles dizendo que não tem remédio, que eu não tenho cura, que você não existe. Depois eu paro e fico olhando a porta por onde você não entra, o telefone por onde você não fala, e então penso que talvez eles tenham razão, que talvez você não venha mais, e com dificuldade consigo até pensar que talvez você não exista mesmo. Mas não é possível, eu sei que não é possível: se estou escrevendo para você é porque você existe.
Eu não podia apenas sorrir quando me lembrasse de você? Mas acontece tipo assim: lembro do seu rosto, do seu abraço, do seu cheiro, do seu olhar, do seu beijo e começo a sorrir, é assim mesmo, automático, como se tivesse uma parte do meu cérebro que me fizesse por um instante a pessoa mais feliz do mundo. Eu sei, é lindo. Mas logo em seguida, quando penso em quão longe você está sinto-me despedaçar por inteira. E dói. Uma dor cujo único remédio é a sua presença. Então sigo assim, penso em você, sorrio, sofro e rezo, peço pra Deus amenizar essa dor.
E se perguntassem o que vem a ser o certo, Gabriela olharia com a cabeça torta como a de um cachorro quando parece não compreender o que se passa. O olhar de repente vidrado de quem tem sede de entender as coisas que acontecem ao redor. Ela não sabia amar, talvez. Então mais um amor havia ido embora, mais um amor havia chegado ao fim. Nessa imensa individualidade onde ninguém podia entristecê-la sempre cresciam espinhos. Espinhos para machucar aqueles que a machucavam, então assim não a tocavam. Não tocava porque o medo da mágoa não deixava que lhe tocassem, ou então havia medo porque não haviam tocado fundo o suficiente para que o medo não existisse. Que triste então estava sendo, mas Gabriela parecia acostumada. Acostumada e fria porque depois de tantas lágrimas, ela finalmente parecia ter secado. A maquiagem borrada em volta dos olhos tinha sido limpa na noite anterior. Quando Antônio e ela se encontraram; ela parecia inteira. Inteira porque não tinha ficado nada dela para trás.
Tenho medo de, dia após dia, cada vez mais não estar no que você vê. E tanto tempo terá passado, depois, que tudo se tornará cotidiano e a minha ausência não terá nenhuma importância. Serei apenas memória, alívio, enquanto agora sou uma planta carnívora exigindo a cada dia uma gota de sangue para manter-se viva. Você rasga devagar o seu pulso com as unhas para que eu possa beber. Mas um dia será demasiado esforço, excessiva dor, e você esquecerá como se esquece um compromisso sem muita importância. Uma fruta mordida apodrecendo em silêncio no quarto.
Será que vai ser sempre assim? Bater a cabeça, achar que algo vai dar certo e depois me surpreendo tanto, que não para de doer, e me pergunto se essa dor vai ser pra sempre, e é aí que lembro que passa, tudo passa, eu sei que passa, então tenta voltar a conseguir comer algo, e conversar com as pessoas sem aquele aperto no meu coração, pois é assim que vivi quando estive amando, com medo, triste, enfim... essa é a dor que um dia prova que eu senti tudo que alguém podia sentir, só que apenas em um coração, Então não sei se aguento, pois é apenas um coração.
Há uma porção de coisas minhas que você não sabe, e que precisaria saber para compreender todas as vezes que fugi de você e voltei. São coisas difíceis de serem contadas, mais difíceis talvez de serem compreendidas. Essas coisas não pedem resposta nem ressonância alguma em você: eu só queria que você soubesse do muito amor e ternura que eu tinha. E tenho. Acho que é bom a gente saber que existe desse jeito em alguém, como você existe em mim.
E de novo então me vens e me chegas e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a boca para libertar novas histórias e outra vez me completo assim, sem urgências, e me concentro inteiro nas coisas que me contas, e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com lenta delicadeza deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, que me queres assim porque é assim que és e unicamente assim é que me queres e me utilizas todos os dias, e nos usamos honestamente assim, eu digerindo faminto o que o teu corpo rejeita, bebendo teu mágico veneno porco que me ilumina e anoitece a cada dia, e passo a passo afundo nesse charco que não sei se é o grande conhecimento de nós ou o imenso engano de ti e de mim, nos afastamos depois cautelosos ao entardecer, e na solidão de cada um, sei que tecemos lentos nossa próxima mentira, tão bem urdida que na manhã seguinte será como verdade pura e sorriremos amenos...
Tudo isso me perturbava porque eu pensara até então que, de certa forma, toda minha evolução conduzira lentamente a uma espécie de não-precisar-de-ninguém. Até então aceitara todas as ausências e dizia muitas vezes para os outros que me sentia um pouco como um álbum de retratos. Carregava centenas de fotografias amarelecidas em páginas que folheava detidamente durante a insônia e dentro dos ônibus olhando pelas janelas e nos elevadores de edifícios altos e em todos os lugares onde de repente ficava sozinho comigo mesmo. Virava as páginas lentamente, há muito tempo antes, e não me surpreendia nem me atemorizava pensar que muito tempo depois estaria da mesma forma de mãos dadas com um outro eu amortecido — da mesma forma — revendo antigas fotografias. Mas o que me doía, agora, era um passado próximo.
Tem dias em que tudo se encaixa, como no momento das peças finais dos quebra-cabeças, e tem aqueles em que tudo se desencaixa numa aflição tonta de não haver sentido nem paz, amor, futuro ou coisa alguma. Tem dias que nenhum beijo mata a fome enorme de outra coisa que seria mais (e sempre menos) que um beijo. Mas tem aqueles outros, quando um vento súbito e simples entrando pela janela aberta do carro para bater nos teus cabelos parece melhor que o mais demorado e sincero dos beijos. Precisamos dos beijos, precisamos dos ventos. Tem dias de abençoar, dias de amaldiçoar. E cada um é tantos dentro do um só que vê e adjetiva o de fora que escapa, tão completamente só no seu jeito intransferível de ver.
(…) todos os relógios estão parados, não sei se é ontem, se hoje ou amanhã, se é sempre, se nunca mais, estou solta aqui, completamente só, não há relógios e o tempo avança liberto, sem fronteiras nem limitações, uma bola de arame farpado, o sentimento vai se adensando em mim, transborda dos olhos, das mãos,( …) o tempo, o outono, a tarde, o mundo, a esfera, a espera em que estou para sempre presa.