Carta para uma Pessoa Especial
O Senhor -
Certo dia,
enquanto eu estava no sofá
de casa,
com aquela velha angústia
das minhas manhãs,
vi pelo portão um senhor parado
na rua em frente.
Percebi que estava perdido,
pelos movimentos repetitivos
da cabeça — que ficava de um lado
para o outro, à procura de algo.
Logo
notei que era um senhor
conhecido,
inclusive por
mim,
que já o vira outras
tantas vezes
por aí,
e, assim como a maioria,
eu sabia que se tratava de
um pobre dependente
de álcool (ignorado como
tantos ignorados),
precisando de ajuda desde
sempre na vida.
Então
eu desci e fui até ele.
— O que deseja? — perguntei-lhe.
— Ir para minha casa. — respondeu-me.
— Onde o senhor mora? — questionei-lhe, mais uma vez.
E após ele dizer o nome do bairro,
eu o instrui para que,
dessa vez,
pudesse pegar o caminho
correto até sua casa.
Chamei-lhe e disse:
Olha,
o senhor vai direto,
e na primeira esquina
vira à esquerda até
chegar à avenida
principal — apontando-lhe
o sentido com um dos braços.
Ele,
que havia perdido um dos
pés das sandálias,
assim o fez.
E enquanto ele seguia,
meio cambaleando,
lentamente seu
destino,
eu voltei para minha
casa, para minha vida,
minhas angústias
diárias.
Minutos depois,
outra vez sentado no
sofá da sala,
agora com uma xícara
de café na mão,
para minha surpresa
(como num déjà vu),
me aparece o mesmo senhor,
no mesmo local, fazendo os
mesmos gestos.
Por um instante,
pensei em descer e, outra vez
ajudá-lo.
Mas percebi que,
independentemente do
quanto demorara,
ele já havia entendido a vida
e seus labirintos íngremes e esburacados — mais cedo
ou mais tarde, no seu tempo,
tomaria o caminho de volta
até sua casa — como o
fizera tanta e tantas
vezes.
Eu é que nada sabia
da vida,
além da porta
de casa,
e era, de fato, quem
mais estava
perdido.
Encontros Trágicos -
Se a vida fosse, de fato,
boa,
não permitiria tantos
encontros trágicos.
A maioria das pessoas,
simplesmente
não liga.
Uma pequena parte
tem sorte.
O resto
vive à beira deum precipício.
Assim,
a vida acontece,
e se, de fato,
ela fosse boa,
não permitiria tantos
encontros trágicos.
Infinito Distante -
Somente a morte é algo
inteiro,
e ainda assim,
com uma parcela do
infinito distante,
imaginada, desconhecida.
Viver é despedaçar-se (diariamente),
em fragmentosde verdades, mentiras e ilusões,
a fim de adiar o
inevitável e profundo
sono eterno.
Sonhar, então,
é manter-se ainda acordado.
Insistências -
Há,
em mim,
um enorme
cansaço feito
deinsistências.
Há um acúmulo de
frustrações e derrotas
em forma de
rejeição.
Assim,
é preciso parar,
respirar... enxergar-me,
cuidar-me.
Dar chance para que
algo diferente,
de alguma forma,
possa acontecer: nascer
ou morrer.
Será Para Sempre -
O Tempo,
inevitavelmente
continuará a passar.
As pessoas tomarão
seus rumos,
cada uma à sua
maneira,
cada uma banhada
sob as consequências
de suas escolhas,
de seus atos.
Conhecerão novas pessoas,
criarão novos vínculos,
atarão novos laços
e,
de todos os amores que
ficaram por acontecer,
digo,
de todos os amores
suspensos no
tempo — com todas as
quase glórias
e as quase tragédias,
e todo o desconhecido
dos quase — um deles
será mais lembrado.
Mesmo se já houver um
outro;
mesmo que não haja mais
o mesmo fogo, o mesmo
desejo, os mesmos
motivos,
ele será lembrado.
Hora ou outra,
sem a mesma intensidade
será lembrado.
Sem a mesma urgência
de outrora
será lembrado,
sem nunca, de fato,
ter sido.
E porque nunca será,
será para sempre.
A Grande Questão -
Por que ainda há no mundo
pessoas morrendo em decorrência dafome?
Não há alimentos suficiente
para todos?
Quem fabrica as cédulas
e moedas — necessárias para
se ter os alimentos?
Que material é usado na fabricação das cédulas e moedas?
Esse material usado é mais
raro e importante que as milhares de vidasperdidas diariamente?
NÃO HÁ DESCULPAS!
A violência não irá
acabar.
Os conflitos, as guerras,
infelizmente,
continuarão a acontecer.
O preconceito, a intolerância,
a injustiça, a desigualdade,
todas essas coisas,
provavelmente nunca serão,
tatalmente extintas.
Acidentes, doenças, catástrofes continuarão a ceifar vidas.
Mas a grande questão é uma:
POR QUE AINDA HÁ NO MUNDO PESSOAS MORRENDO EM DECORRÊNCIA DA FOME?
Não Amanhece -
Acabei de acordar, depois
de mais uma noite,
extremamente
torturante.
Agora são,
precisamente,
09h37, de uma segunda-feira
qualquer de outubro.
A noite passada
(um pouco mais do que
de costume),
foi bastante triste,
angustiante — quase
não dormi.
Chorei tanto que, neste momento,
sinto-me, fisicamente,
como se estivesse
anestesiado.
Os meus olhos mal se
mexem.
Sinto meu corpo pesado
e um pouco trêmulo.
Inerte.
Em contraste, pensamentos acelerados, desordenados,
confusos, que estão me
causando umcerto temor,
uma certaangústia, um quase
desespero — algo como um
grande medo — medo do restante
do dia.
Não é bem a morte o que
mais me assusta:
É algo que precede-a.
Algo como perder
o controle.
Estamos na primavera
e,
hoje,
me parece que será um
dia ensolarado — de
céu azul lá
fora.
Aqui dentro...
Nem sei: não amanhece.
FERNANDO PESSOA
Com as suas mil faces,
são tantas em uma.
Com a pura emoção
sem uma alma pequena
sonhou os sonhos do mundo.
Sempre inquietação,
mordidas aos bocados
foi feliz e infeliz
Pensando por pensar,
sua alma sofreu o tédio.
incoscientemente
coerência da incoerência
Ele foi mutação,
Alberto, Ricardo ou Álvares.
E completamente alma,
foi natural igual,
ao levantar do vento
mfp
Guerra Fria -
Neste momento,
não tenho mais por que
lutar.
É inútil,
é uma batalha
totalmente perdida — acabou.
O que restou da guerra
foi lutar contra o
espelho:
um velho conhecido, cheio de
marcas, feridas, traumas
acumulados — heranças de outras guerras (perdidas).
Posso até golpeá-lo,
atingi-lo,
mas o verdadeiro inimigo
é outro (confortavelmente
inatingível), com status
de vencedor — de Grande
Vencedor — dessa silenciosa e impiedosa "guerra fria",
onde vence quem sente
menos,
e o final provou, de maneira
clara e cruel,
que somente um tinha
coração.
Não Jogue o Jogo -
Não jogue o
jogo!
Um encontro — que leva a um
desejo — que transforma-se em sentimento — que nos faz
mergulharem sonhos —
é para nos ajudar a reparar
os estragos que a vida
costuma nos fazer
diariamente.
Se te rouba a paz:
causando desconforto,
provocando raiva, aflição...
não serve!
É inútil, traumatizante,
destrutivo.
Não jogue o jogo:
Ambos serão derrotados!
Não Quero Explicar: Talvez Não Saiba -
Primeiro,
a sensação de acolhimento,
de não estar mais,
aparentemente,
sozinho.
Depois uma dependência
e uma vontade a mais,
de mais e mais vontade.
E esquenta e esfria
e, às vezes,
transborda para quase secar.
Renasce (se é que é possível),
depois de quase morrer.
E morre,
inexplicavelmente, respirando.
Não, não é o amor:
é isto.
Nem sei bem como somos
por dentro, lá no fundo.
Mas espero que compreendas
todas as lágrimas e bebidas
e motivos desta semana;
deste mês;
deste ano...
Vá,
desta vida.
Em Casa -
Largo mão da rua e
ponho o pé na
escada.
Subo-a, não penso,
chego ao portão, fico ao portão.
Giro o trinco, abro o portão,
entro e fecho-o.
Dou cinco passos à esquerda
e chego à porta.
À direita, há entretenimento:
não paro — sigo em frente.
Mais nove passos e paro.
Olho rapidamente à direita,
há descanso:
não deito — continuo
adiante.
Mais dez passos e fico
diante de mais uma
porta — onde tenho passado
a maior parte do tempo.
(Dormir, pensar, escrever...).
À direita há água, há remédios,
há alimentos: não bebo,
não tomo, não como.
À frente,
depois da última porta,
a última janela
e o fim.
Atravesso a porta e fico
próximo à janela.
Dou mais dois passos e
chego à janela. Fico à janela.
Fecho os olhos e me sinto,
de fato, em casa.
Há conforto, há segurança — abrigo.
Agora
abro os olhos,
abro a janela e vejo à minha
frente (decorando a janela),
a lua.
E assim, de repente,
como se amasse,
eu me lembro que existe um
mundo inteiro distante,
bem distante, muito
distante lá fora.
E choro.
Falha -
Tentei,
o dia inteiro,
encontrá-la, mas falhei.
Revisitei importantes lembranças
— gestos, fotos, vídeos —
e,ainda assim,continuei vazio.
Abracei-o.
Beijei-o, e nada.
Mesmo diante da pessoa mais importante do mundo,
no dia mais importante do
ano,
eu não encontrei as palavras,
os encontros — a Poesia.
E falhei.
Mesmo com todos os motivos
e sentimentos;
mesmo com todo o orgulho e admiração, eu falhei na busca.
Tudo que consegui escrever
resume-se a isto:
Este lamento, esta culpa, esta falha.
Este vazio.
Todas as crianças são especiais.
Absolutamente todas.
Mas nós, adultos, falhamos.
Falhamos muito.
E, grosseiramente, estragamo-las.
O Normal da Coisa -
Eles não me deixarão
em paz.
E eu não vou conseguir
deixá-los também.
(Mas, certamente, eles ficarão
melhor que eu).
Agora é isto:
o normal da coisa.
E a coisa toda está fundamentada
na futilidade, superficialidade e mediocridade da grande maioria deles.
Eu precisaria ficar rico,
talvez,
para que algo diferente
aconteça.
Então,
precisarei somente de alguns
deles, e esses eu os
suportaria.
Eu posso suportar alguns
deles, certamente.
Eu não suporto muitos
ao mesmo tempo:
Uma vizinhança, uma cidade,
um país...
Uma geração e a próxima
sob os efeitos desta.
Tão Pouco e Tanto —
Vivo preso, totalmente preso ao
que sinto.
Sou escravo devoto dos que têm os meus
sentimentos. — minh’alma.
De algumas histórias sem começo
e outras sem fim.
Trago, desde sempre, um sentimentalismo escancarado, muitas vezes vergonhoso, desmedido, desamparado. — quase infantil.
Dói: ninguém acerta-me! — tenho um
coração invisível e gasto.
E desejo tão pouco e tanto...
Julgar
Ouvir em silêncio, se colocar no lugar do outro, Compreender;
Ouvir em silêncio, aplicar seus ideais, julgar;
É difícil, para nós, sabermos oque é certo, e o que é errado;
É difícil, como pessoa, se colocar no lugar do outro e continuar acreditando ser bom;
Ser bom é o que importa?;
Falar é difícil;
Falar é fácil;
Não falar é difícil.
O Peso das Coisas que Escrevo -
É sempre um alívio concluir
alguma coisa:
um pensamento, uma canção,
um poema.
Ainda que o processo de fazê-los,
algumas vezes,
seja torturante, carregado,
penoso.
Mas vê-los alí, prontos,
de certa forma
alivia-me.
Mas concluí-los não é encerrá-los,
e eu preciso conviver com o peso
das coisas que penso, que faço,
que escrevo:
As canções e seus motivos; os poemas
e seus motivos; os motivos
e o pensamento.
Quando escrevo, escrevo por
alguma necessidade urgente:
às vezes algo;
às vezes alguma coisa;
às vezes alguém.
Mas as coisas e causas mudam,
passam.
As coisas e pessoas mudam,
rapidamente mudam,
se vão.
Mas os poemas e pensamentos não.
Eu os fiz nascer e preciso dar conta
deles agora, não posso
abandoná-los.
Eu senti as canções chegando, nascendo,
ganhando forma, alma, intimidade.
É preciso, vez ou outra, cantá-las.
Sim, cantá-las ainda que sangrando;
Cantá-las ainda que sussurrando;
Cantá-las ainda que emudecendo...
em silêncio.
Aquilo que escrevo tem o peso
daquilo que sou.
E ninguém, ninguém mais, além de mim mesmo,
precisa carregar isso.
Beberei Sozinho —
"O que acontece com os sentimentos reprimidos?" — pensava eu enquanto colocava na cesta do supermercado (ainda meio indeciso), algumas bolachas, biscoitos, iogurtes, chocolates, sabonetes e duas sardinhas com molho, não sem antes,
reparar bem a validade de
cada coisa ali.
Já no caixa, no momento de passar
o cartão e honrar os meus avós e todos
os outros que vieram depois deles
(como eles),
eu pedi ao rapaz que acrescentasse uma garrafa de vinho tinto suave que,
às pressas, fui buscar.
No trajeto de volta pra casa, revisitando sensações e memórias em cada
pedaço de rua,
eu havia me decidido:
"Desta vez, beberei sozinho! — assim o fim é menos doloroso."
Afinal,
depois que a última taça for esvaziada,
e a inevitável e desanimadora realidade
cair sobre minh'alma tosca e indefesa,
eu não precisarei ver ninguém
indo embora.
Admiração –
Comprei umas coisas e, enfim, elas chegaram.
Olhei-as e gostei.
Mas sempre sinto que me falta alguma
outra coisa (maior),
e então entendi que tudo que tenho (possuo),
não me tem. — pessoas e bichos
me têm;
Sentimentos e dúvidas me têm;
Sensações e sentidos.
Sou do tipo — raro — de gente que "costuma
usar coisas e amar pessoas".
(Acho que ouvi alguém dizer isso
por aí).
Gosto de gente interessada, admirada,
intensa, sincera.
Se quer algo frio e últil: compra
uma geladeira.
Amor é devoção, entrega — admiração.
Tal Como É –
Olha só que céu
lindo! — eu disse-lhe.
Mas não está um pouco
nublado? — questionou-me.
Sim, sim. — eu outra vez.
Mas ainda assim,
tão belo quanto ontem ou
há sete dias.
Na verdade,
o encanto, a beleza, a graça das coisas
se perdem somente nas pessoas.
A coisa ainda tá lá,
tal como é.
E,
no fundo,
quase todo problema
é gente.
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