Willian Silvers
A separação Estado-Igreja foi a grande derrocada da hegemonia do 'poder divino' que era exercido sobre os homens de outrora. Vez que a coação moral estabelecida pelo temor aos deuses foi substituída pelas sanções estatais em descumprimento às leis de direito.
A despeito das ideias não serem nada senão a mera sombra das ações; ainda existem algumas pessoas que ponderam a essência da vida e vivem-na conforme tais juízos, independente de toda a sorte de empecilhos externos. E, ao meu ver, nisto consubstancia-se o ideal do Ser livre.
A fantasia situa-se numa camada desprendida dos círculos de órbita da realidade; a qual alcançam apenas aqueles que viajam para além das férteis terras da imaginação; o reinventar das coisas já concebidas como tal; senão o próprio desmistificar dos mitos.
A vida é mais intuição
E imaginação que
Conhecimento.
Vez que o conhecimento
Limita-se à experiência,
Enquanto a imaginação
Abrange o infinito.
Nada de grandioso
Algum dia existiu
Sem antes ser sonhado.
Pois é do fantástico imaginário
Que surgem os meios
Para reinventar a realidade.
E lá estava eu, enrolado nos afazeres do dia-a-dia, entregando-me às promessas dos deuses que guardam os segredos do amanhã, deixando que os dias passem por mim sem que eu passe por eles, adorava a automaticidade a que havia chegado, tornava as coisas bem mais tênues e livres de complicações.
Afinal não existia nada de tão inovador em minha vida que me propusesse qualquer perspectiva diferente, mas pensava em muitas, e quase o tempo todo, embora nunca tivesse iniciativa para me propor jornadas tão ao horizonte líquido de possibilidades do desconhecido.
Isso é sempre algo que requer insensatez, intrepidez, para não dizer estupidez. Coisas que não habitam em mim há sabe-se quanto tempo, costumo me convencer de que sou naturalmente inclinado à condutas que traçam linhas retas, sem desvios; retas ao que me prescrevo como razoável.
Mas este não é o ponto a que quero chegar.
Aconteceu que, de repente, algo começou a me incomodar o pescoço, como se alguma coisa tivesse me picado, passei a mão e me comprometi a olhar no espelho, quando chegasse em casa, tornando-me novamente aos afazeres mecânicos do que a sociedade chama de profissão.
Com certeza a dor é algo que incomoda, assim como o caos à ordem. Quando sentimos dor, o incômodo acaba com a nossa concentração e transforma a si mesmo no palco para onde vertemos os holofotes da nossa atenção.
Eu não estava acostumado à incômodos, sempre tinha tudo em ordem, estava completamente habituado ao ritmo sólido e constante com que as coisas vibravam. Mas, hoje, mal podia fazer atividades medíocres, que vinha fazendo há anos à fio.
É bem verdade que essa rotina me transformou em alguém de pouco humor, sempre mordaz com as pessoas, dono de um ceticismo intragável, às vezes, nem mesmo eu suportava conviver comigo mesmo, mas o tinha de ser, se pode fugir de tudo na vida exceto de si mesmo. Esta é uma responsabilidade de natureza perene, que cada um tem para consigo mesmo, a de arcar com aquilo que fizeste de si: ‘criaste-te, agora, suporta-te’ — pensei.
Entretanto, não posso negar, situei-me por tanto tempo fora do espaço comum, que habituei-me a minha individualidade, meu espaço sem estrangeiros, com seus sotaques de ideias, suas religiões de valores, havia muito tempo que não me metia em conflitos, era só eu e eu mesmo.
Chegando em casa, fui logo ao quarto e me dispus a olhar-me no espelho, ali, bem no sítio em que me doía insuportavelmente. Para minha surpresa, não havia nada. Exatamente, nada. Nem mesmo um único vergão, marca, bolha ou ferida. Mas doía como se o incômodo viesse da picada de um escorpião. Dizem que é uma das peçonhas mais doloridas e incômodas. Nunca fui picado, li em algum lugar. Diferente de nada, nada não podia doer tanto.
Era violenta e invasiva, a dor. Não parava de latejar, sentia-a pulsar pelo meu corpo todo, mas se concentrava ali, no pescoço. Malditos calafrios.
Todo este arrebatamento, talvez se devesse a isto estar tirando-me do comum. Deveria ter passado no supermercado depois das vinte horas, que é quando paro no trabalho, e ter comprado algo para entreter meu estômago. Isso, entreter e não alimentar, pois é isso que acontece nas sextas à noite. Mas com toda essa situação me afligindo, mal lembro se desliguei a luz quando saí.
Só consigo pensar nisso, em resolver este incômodo, que parece estar tomando o controle da minha vida. E inimaginavelmente, como pode fazer sofrer tanto algo que começou há menos de doze horas.
Reclamei tanto comigo mesmo, fiz a dor acima de todos os meus sentidos.
O que mais me incomodava talvez fosse a confissão que devia a mim mesmo. E o diabo sabe como machucar. Azucrina com o que de mais importante guardamos no fundo do obscuro baú execrável de nossas almas, mas não podemos mentir a nós mesmos eternamente. Uma hora a verdade nos consome, e o que fazíamos oculto aparece. É como mágica, fingir bem é a chave. Fingir tão bem ao ponto de que todos acreditem. E a mágica só tem poder quando nós mesmos acreditamos nela. É assim que o truque funciona.
No fundo, eu sabia de uma coisa, que quis esconder de mim mesmo, o motivo real da minha falta de controle sobre a situação, com todos esses rodeios mentais. Algo que era comum, ao menos para mim. Rodeios mentais.
Sempre tento argumentar comigo mesmo, como se existissem dois lados em disputa, um dizendo algo e o outro tentando impor suas ideias, seus anseios, em via contrária.
A dor no pescoço, todo este incômodo, esta agonia, sinto-me tirado de mim mesmo, para fora, para longe do confortável buraco onde havia me enfiado desde a pré-história da minha vida, para o horizonte líquido e detestável de possibilidades, como eu o via, mas devo admitir, que ainda sinto os lábios dela marcarem suavemente um beijo de despedida no meu pescoço.
Entusiasma-se (Divina-se)
Os espíritos livres, aqueles que se desprendem dos círculos de órbita da realidade e se lançam em jornada rumo ao horizonte líquido de possibilidades que guarda o desconhecido.
Nômades que se distanciam do mundo convencionado e arguido como realidade para vagar selvagemente. Subsistem com pouco, no entanto, não aceitam bagatelas em suas vivências; querem o que de mais profundo e aterrador há no mundo; e quase sempre o encontram olhando para dentro de si mesmos.
Náufragos que aguçam seus instintos em suas desgraças e desventuranças pela fúria incontida dos mares e concebem do caos a luz da intuição e da imaginação a percepção de que o conhecimento se limita a experiência; e então a amam e idolatram com entusiasmo, como a representação mais humanitária e pura da divindade: a mudança.
Sinbad, o Marinheiro
Na cama não pude ficar esperando, como se o senhor regente dos domínios oníricos das Terras dos Sonhos se tivesse esquecido de me inebriar esta noite, com as areais do torpor.
Logo antes do crepúsculo estava eu a olhar a lua em toda sua majestade, abençoando os mares noturnos com sua altivez reluzente, e imaginando que lá de onde exerce seu reinado ela é um elo de ligação entre todos que testemunham suas bênçãos.
Não importa a distância, se é noite todos a podem contemplar, sem qualquer tipo de discriminação; e se assim o é, há quem encontre consolo no luar quando os amados partem em jornada para longe.
Os primeiros raios de sol da alvorada enfim prenunciam o dia que acabara de nascer. A vermelhidão que divide a noite e o dia se ausenta dando lugar a um céu azul radiante, povoado por pequenos aglomerados felpudos de nuvens brancas.
Com o alvorecer, o ímpeto de meus sentimentos proclamam essa uma manhã de encontros e despedidas. Oportuna se faz a idade adulta, quando os jovens se candidatam à aspirantes de marinheiros, com o que esperam conquistar grandes aventuras, repletas de fama e glórias.
Em mim não há lugar para o desjejum, é como se meus órgãos brigassem por espaço com toda a ansiedade que comporto em meu ser e meu estômago parece estar perdendo; trêmulo, se paro um segundo e observo o silêncio, tudo o que posso ouvir é a sanha de meu coração, a lutar na guerra por espaço, bumbando como um tambor de rituais bélicos, dentro de meu peito.
No porto, a brisa úmida e salgada da enseada sopra encantada pelos deuses dos ventos do norte, que são conhecidos pelas grandes salmouras de suas moradas.
As ondas lutam contra o velho cais de madeira das docas, pode-se ouvir ao longe o som de suas investidas.
O vento tece a água, que espirra das colisões, em minúsculos cristais, e ao serem atravessados pela luz do sol cintilam em mágicos arco-íris.
As grandes embarcações movimentam as águas: imponentes, lustrosas, com belas carrancas ornadas na proa. Seus mastros seguem aos céus, de onde pendem velas brancas e infladas como pulmões pelo vento.
Depois de longa viagem: terra firme; atracam para breve estadia, seus transeuntes se atropelam, num vai-e-vem frenético, trazem e levam cargas, há navios comerciais e de transporte, e Chronos não parece ser amigo dos que ali se encontram, pois a pressa parece ser a única senhora de seus templos.
O dia mal havia nascido e eu atropelava as horas, pois era chegado o momento. Tempo de embarcar, de ceder aos senhores do amanhã o meu devir: que usem o fôlego de seus pulmões e soprem as velas do destino rumo ao horizonte, onde o sol mergulha no mar até se apagar na água e dar lugar a noite.
Chegou o dia dos planos de deixar o porto, onde nascera e de menino me tornara homem, por terras desconhecidas além-mar.
Tornar-me-ei em um marinheiro mas é apenas o começo de minha ânsia.
O mundo é tão grande que nenhuma carta marítima sabe dizer ao certo o quanto, logo, ainda que navegasse todos os mares não os poderia conhecer como gostaria.
Contudo, de certa forma, para mim, tal fato não importa, o que diz respeito as Moiras somente diz respeito a elas, ocupo-me do que posso fazer agora. E, agora, resta-me isso: navegar.
Com o tempo, no entanto, os Oceanos, suas dádivas e tormentos, conhecerei. E a sabedoria de um lobo do mar, que conheceu muitos povos, viu muitas terras e águas, desbravou-as e então voltou, portanto, em mim há-de fazer morada.