Vinicius Linné
Eu sou uma pergunta cuja resposta não me compreende. Está morta.
O que eu sou não mora em mim, dorme do lado de fora. Algumas noites aprecia a lua, em outras manda ao inferno aquelas estrelas. O que eu sou é Barroco e contraditório, portanto não cabe nas formas perfeitas. O que eu sou não pode ser dito, é segredo de confissão, um dos tantos que a vida não disse. Jamais ousaria. Eu sou minha letra e tenho teu nome.
O que eu sou é reflexo nas sombras. É como um olhar de mudez incomparável, como balaustra de liquidez impenetrável.
O que eu sou é um cristal e estou quebrado. Eu sou as faces múltiplas de um espelho, ninguém sabe em quem me reflito. Não posso ser explicado, só sentido. O sentido foge também a quem toca e não sente.
Ninguém sabe o quanto existo e o quanto finjo. Há muitas formas de existir e todas elas têm um palco. Palmas, enquanto as máscaras permanecem rijas.
O que eu sou é inexplicável e incoerente. Como um céu no chão do abismo, um calabouço que dá ao nada e uma porta que não tem chave.
O que eu sou está trancado e escondido, porque à luz morreria. O que eu sou é o estado bruto que se liquefaz no ar insondável do meio-dia. O que eu sou não cabe na rotina, sequer acompanha os compassos de um relógio. Não tiquetaqueio nas horas vãs, sequer me afogo nos mares de companhia duvidosa. Eu sou livro que se lê escondido. Eu olho para os lados e, se não tem ninguém me olhando, vivo um pouquinho. Um pouquinho só, porque muito seria letal.
O que eu sou é uma ampulheta em contagem regressiva, é explosão de cacos de madeira viçosa. Eu sou a luta da manhã para deixar de ser noite. Eu sou a saudade da madrugada e o que eu sou não cabe em mim.
Eu tive que desfazer depressa, descosturar tudo antes que você chegasse.
Eu desfiei as noites em que você me abraçaria e me aqueceria, enrolando seus sonhos nos meus cabelos. Noites embaixo de árvores, folhas secas no chão, carinhos lentos, risos baixos, vida completa.
Eu desbordei uma tapeçaria de segredos. A cumplicidade que teria com você, as nossas mãos se tocando como que ao acaso. Eu precisei desmanchar meus carinhos no seu rosto, antes que você os visse.
Eu, depressa, descosi os sorrisos que daria, os bilhetes que enfiaria nos seus cadernos, os telefonemas que daria escondida. Eu precisei desmanchar, pétala por pétala, qualquer margarida roubada que eu pudesse lhe dar.
Bem rápido eu puxei os fios, cortei com tesoura, rasguei com os dentes, antes que você pudesse chegar e ver tudo que eu já havia tecido para nós. Fios rompidos no chão, enovelados, enosados, sobras coloridas do que não poderá mais ser.
Deu tempo. Quando você chegar verá destroços meus no chão. Não verá nossas noites, nossos carinhos, nossas mãos dadas à esmo. Verá só a confusão de fios e panos. Talvez pergunte o que é. Talvez nem se importe. E eu não vou dizer nada. Não vou me importar também.
Mas ao sair, ao sair ainda vou olhar para a lã vermelha, toda arrebentada, e vou saber. Só eu vou saber. Aquilo ali já foi o meu coração. E eu havia bordado para dar a você.
Mas você não quis.
É. Então é assim. Ontem você quebrou o caule das flores, hoje um copo, amanhã será um vaso vermelho. E você não conserta as coisas. Nunca. Passado um tempo, você empilha elas sobre a mesa e finge que estão como sempre estiveram. Como sempre deveriam estar.
Na mesa (quebrada) as flores (partidas) apodrecem no vaso (trincado). E você sorri, me abraçando como se tudo estivesse bem. Como se ruínas fossem belezas ainda frescas.
Não são.
Eu vejo os vincos. Eu me corto nos cacos. Eu sei dos armários abarrotados de louça partida. Dos baús repletos de roupas rasgadas. Fiapos de cortina não cobrem o sol, meu amor.
É. Então é bem assim. Um dia você vai perceber que a única coisa inteira na casa toda é o espelho. Mas, se o espelho está inteiro, minha querida, então somos nós que estamos partidos.