Tita Lyra
Trégua
Dá uma trégua neste duelo
Passa pra mim seu passaporte
Aceita: não foi forte nosso elo
E as dores?
Manda pra o mesmo endereço
Local oculto pra sepultar meu apreço
Vem! Traz o guindaste forte
Atende meu apelo: me tira desse berço
Ergue-me; aponta-me o norte
Para eu seguir com o vento a favor
Içando velas; naufragando a dor
Usando esparadrapo na cura do corte
Ferida sanada; resta a cicatriz
A nos torturar, por termos vivido por um triz.
Tita Lyra - 2008
Sabemos: o nada
e o tudo são, no fundo,
iguais
-se escondem na mesma porção
de mundo
ou de corpo.
Porém, não sabemos
se calamos pra dizer
o que mais nos dói;
ou se tudo dizemos
pra calar o que falta em nós.
Tita Lyra
Meu coração é um desconhecido
Por vezes meu coração é um desconhecido
Ocupa-se em me pregar boas peças
Por vezes parece ser até aguerrido
Em outras tantas me mantém dispersa
É um bicho esquisito este meu coração
Urra agudo dentro do peito
Faz de mim um ser em construção
E muito me deixa sem jeito
Tem medo meu coração
Nem por isto consegue recuar
Meu coração não sabe dançar
Quando tenta, pisa nos pés da minha dor
E me persegue por todo lugar
Meu coração não bate bem
Aliás, é até lelé-da-cuca
Parece um fole:
Tão logo se enche, tão rápido se esvazia
Meu coração já foi de Woodstock
Não controlava seu toque- toque
Agora, está mais pra ser militar
Rígido, regrado...aprendeu a se disciplinar.
Será?
Tita Lyra
Bagagem vazia
Comigo caminham
Todos os mortos que enterrei
Os amigos que se afastaram
Os homens que amei
Os amores que me mataram
Os projetos que pra trás deixei
Não perdi nada:
apenas a ilusão de que tudo poderia ter dado certo.
Tita Lyra
Poeminha legal
As pessoas se bastam; eu não.
Preciso de cada um.
Preciso de todos.
Preciso não dividi-los.
As pessoas se deixam; eu não.
Carrego no peito cada ser amoroso.
Sei como amar alguém!
Mas não sei como deixar de amá-lo.
Dizer ao coração:
A esse apague: àquele esqueça
Em mim, é vão.
O insensato músculo não escuta
E, independente, bate.
Por isso, não pense alguém poder um dia me perder.
Ninguém me perde (ainda que deseje)
Só EU me perco de mim...
Tita Lyra
Quatro horas da manhã aqui no centro do Brasil
Do infinito da minha cama, parece que o mundo inteiro dorme
Sinto-me absolutamente solitária no meu planeta insônia
Nem sequer consigo imaginar o burburinho
Que acontece agora em um centro urbano nervoso do outro lado do mundo
Aonde já são quatro horas da tarde.
Aqui, no meu cárcere com olhos vendados
Eu e eu travamos uma luta tão grande
Para conquistar o único troféu que de fato ora me importa:
Os braços de Morfeu!
E ele parece tão distante...
A luta cresce. Vejo-me em uma arena romana
Enfrentando bestas de três cabeças
Atenta aos perigos da noite
Sem nenhum ser vivo nas galerias a torcer pelo gladiador que incorporei
Porque o mundo dorme.
Dormem os cães de guarda.
Dormem os meninos levados.
Dormem os vigias noturnos em suas Japonas azuis
Dormem as ruas serenadas
E até as folhas caídas no chão.
Só não durmo eu:
Farol aceso em meio a este oceano escuro e gigante
O qual se torna mais e mais revolto
Só me resta torcer para que, como náufraga extenuada,
Minha mente escute uma canção de ninar
Antes do sol raiar...
Tita Lyra
Tempo: compositor de destinos
O tempo é quem escreve a partitura
Que rege a sinfonia do início ao fim
No começo é tão extenso ... parece eterno
Mas de um instante para outro,
Torna-se escasso
O tempo vira conciso,
de forma fugitiva.
Corrói matéria viva
Quem dera ter tempo
para o tempo que preciso
É o tempo que me dá
o tempo do indeciso
O tempo para o devaneio
O tempo para o cuidado
Sem tempo para o esperneio
Sem tempo para o açodado
Porque o tempo é dono da razão
É maestro do aprofundado
É dono da vida; até do coração
Sem pena do acovardado
O tempo é assim: abusado
Já não tenho mais este segundo
O agora? Aqui é passado.
Tita Lyra
Verso teimoso
Eu não preciso escrever.
Quem se importaria com meus escritos?
Penso então, que talvez seria até bom não escrever.
Mas o verso é teimoso.
O verso é insistente.
Invade feito tisunami as páginas em branco
Trazendo consigo avassaladoras palavras salgadas.
Penso então, que talvez até seria bom não escrever.
Quem sabe não haveria aflição e devaneios ?
Eu não seria incauta ao fantasiar
Meus versos viajando no tempo e no espaço
Cruzando fronteiras
Quem sabe se não escrevesse, a inquietude não existiria ?
Eu olharia da varanda o entardecer de domingo,
Veria tão-somente o entardecer de domingo...
E não um pedaço de tempo passando
Um pedaço a menos de vida.
De nostalgia e solidão não vestiria o momento bucólico da varanda
Esperando, com nostalgia e solidão, a visita da noite
Viver com pesar a morte de mais um dia
Teimosa, mais que o verso,
Então eu escrevo.
Tita Lyra
Vê
Que mesmo em face da nossa dor maior,
O folião retorna ébrio deste carnaval
O cidadão exerce seu papel mor
Carros, buzinas, atletas, sacerdotes, putas
Mantém suas poses e rotinas
Alheios ao nosso coração que não combina
Não cabe
Não casa
Não bate no peito do planeta
Porque o mundo vive
Enquanto sobrevivemos
Na extra sístole
Da morte anunciada.
Lâmina afinada
A talhar nossa alma conjunta e emendada
Ainda que através da dor
Feito junção de peças de legos,
Estamos multicoloridos, encaixados, seguros e interdependentes.
Nos necessitamos nesta hora
Neste formato temporário
Porém imbativelmente forte.
Que força é essa que nos une tanto
E não consegue rodar as horas pra trás?
Não há mesmo tempo
Cada minuto passa a ter mais do que sessenta segundos
No lento arrastar do sofrimento
Em meio a essa Tissunami cruel
Onde nós,
Vítimas da avalanche imprevista e devastadora,
Nos encontramos na convergência dos contrários
Desejando absurdos impensáveis
Através de preces profanas
Apelos aos céus que mais parecem infernos
Quando pedimos que o mar recue,
Junto com a vida
Ainda que tenhamos que sair,
Pesadamente,
Recolhendo nossos inúmeros mortos.
TIta Lyra