Richard Sibbes
Esta cana trilhada é um homem que na maioria das vezes está em alguma miséria, assim como estavam aqueles que vieram a Cristo em busca de ajuda, e que através da miséria foi levado a enxergar o pecado que a causou; porque sejam quais forem os pretextos que o pecado faça, ainda que ferido ou quebrado é o fim destes pretextos; ele está sensível ao pecado e à miséria, mesmo à ferida; e não encontrando nenhuma ajuda em si próprio, é levado com incansável desejo a receber ajuda de um outro, com alguma esperança, que ainda que pequena, o eleve de si mesmo até Cristo, embora não ouse alegar qualquer direito presente à misericórdia. Esta fagulha de esperança, sendo atacada por dúvidas e temores que nascem da corrupção da sua natureza terrena, fazem dele um pavio fumegante; de maneira que ambos, a cana trilhada e o pavio que fumega, constituem o estado de um pobre pecador aflito. É a estes que nosso Salvador Jesus Cristo chama de pobre de espírito, Mt 5.3, aquele que vê sua necessidade, e que também vê a si mesmo como devedor da justiça divina, e que não encontrando meios para ser ajudado, em si mesmo ou em qualquer criatura, chora por isso, e por alguma esperança da misericórdia contida na promessa e nos exemplos daqueles que têm alcançado misericórdia, é incentivado a ter fome e sede da mesma.
O modo de Cristo é, primeiramente, ferir, depois curar. Nenhuma alma saudável, sã, entrará jamais no céu. Pense que, quando em tentação, Cristo foi tentado por mim; conforme minhas provações serão minhas graças e consolos. Se Cristo é tão misericordioso que não me quebra, não quebrarei a mim mesmo pelo desespero, nem me renderei ao
leão rugidor, Satanás, para me fazer em pedaços.
Quanto mais graça há, mais espiritual é a vida, e quanto mais espiritual a vida, maior a antipatia para com o que é contrário. Portanto, ninguém está tão ciente da corrupção quanto aqueles cujas almas são as mais vivas.
Deus amiúde opera pelos opostos: quando ele pretender dar vitória, permitirá que sejamos inicialmente derrotados;
quando pretender consolar, primeiramente apavorará; quando pretender justificar, primeiro condenar-nos-á; quando pretender nos tornar gloriosos, humilhar-nos-á no início. Um cristão conquista, mesmo quando é conquistado. Quando é conquistado por alguns pecados, ele obtém vitória sobre outros mais perigosos, tais como orgulho e segurança espirituais.
Devemos trazer sempre isso às nossas mentes, que aquilo que começa em autoconfiança termina em vergonha.
Que conforto é esse em nossos conflitos com nossos corações indisciplinados, que ele não ficará assim para sempre! Que porfiemos um pouco de tempo, e sejamos felizes
para sempre. Que pensemos, quando estamos atribulados com nossos pecados, que Cristo está encarregado disso por seu Pai, que ele não “apagará o pavio que fumega” até que haja
submetido tudo. Isso põe um escudo em nossas mãos para rebater “todos os dardos inflamados do maligno” (Ef 6.16). Satanás objetará: “Tu és um grande pecador”. Podemos responder: “Cristo é um forte Salvador”. Mas ele
objetará: “Tu não tens nenhuma fé, nenhum amor”. “Sim, uma fagulha de fé e amor”. “Mas Cristo não considerará isso”. “Sim, ele não apagará o pavio que fumega”. “Mas esse é tão pequeno e fraco que sumirá e será reduzido a
nada”. “Ao contrário, Cristo dele cuidará, até que haja trazido julgamento com vitória”. E isto já temos para muito conforto nosso, que, precisamente quando primeiro cremos, conquistamos a Deus mesmo, por assim dizer, crendo no perdão de todos os nossos pecados, malgrado a culpa de nossas consciências e sua justiça absoluta. Ora, havendo prevalecido com Deus, o que se colocará contra nós, se pudermos aprender a lançar mão da nossa fé?
Nem devemos raciocinar de uma negação de uma grande medida de graça para uma negação de qualquer uma em absoluto em nós, pois fé e graça não consistem em uma quantia indivisível, de modo que quem não tenha tal e tal medida não a tenha em hipótese alguma. Mas, como há uma
grande diferença entre uma fagulha e uma chama, assim há uma grande diferença entre a menor e a maior medida de graça; e aquele que tem a menor medida está dentro do âmbito da mercê eterna de Deus. Ainda que não seja ele uma luz brilhante, todavia, é uma mecha fumegante, o qual o terno cuidado de Cristo não permitirá que se apague.
"Eu creio, Senhor" (Marcos 9.24), com uma fé frágil, todavia, com fé; amo a ti com um amor débil, todavia, com amor; esforço-me de uma maneira fraca, mas esforço-me. Um foguinho é fogo, todavia, solta fumaça. Visto que tu tomaste-me para dentro de tu aliança para ser teu, eu que era seu inimigo, lançar-me-ás fora por essas doenças, que, assim como te descontentam, também são elas a tristeza do meu próprio coração?
Se odiamos nossas corrupções e lutamos contra elas, elas não devem ser contadas como nossas. "Não sou eu que faço isto", diz Paulo, "mas o pecado que habita em mim" (Rm 7:17). Pois o que nos desagrada nunca nos machucará, e seremos estimados por Deus para ser o que amamos, desejamos e labutamos ser
Toda vez que pecados de fraqueza estão em uma pessoa, ali a vida de graça deve ter começado. Não pode haver fraqueza alguma onde não há vida nenhuma.
Como seu Pai nunca esteve mais perto dele em força para sustentá-lo do que quando estava mais longe no sentido de favorecê-lo com conforto, assim também Cristo nunca está mais perto de nós em poder para nos sustentar do que quando parece esconder ao máximo de nós a sua presença.