Renata Pallottini
O GRITO
se ao menos esta dor servisse
se ela batesse nas paredes
abrisse portas
falasse
se ela cantasse e despenteasse os cabelos
se ao menos esta dor se visse
se ela saltasse fora da garganta como um grito
caísse da janela fizesse barulho
morresse
se a dor fosse um pedaço de pão duro
que a gente pudesse engolir com força
depois cuspir a saliva fora
sujar a rua os carros o espaço o outro
esse outro escuro que passa indiferente
e que não sofre tem o direito de não sofrer
se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra
para doer doer doer visível
doer penalizante
doer com lágrimas
se ao menos esta dor sangrasse
Latifúndio
Não quero mais me lamentar
mesmo porque
não tenho mais de quê.
Se o sabiá voou
ficou-me o bem-te-vi.
Se o amor acabou fica o estamos ai.
Eu tenho a grama do jardim
e mais,
tenho-me a mim.
VIAGEM
Faço uma viagem
quase sem sentido.
Preparo a bagagem.
Mas por que motivo?
Nada me motiva
salvo um emotivo
grave coração
que me olha nos olhos
e diz: tens razão.
Vai e sem motivo.
Antes sim que não.
ALGUMA COISA
Alguma coisa fica
do caminhar contínuo
e deste sono.
Alguma folha fica
da primavera
no outono.
Algum fruto, algum gesto, alguma voz.
Alguma coisa frutifica.
E fica em nós.