Rayme Soares
Quando me dizem: estranho. Sou
Quando me dizem: tacanho. Vou
Quando me dizem: pequeno. Engulo-os
Quando me dizem: medroso. Despertam-me
Quando me dizem: gato. Não rosno
Quando me dizem: forte. Não mostro
Quando me dizem: sul. Nem norte
Quando não dizem: nada. Observo-os
Quando me dizem: tudo. Acho pouco
Quando me dizem: insano. Menos louco
Quando me dizem: tosco. Acho tosco.
Dê o passo
Ocupe o espaço
Arme o laço
Lace o alvorecer
Novo dia, ande, ande
Que o chão se expande
Pra você!
Por que ser inflexível, se posso aprender a fluir, seguir e chegar como as águas que se entremeiam pelas frias pedras até alcançarem os rios e os mares?
Lavei o rosto para não permanecer
Com a sujeira daquelas palavras
Sujei as mãos ao remover o fel
Das tramas sinistras e veladas
Levantei os pés para sair do brejo
Articulei as juntas quando me encolhi
Pra sair das “glórias” que não invejo
Eram só inglórias quando as vi
Foi sair e saber de longe do meu nome
Foi sair e perceber que nada perdi
Deixar que se consumissem os que não me consomem
Os que não mais me consomem
São ferozes entre si e a si comem
Foi sair e ter tempo pra cantar, voar, luzir...
Sou patologicamente triste
Drasticamente ferido n’alma
Por tantos e tantas, por muitos
E às vezes sem ressalva
Acordo do meu sono trêmulo
Quero apagar do sol, a luz
E acender um sonho melodioso
Acho que meu recanto traduz
Traduz minha dor e me aceita
Não tenho medo do escuro
É mesmo uma hora perfeita
Quando pra tristeza eu durmo
Meus versos se completam e me revelam
No dístico das tristezas e das alegrias
Não sou um, sou gritos e silêncios
Sorrisos e lágrimas nas canções e nas poesias
Sou cronicamente triste
Mas se conseguir entender um verso comum
Cubro-me de alegrias sinceras
Apesar da primeira pessoa não sou um
O vazio é o oco
O vazio do oco da tua boca
Da tua cabeça, o choco
Do que julgas serem palavras loucas
Desse, dessa, daquele e daquela
Palavras e derrames d’alma
Mas se tu julgas sem querelas
Para o verdadeiro final tenha calma
Haverás de perceber: nada é vero
Pois se nada existe sob o julgo todo
Talvez seja um olhar sincero
Mas não te percas no engodo
Da verdade inteira onde o silêncio se esgueira
Da verdade escamosa aonde a luz não chega
Da verdade da aconchegante esteira
Da verdade do presente “à grega”.
Quando olhava pro meu pedaço
E para o seu você olhava
O que poderia ser um laço
Era um nó que nos calava
Cada cego tateava
Uma parte de um todo
Cada cego alegava
O meu tanto não é pouco
Quando só via a minha parte
E você o seu limite
Me julgava onipotente
Não aceitava palpite
Mas deixei a ignorância
E você me entendeu
E nunca ficou tão claro
O todo era você e eu
Sistêmica visão, enfim
Sistêmica visão, enfim
E a entropia gigantesca
Logo então se dissipou
Por ter a visão sistêmica
O fluxo se efetivou
Energia sinergia
Frutos da percepção
Fim da aparência anêmica
Tanta realização
LOUCURA
Tenho vontade de me dar por inteiro
Para aliviar meus anseios e receios
(Mas isso me parece loucura. Será?)
Por todos a quem eu tenho, sem medir veios
Será loucura, eu querer tê-los sob o meu acolher?
Fazer por merecer; não vê-los sofrendo
Ao menos por onde enxerga a minha mente
Desejo de estar lá e cá e angustiosamente...
Seria um alívio diante das agruras
Seria o alcance do que não fenece
Seria o alicerce de tantas estruturas
Seria um querer louco; um louco querer?
Mas eu quero. Então é a loucura estampada.
Pouco importa ser louco, saboreando o viver!
Passagens e paisagens
O teu jeito incomoda
Tua palavra descontrola
Teu fazer aborrece
Teu prazer trava nervos
Teu andar desequilibra
Tua postura toma espaço
O teu texto mostra fibra
Quem não suporte, há
Quem não suporte, vá
Quem não suporte, trinca
Quem não suporte, cica
Fazer o quê?
Passagens e paisagens...
Vai!
REVELAÇÃO
Eu vi um poço sem luz
Caí ali no poço sem paz
Por entre as entranhas do medo
Era sem barco, sem vela, sem cais
Prostrei-me no confessionário
Falei do que havia no fim
Busquei religiões, inúmeras
Por infindas ladeiras subi
Nada encontrei; eram vãs palavras
Deitei pra não ver o sol
Não mais ver o céu; não ver nada
Fantasmas no derredor
Os tornados me emudeciam
Deixaram-me tonto e perdido
Perdi o prumo, me afastei dos meus anjos
Mas aos céus clamei decidido
Águas e lágrimas desciam correntes
Meus joelhos calaram no chão
Nada me causou espanto
Diante da revelação.
A BATALHA
Crava, fere, sangra; só eu
Trava, cela, tranca; aqui
Escarnece, bate, lincha no breu
Humilha, humilha, humilha, sem fim
Luzes, anjos, paz; só nós
Vitórias, força, fé; que temos
Vontade, conquista, verdade, coração
Azuis, amor, sabedoria; venceremos!
Só eu aqui no breu sem fim...
Só nós que temos coração venceremos!
ANJO
Senti o bater de tuas asas
Sobre a tempestade que se armava
Asas de anjo, asas morenas e claras
Quando a solidão me rondava
Senti, mesmo de longe senti
A feminina beleza inquieta
De torneado corpo fluía
A tua fervura discreta
Sinto na tua indelével beleza
De dentro, de fora o que agora
Faz-me ter toda certeza
Que és filha sã da natureza
Estou entre tua imagem e tua leveza
Um anjo, um ser pleno e intenso
Se calo é porque onde quer que esteja
É em ti que repouso o que penso
Eu vi teus contornos que chamam
Calei pra não destoar
Dos sentimentos que envolvem os anjos
Que são luzes e me fazem sonhar
Sinto na tua inexorável atração
Que tudo que ronda é pureza
Sei que és anjo então
Dispo-me e deixo que vejas!
Anjo II
Era breu o que predominava
Era desagradável o momento
Era a agonia que pairava e imperava
Mas deverás forte foi o seu alento
No início fez-se presente como um ponto de luz
E o breu era insistente aos olhos meus
Chamou-me a atenção a sua paz
E o que me parecia ponto fez-se exuberante luz de Deus
Com algumas sábias palavras
Você me convenceu
Sob suas asas alvas
Sua paz me acolheu
Essa força em você habita
Discretamente resplandece
E dizer-se anjo não suscita
Mas é o que acontece
Diz por entre as linhas do seu texto
Diz na imensidão do luminar
Diz na fineza dos seus gestos
Diz nos atos e no olhar
CANETA
Rayme Vasconcellos Soares
Trabalho calada, escrevo segredos
Entre dedos de formas diversas
Concluo contratos ou mesmo distratos
E sou companheira de muitos poetas
Palavras belíssimas e até desacatos
Histórias, estórias, raríssimos fatos
Erros absurdos, absurdos relatos
Canções geniais, históricos tratos
Cartas românticas, não ligo semânticas
Bilhetes, sem nada de estéticos
Poemas sinceros no voar do ônibus
Conselhos patéticos, recados sintéticos
Trabalho calada, mas, muito, eu sei
Às vezes jogada, nunca reclamei
Mas inútil e borrada, largada fiquei
Quando uma papelada inutilizei
Trabalho calada, escrevo segredos
Entre dedos de forma diversas
Trabalho calada, descrevo segredos
Ah, se eu falasse! Talvez morresse cedo.
CARRETEL DE LINHA (Carlinha)
Pele de lã, longe
(Branquinha, seja minha)
Enigmaticamente não chega
E tudo lhe faz rainha
Quando aparece, cega
E cego, navego na rede
Um pescador não nega
O que de fato lhe mata a sede
Carretel de branca linha
Tece o tecido da flor
Encarcera a vontade minha
De sentir do seu corpo o olor
Negros cabelos distantes
Percebo a avidez dos ventos
Por seus fios brilhantes
Quem sabe isso fosse um alento.
MINHA CECÍLIA
Quão forte é essa mulher
Fui presenteado por Deus
Minha professora primeira
Minha Cecília tão mãe
No “visseiro” teu cheiro me assegurava
Um dia inteiro de sonhos e rios
De poesia, contos e beleza
Dos passeios no “quente e frio”
Dizem-me: criado por avó
Ah se soubessem dos encantos de sê-lo
Não seriam pejorativos na fala
Talvez por um momento só
Se todos pudessem percebê-lo
Não calariam o que não me cala.
ALICE
Ali se fez a maré;
Ali se fez o que me apraz;
Ali se fez um balé;
Ali onde Alice faz muito mais!
É o imã da imaginação;
Da livre Alice é o que há;
Onde se curva despretensiosa canção;
Pois são tantos os vôos a alçar!
Alice é “bárbara” no que representa;
Nas maravilhas do seu país;
No que abarca toda a beleza;
No que pelos olhos nos diz!
É “bárbara” aos olhos da mãe;
Inteira aos olhos dos pais;
Onde se curva despretensiosa canção;
Porque é ela uma semente de paz!
JULIANA
Os olhos vêem mais que um homem subindo a ladeira
Ao relatar o acontecido, dos olhos: água, sal e dor
Onze anos; quase doze, mas é para o espírito que se esgueira
À tona vem, ao ver o homem, todo o seu esplendor
Talvez cansado, mas o homem vai trabalhar
Mas ela vê, lê, crê e superlativa o que pesa
O que pesa nos ombros, no lombo, no caminhar
E ela relata, entorna o que na página da sua alma reza.
Ele chora o que ela chora o que dela aflora
E ele sorri triste ou feliz; ele sorri
Mas nele dói o olhar que ela tem dele
Do sofrimento, do tormento e fala do que há de vir
A ladeira, o peso dos livros e a leveza das palavras
Nada existiria sem aquela face rubra que retrata a alma alva
E tudo vale apena diante daqueles olhos que não deveriam chorar
Mas é subindo a ladeira que o homem busca o que salva
É trabalhando que o homem quer fazer Juliana sorrir
É caminhando que o homem quer fazer Juliana caminhar
É na subida que o homem mostrará pra ela o luzir
Mas que ela seja feliz ali, aqui ou onde quiser estar.
MOVIMENTO
As raízes dos vegetais estremeceram
Os astros esquecidos explodiram
Os ferros retorceram-se ante o vento
As vestes dos teus gestos me despiram
As favas e os favos favoritos
Cravavam os cravos e os gritos
Ouviram-se do silêncio os gemidos
E os idos ecoaram os seus ritos
As linhas e os espaços ecoaram
Sob claves, sob tempos, sob trilhos
E todas as verdades se perderam
Nas linhas e nos espaços do que eu digo
Nas tramas curvilíneas do teu corpo
Se te assustas, eu te digo: - não me intrigo.
O Livro e Eu
Lépido ou triste busco por ele
Para um entrave ou uma nova chave
Para um dialogo ou um dia longo
Funcionando como uma clave
Ele: o livro, vivo, vivo, livro
Dele, o sumo e o insumo que refaz
Ele o crivo e eu dele o mesmo
E faz, e desfaz, e sem mais ou me apraz
É místico, metafísico o que sinto
Todo livro é mágico
Se não pra mim, pra outrem
Nunca casto; estático.
Todo livro seduz e se torna ativo
Nunca li um que me deixasse inerte
E somos vivos: eu e o livro
E tudo se reverte ou se inverte
O livro é o instrumento do processo
Para um planeta intenso
De onde emerge o submerso
Por onde resvala o que penso
Leio o livro, sinto o livro
Ouço o livro, calo o livro
Canto o livro, recito o livro
Fecho o livro, abro e sirvo
Do que um “morto”, mais vale um valente livro!
Olha só!
Desnudam-se as faces dos indóceis
Fenecem as ventanias que tonteiam
Falecem as vozes que emudecem
Olha só!
Florescem dos áridos gestos
Ações que avivam manhãs
Razões para seguirmos com fé
Olha só!
A boca que cospe secou
Pelo entorpecer que o amor
Causou na língua do rancor
Olha só!
Fui eu quem mudou o olhar
Fui eu quem mudou o eu mudo
O eu cego; o eu morto; o eu surdo.
Olha só...
UM ENCONTRO
Para encontrar comigo, deixo que falem as dores
Para encontrar comigo, estanco no crepúsculo e vagueio
Para encontrar comigo, acordo os acordes nas canções
Para encontrar comigo, não me perco no que anseio
Para encontrar comigo, saio de perto do fel
Para encontrar comigo, esqueço quem me despreza
Para encontrar comigo, fico atento àquele ou àquela
Para encontrar comigo, convirjo com o que reza
Para encontrar comigo, busco marés e mares
Para encontrar comigo, expurgo qualquer rancor
Para encontrar comigo, busco a pureza dos ares
Para encontrar comigo, aceito das mãos o tremor
Para encontrar comigo, penso nas minhas filhas
Para encontrar comigo, visito a minha mãe
Para encontrar comigo, afasto-me das ilhas
Para encontrar comigo, não deixo que me aranhe
Para encontrar comigo, choro sob o chuveiro
Para encontrar comigo, libero o meu sorriso
Para encontrar comigo, não preciso ser o primeiro
Para encontrar comigo, nem preciso do meu aviso
OUTRA ESTAÇÃO
Nada explica um sentimento tão grande
Sentir-se nas mãos de alguém tão plenamente
E tudo se esvair em poucas horas
Meu coração que batia aceleradamente...
Será que você não percebia que era verdade
Descem lágrimas dos meus olhos, ainda
Ainda pássaro voando perdido
Já não temos mais chance e era uma coisa linda
Agora tantas estações nos separam
Agora nenhuma imagem finda
Pois suas pegadas fincaram e ficaram
Por não suportar a partida
Sonhei em viver esse imenso universo
Mas não era hora; não era pra mim
Eu quis ser seu e você passou
Por que tinha que ser tão forte? Tinha que ser assim?
OUTRA ESTAÇÃO II
Devaneios e anseios
Um tonto que ainda crê
Que houve aquele amor
O louco por você
Um beijo na beira da noite
Ribeira do rio do caos
Quase enlouqueci no açoite
Do vento nas velas das naus
A firmeza ao declarar seu sentimento
Repetidas vezes a confirmação
Por que sua mão em minha nuca?
Porque é mesmo tudo ilusão!
É, é tudo exatamente assim
Pra chegar, brilhar e ferir
Arvorei-me a amar e paguei
O preço de sozinho seguir.
VÓ
Onde estão as pitangas,
As bananeiras e as secas e verdes folhas?
Onde estão as taiobas e os efós?
Os livros cheios de encantos por onde me revelava sonhos...
Onde, os olhos azuis e verdes (acinzentados)?
Onde, as mãos nas minhas ao atravessar a rua?
Mamoeiros, araçazeiros e velas emergenciais...
Frente ao nicho dos santos, dos prantos do menino, eu
Dos sorrisos alucinadamente felizes, meus
O agasalho e a gemada frente à TV sem cor e colorida
Fazíamos tapeçaria, eu e meu irmão (o segundo)
O beijo, o afago, o abrigo, o agasalho...
Onde, onde, onde?
Onde a “casinha feliz” e os contos do Lobato?
Onde o som da flauta, do violino e o sabor do pão delícia?
A leitura, no início da manhã, e a voz doce que lia, onde?
A calça da mulher além das muralhas do tempo, onde?
O batom vermelho, o ruge, os óculos, os brincos, onde?
Os sapatos altos, os atos fortes, a telha velha, o pão torrado, onde?
As bolsas, as pulseiras, os anéis, o anel de professora, onde?
As estantes, o cristo na cabeceira da cama, o meu deleite...
Tanta felicidade, tanta segurança, tanta fantasia, tanto amor...
Esperei da vida uma máquina fotográfica e nada se apagou...
Nada se desbota nada se resume nada estanca, mas, onde?
Parece que o quintal acabou. Apenas parece...
Simplicidade e sofisticação da mestra
Os versos em francês da vó
Li o acróstico que um pássaro escreveu pra flor
Parece que o quintal acabou. Apenas parece...
Onde, a postura encantadora da candura que me acalentava?
Onde, a canção que fiz sendo cantada pela cansada voz?
Lá no quintal da minha casa, pois assim me fazia ver, tinha o céu
Parece que o céu morreu no quintal. Apenas parece...