Rani Lisboa
"Passo a maioria dos dias, meio desligada. Vou da zona oeste, a zona sul, no modo automático. Raramente paro, estou sempre atrasada. Quando algo me desacelera, penso que seja um chacoalhão carinhoso do universo. Um puxão de orelha celestial, seguido de uma bronca: – “Abre o olho, menina! Se continuar nesse ritmo, daqui a dez anos, não terá momentos memoráveis a serem recordados. Lembranças como essas, e a saudade gostosa que sentiu hoje, não existirão. Restará apenas, o nó na garganta e a sensação de ter vivido em vão."
No balcão do bar, ela pede a bebida preferida “Garçom, uma dose de vodka, por favor.” A rapidez com que vira o copo, os olhos marejados e a urgência pela próxima dose, dão indícios de que mais uma vez, a vontade de amar incondicionalmente, colidiu com a insensibilidade dos braços errados.
Lá pelas tantas da madrugada, chega cambaleando em casa – corpo cansado, coração dilacerado e gosto amargo de desamor na boca. Enquanto o teto insiste em girar e o estômago dá sinais de ressaca, ela cantarola Cartola baixinho. Entre um verso triste e outro, chora e sufoca os gritos com o travesseiro.
No fim de cada canção, promete para si mesma que trancará todo o afeto desperdiçado no quartinho dos fundos.Ela é refém do sentir-visceral. Tudo é profundo. É intenso, é carne viva. Sente por ela, por quem ama e por aqueles que nem conhece.
Tem o costume de enxergar leveza nos detalhes da vida. Se emociona com boa música, com bons filmes e com pessoas de bom coração. Ela nasceu com instinto de zelo, sabe cuidar de tudo que a cerca com maestria – se um dia ela deixar você sentar no sofá da casa dela, considere-se um cara de sorte.
Ela de câncer e costuma ser colo, mas a vezes, precisa trocar de lado no jogo. Ela precisa que você esteja com ela até o fim, por isso, se a sua intenção é fazer firula com o afeto dela, dê meia volta e peça mais uma cerveja, queridão.
Não nos falamos mais, não sei como anda sua saúde, seu espírito, nem seu coração. Mas há alguns meses, desatei o nó que enforcava o ”nós”. Decidi nos libertar. Decidi por um ponto fim naquilo que torturava. Confesso, não esqueci você, esqueci a gente. Pessoas como você, são difíceis de serem esquecidas.