Paulo Pimentel
O medo é o pior ferro em brasa, queima profundo e deixa sequelas, queima mais e deixa mais sequelas, queima as sequelas formando outras maiores,mais fundas, mais eternas e invisíveis. O que dadeiramente dói é invisível aos olhos, dos outros.
- Meu amor, eu não te venderia. Desfrutar seu corpo é um prazer reservado a um único homem, por sorte, loteria divina , ou o que quer que seja, esse homem sou eu.
De escola em escola, de bairro em bairro, aprendi a ler. Encantei-me por viver vidas que nunca foram ou serão minhas. Aprendi a rezar e vi que isso era inútil, como inútil é tudo o que há de escrito, decorado e repetido no mundo.
Aprendi que a desgraça é uma faca afiada em minhas mãos. Nunca a senti porque ela está virada para o mundo. Poderia virá-la para mim, mas vale a pena se ferir? Aprendi a contar a verdade e essa foi a grande forma de mentir
Um dia ela parou de comer. Dia a dia, contudo, ela continua a escovar os dentes. Escovava tanto que desgastava o esmalte, feria a gengiva. Um dia, ela foi além. Esfregou tanto, tanto no tanto e tanto, que sangrou em cada raiz, em cada poro, em cada glândula, em cada célula. Os dentes caiam com a esfregação insistente e ela os recolhia e continua esfregando. Quando caíram todos os dentes, postos por ela sobre o canto da pia, como um rosário pagão, ela continuou esfregando, pois se esquecera de que eles haviam caído. Continuou a limpar, a passar a escova, muito mais, vendo o vermelho das gengivas e imaginando o vermelho sujo de dentro, fluindo pelas pernas uma vez ao mês. Esfregou até a hemorragia a devorar e passou a engolir o que podia do sangue que jorrava, até que, afogada num extremo, seca em outro, caiu no banheiro, encontrada horas depois, suave e leve.
Olho pra mim e penso como seria bom enlouquecer, enlouquecer suavemente, como quem mergulha num campo de flores, entre rosas muito abertas, sem espinhos, com espinhos, sem sentir. Há tanta beleza na minha desgraça.
Tenho dezenove e ainda creio no mundo. Apesar de tudo ainda creio no mundo. Esperar não me é, ainda, um problema. Mas penso no passado. Em vinte minutos, relembro o meu começo de tudo.
Encantei-me por viver vidas que nunca foram ou serão minhas. Aprendi a rezar e vi que isso era inútil, como inútil é tudo o que há de escrito, decorado e repetido no mundo. Aprendi que a desgraça é uma faca afiada em minhas mãos. Nunca a senti porque ela está virada para o mundo. Poderia virá-la para mim, mas vale a pena se ferir? Aprendi a contar a verdade e essa foi a grande forma de mentir.
Na dúvida, ou nas, prefiro não admirar o que se chama belo. Toda beleza extrema por si só basta. Qualquer forma de equilíbrio é suficiente como um eixo em torno de si. Gosto de formas caóticas, esquecidas, feias, que nascem nas ruas, brotam no lixo e afastam os olhos. Quem sabe a bagunça seja apenas a representação de uma ordem bela ao avesso?
Me pergunto numa preocupação existencial tola se a vontade de matar num é uma vontade de viver, dar vida, compartilhar, a grande autoajuda, a grande arte da ajuda.
Quero matar e isso é uma forma de morrer. Melhor é voar a dois, mas eu sempre vou me arrastar pelo mundo, deixando pedaços de mim pelo caminho.
Por que nos afastamos do que mais queremos, e vice em versa, o tempo todo? Medo e desejo, dor e prazer...
Mas, então, eu penso em você. Outra pessoa, outro momento, quem sabe sem eu ou você, ou sem você e só eu, ou só você sem qualquer vestígio de mim (existiria o mundo como é sem a minúsculas partículas (agrupadas) que me compoem?), a pessoa ou eu, quase pula.
Sinto me levado por uma maré pensanda por todos os homens e por nenhum e, por mais que meus passos respondam a meu cérebro e meu cérebro responda a minha vontade, falho. Eis a grande utopia.