Paulo Henriques Britto
Mas essa sensação é ilusória, pois esses vestígios não fazem mais parte de você: só podem ser ocupados provisoriamente, como uma roupa que se veste. Assim que se cansar desse jogo e se levantar da cadeira, você vai voltar a perdê-los: mais ainda, vai perder também uma pequena porção adicional de sua matéria, mais vestígios seus que vão ficar no ar, superpostos aos anteriores. Esses vestígios mais cedo ou mais tarde vão se dispersar, com o movimento constante de corpos no quarto, e se perder para sempre. Assim, você está constantemente largando camadas sucessivas de seu ser, desintegrando-se a cada instante de sua existência no espaço; e é por isso que você não é eterno, não pode ser eterno, pelo mesmo motivo que um lápis ou uma borracha não podem ser eternos.
Mas há uma maneira simples de alterar essa situação - quer dizer, não alterá-la objetivamente, o que seria impossível, e sim modificar o modo como você a vivencia (e como você só sabe das situações o que vivencia delas, para todos os fins práticos modificar sua percepção de uma situação é a mesma coisa que modificar a situação em si): basta sentar-se na cadeira, pegar um lápis e uma folha de papel, e começar a escrever.
BARCAROLA
eu e (você) andando
, de mãos emprestadas, quase pelas ruas,
sem olhar para cima nem pros lados nem pra frente,
porém em direção ao Futuro. Ou ao Eterno. Ou ainda ao Sublime.
Ou coisa que o valha, ou qualquer coisa
que não valha nada.
eu (e você)
, nós dois, na noite quase escura,
pulando pelos paralelepípedos da rua asfaltada
brincando de amarelinha sem linhas nem pedra,
saltando por cima das regras, sem ligar a mínima,
eu e “você”, sem fôlego, sem direção,
furando sinais, cruzando fora das faixas,
comprando coisas em lojas fechadas
na parte mais feia da cidade
temporariamente morta,
eu e “(você)”, sem tempo, sem horário, sem
pressa nem propósito,
cortando a vitrine com o diamante do anel que
estamos tentando roubar da vitrine
que estamos cortando
com o diamante do anel que ainda vamos roubar
, eu e quase você, bêbados, desbundados, tontos de sono,
prostrados na praia artificial
polindo na areia plástica
a pedra do anel que a gente ia roubar
contando as estrelas que o dia já apagou
vendo o sol nascer às avessas
esperando o barco.
- Ó, lá vem o barco!
O barco.
Nem tudo que tentei perdi. Restou
a intenção de ser alguém ou algo
que não se pode ser, mas só ter sido;
restou a tentação do nada, nunca
tão forte que vencesse esse meu medo
que é a coisa mais honesta que há em mim.
Sobrou também o hábito vadio
de me virar do avesso e esmiuçar
as emoções como quem espreme espinhas.
Mas nada disso dói; a dor é um ácido
que ao mesmo tempo que corrói consola,
é uma coceira que vem lá de dentro
e me destrói sem dignidade alguma.
os rios foram feitos pra fugir
cada um de sua própria condição
de ser líquido e linear; perene
e ao mesmo tempo efêmero; lírico
e econômico - pois que recurso natural-
único e múltiplo; imóvel, mas fluente
ou, simplesmente, fluvial-
mas por isso e felizmente
tão somente por isso
os rios foram feitos pra fugir,
fluir, não pra analisar
-nunca pra analisar!-
para fugir.
A consciência exata dessa insônia,
a forma certa desse modo, o gesto
seco que rejeita essa necessidade
abjeta de ser quem não se é-
a aceitação completa da vontade
insuportável de querer o que
se quer, a sede obscena de tragar
o copo junto com a bebida- coisas
tão simples, que só pedem a paciência
sábia dos que aprenderam a se aturar,
a santa complacência de quem lambe
as próprias chagas e aprecia o gosto-
não por requinte de nojo, mas só
por nunca haver provado outro sabor.
Uma vida inteira passada dentro dos confins de um corpo junto ao qual vem atrelada , a consciência , peso morto que acusa o golpe sofrido e cochicha ao pé do ouvido depois que o fato se deu : Nada que te pertence é teu .