Noémia de Sousa
Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos
quiseram cantar teus encantos
para elas só de mistérios profundos,
de delírios e feitiçarias...
Teus encantos profundos de Africa.
Mas não puderam.
Em seus formais e rendilhados cantos,
ausentes de emoção e sinceridade,
quedas-te longínqua, inatingível,
virgem de contactos mais fundos.
E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual,
jarra etrusca, exotismo tropical,
demência, atracção, crueldade,
animalidade, magia...
e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias.
Em seus formais cantos rendilhados
foste tudo, negra...
menos tu.
E ainda bem.
Ainda bem que nos deixaram a nós,
do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma,
sofrimento,
a glória única e sentida de te cantar
com emoção verdadeira e radical,
a glória comovida de te cantar, toda amassada,
moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE
A minha dor
Dói
a mesmíssima angústia
nas almas dos nossos corpos
perto e à distância.
E o preto que gritou
é a dor que se não vendeu
nem na hora do sol perdido
nos muros da cadeia.
Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço.
Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines,
viemos do outro lado da cidade
com nossos olhos espantados,
nossas almas trançadas,
nossos corpos submissos e escancarados.
De mãos ávidas e vazias,
de ancas bamboleantes lâmpadas vermelhas se acendendo,
de corações amarrados de repulsa,
descemos atraídas pelas luzes da cidade,
acenando convites aliciantes
como sinais luminosos na noite.
Viemos ...
Fugitivas dos telhados de zinco pingando cacimba,
do sem sabor do caril de amendoim quotidiano,
do doer espáduas todo o dia vergadas
sobre sedas que outras exibirão,
dos vestidos desbotados de chita,
da certeza terrível do dia de amanhã
retrato fiel do que passou,
sem uma pincelada verde forte
falando de esperança.
Súplica
Tirem-nos tudo,
mas deixem-nos a música!
Tirem-nos a terra em que nascemos,
onde crescemos
e onde descobrimos pela primeira vez
que o mundo é assim:
um labirinto de xadrez…
Tirem-nos a luz do sol que nos aquece,
a tua lírica de xingombela
nas noites mulatas
da selva moçambicana
(essa lua que nos semeou no coração
a poesia que encontramos na vida)
tirem-nos a palhota ̶ humilde cubata
onde vivemos e amamos,
tirem-nos a machamba que nos dá o pão,
tirem-nos o calor de lume
(que nos é quase tudo)
̶ mas não nos tirem a música!
Lição
Ensinaram-lhe na missão,
Quando era pequenino:
“Somos todos filhos de Deus; cada Homem
é irmão doutro Homem!”
Disseram-lhe isto na missão,
quando era pequenino.
Naturalmente,
ele não ficou sempre menino:
cresceu, aprendeu a contar e a ler
e começou a conhecer
melhor essa mulher vendida
̶ que é a vida
de todos os desgraçados.
E então, uma vez, inocentemente,
olhou para um Homem e disse “Irmão…”
Mas o Homem pálido fulminou-o duramente
com seus olhos cheios de ódio
e respondeu-lhe: “Negro”.
PORQUÊ
Por que é que as acácias de repente
floriram flores de sangue?
Por que é que as noites já não são calmas e doces,
por que são agora carregadas de electricidade
e longas, longas?
Ah, por que é que os negros já não gemem,
noite fora,
Por que é que os negros gritam,
gritam à luz do dia?
Canção Fraterna
Irmão negro de voz quente
o olhar magoado,
diz‑me:
Que séculos de escravidão
geraram tua voz dolente?
Quem pôs o mistério e a dor
em cada palavra tua?
E a humilde resignação
na tua triste canção?
Foi ávida? o desespero? o medo?
Diz‑me aqui, em segredo,
irmão negro.
Porque a tua canção é sofrimento
e a tua voz sentimento
e magia.
Há nela a nostalgia
da liberdade perdida,
a morte das emoções proibidas,
e a saudade de tudo que foi teu
e já não é.
Diz‑me, irmão negro,
Quem fez a vida assim…
Foi a vida? o desespero? o medo?
Mas mesmo encadeado, irmão,
que estranho feitiço o teu!
A tua voz dolente chorou
de dor e saudade,
gritou de escravidão e veio murmurar à minha em alma ferida
que a tua triste canção dorida
não é só tua, irmão de voz de veludo
e olhos de luar.
Veio, de manso murmurar
que a tua canção é minha