Mônica Árêas
A Bíblia sempre aberta. A Bíblia aberta na sala, fechada no coração. Aberta na sala, silente na mente. Visível ao visitante que chega, estranha ao que na casa habita todos os dias, por meses e anos... Empoeirada, amarelada, desbotada. Da rota página salta um número: 91. No canto superior da página, um nome: Salmo. Quando aprenderemos discernir fé de mágica?
NASCIMENTO E A MORTE, E SUAS COINCIDÊNCIAS
No dia do nascimento, a face do bebê é que define quem ele é e como ele é.
No dia da nossa morte, é o nosso rosto que nos define também. Inerte, somente o nosso rosto fica à mostra, pálido ou com certa cor, triste ou com ar de tranquilidade... É tudo que se busca em nós, no dia da nossa morte, o nosso rosto.
Flores são bem-vindas no dia do nascimento, flores adornam o dia do fim.
Pessoas nos visitam, na chegada. Pessoas nos visitam no dia do adeus.
Nossos olhos estão fechados quando chegamos ao mundo, não é diferente quando vamos embora dele.
Os que nos amam choram no primeiro dia. Os que nos amam choram na partida.
E se dói, ao respirarmos pela primeira vez, dói mais no dia final. Quando percebemos o ar faltando nos pulmões, dói no corpo e dói na alma.
Começamos e terminamos a vida sendo carregados.
Quantas coincidências ainda poderíamos elencar aqui? Muitas, se insistirmos em relacioná-las. No entanto, duas destacam-se por serem assombrosamente interessantes. Então, vejamos a primeira: do pó viemos e ao pó retornaremos, trazendo à tona um conceito de insignificância no início e no fim.
Agora, analisemos com minúcia: o pó nos constrói e nos desconstrói. Fora de qualquer convenção, o pó nos deixa desconfortáveis pela sensação de temporariedade, de finitude, de prazo de validade.
Que impacto insuportável e destrutivo seria essa coincidência em nós, não fosse existir outra, ainda mais surpreendente, que a neutralizasse. Falo da alma. Se somos corpo perecível, também somos alma vivente. A existência da alma é segunda coincidência de que falava. A mais bela de todas, ouso dizer.
Se o corpo frágil está no começo e no fim, a alma vivente está no começo, no fim e ultrapassa o fim. A grandeza da alma está em ser transcendente, seguir livre eternidade adentro. Enquanto o corpo nos aprisiona, a alma nos desencarcera.
Curiosamente, o nosso corpo começa sem forma no ventre materno, e disforme se revolve no ventre da terra, até desaparecer plenamente. Quando pensamos no corpo nos vemos um verme destituído de graça. Mas se olhamos para a alma, pelo contrário, elevamo-nos à compreensão do amor incondicional de Deus. Se o corpo é um pó desprezível, a nossa alma é o artigo de luxo, de valor inestimável, cuja essência está no hálito do próprio Deus que a soprou em nós e a fez existir. Braços e pernas e órgãos e todo resto que se diz corpo vieram do barro e ao barro retornam. Já a alma habita no corpo e dele se vai carregada no colo de Deus. O corpo é um ponto final e alma são as reticências.
Quando criança, quem já adormeceu no sofá da sala, e acordou na cama do seu quarto, compreende bem o corpo e a alma; o início e o fim; e todas as suas coincidências. Porque é assim o dia do nascimento e o dia da morte: no sofá, dormimos desajeitadamente, com o corpo torto e encolhido, descoberto e com frio, mas nos parece bom estarmos ali. Até que nosso pai nos pega no colo e nos leva à cama. Ele nos apoia na cama macia, nos cobre e sussurra palavras de carinho. Fecha as cortinas da janela, cuidadosamente, e o quarto fica à meia luz. O sono tranquilo toma conta de nós e os bons sonhos o adornam. O fato é que nos apegamos ao sofá. Deixar o corpo é como deixar o sofá da sala, aparentemente penoso. Não sairíamos dele se dependesse de nós mesmos. Então, Deus o fez perecível, como uma casa que vai ruindo até os escombros estarem todos no chão. Só então há liberdade para alma seguir o caminho de volta, feliz como a borboleta que acha o vão da janela e voa em direção ao sol.
E as coincidências? Arrisco-me a pensar que elas foram minuciosamente arrumadas aqui e ali, para que o homem se desapegasse do sofá e percebesse o conforto aprazível da cama. Mas a percepção é uma porta que podemos fechar dentro de nós, infelizmente. E é por negligenciarmos as evidências, que seguimos sofrendo com a iminência do ponto final, como se não houvesse alma, como se não houvesse reticências.
Amigos
Já passamos por tantos momentos juntos, que quem nos vê aqui sorrindo não pode nem imaginar. Boa parte não foi de risos, férias ou viagens, porque não se faz amigo em tempos assim. Amigo não nasce na zona de conforto. Reconhece-se amigo no fim de festa, quando todos se vão e ele fica pra recolher o lixo (e quantas vezes, né?)
Com amigo não se tem cerimônia, ele chega a qualquer hora sem avisar e poderá ver sua casa desarrumada sem que haja um pingo de constrangimento. E nada melhor que poder estar de alma despida diante dele, sabendo que vai te olhar com compaixão, embora não deixe de dizer as verdades que você precisa ouvir.
Então, como não ser grato ao amigo? Como não tê-lo dentro do coração? E, ainda assim, saber que não seria o suficiente, porque ficar longe de um amigo dói tanto que a gente quer mesmo é tê-lo ao alcance dos olhos.
Por tudo isso, deixar um amigo partir, (ou você partir deixando-o para trás) é uma das maiores burrices dessa vida. Se quem encontra um amigo, encontra um tesouro, pode responder o que seria perdê-lo?
EU PASSARINHO
Desolada, sofre o pobre ser.
A dor teima e queima devagar aquela alma.
O sofrimento adentra os sonhos e os desarruma,
De novo, impregna-lhe as narinas, quando já é dia.
E assim, como num vício, a tristeza a acompanha pela repetição enfadonha das horas.
De longe, assiste tudo o amor amigo.
Pensa: é dor de amor apaixonado, é dor de perda, é dor de luto, é dor...seja que dor for, ele conclui, é grande a dor.
Não há o que fazer, reflete consigo consternado.
Já se ía dando as costas, quando resolveu voltar.
Nada tendo o que dizer, sorriu encabulado.
Estendeu os braços e a abraçou bem apertado.
O ser sofrido chorou...chorou...chorou.
Enquanto isso, o abraço amigo a envolvia mais e mais e mais.
Na esperança que não lhe esvaísse a vida, permaneceu o amigo ali parado.
Sem dar conta das horas, pode perceber qdo ela aprumou a fronte.
O que viu foi um rostinho amassado, olhos vermelhos em semblante pálido.
Porém, tudo parecia mais leve agora.
Na boca trêmula do serzinho envergonhado, um ensaio de sorriso. A voz dócil, quase inaudível, deixa escapar, com dificuldade, um muito obrigada bastante atrapalhado.
Despediu-se o amor amigo e se foi.
Naquela noite, ela adormece tranquila.
Sonha com braços lhe envolvendo os ombros.
Protegida naquele abraço, vê um casulo que se rompe numa linda borboleta multicolorida.
A borboleta ganha o céu.
Seus olhos... distraídos... acompanham o vôo do bichinho, enquanto seu corpo se aninha naquele abraço afetuoso.
De repente, a voz a chama pelo nome e diz: --Aquela borboleta é vc.
Ela sequer estranha a afirmativa. De fato, aquele abraço lhe fez voar.
-E vc, quem é? - Ela pergunta.
A voz responde:
-Sou quem te quer bem.
Então, a moça desmonta em desabafo:
- Estou tão decepcionada e com a alma aflita...Foi-se embora o meu amor.
-Quem ama, não abandona. Nunca foste por ele amada - argumenta a voz com convicção.
Percebendo que os braços se distanciam, a menina se desespera.
-Não me deixe vc tbm. Como poderei ter de novo esta sensação tão boa do seu calor? Onde poderei sentir novamente esse seu amor? - Ela pergunta ansiosa.
Já longe, mas tão nítida, a voz revela:
_O meu amor nunca encontrarás em mil beijos apaixonados, mas sempre o terás em um abraço amigo.
O serzinho acordou radiante, sonhou algo, mas não lembrava o quê. Apenas sentia-se amada naquela manhã.
O coração estava aquecido por um calor diferente, não lhe parecia passageiro, como das outras vezes.
De repente, se viu cantarolando uma música que nem é do seu tempo:.. são as águas de março, fechando o verão, é promessa de vida no seu coração…
Ao longo da manhã, vieram à lembrança flashes do sonho que teve. Eram partes desconexas de um todo que não conseguia juntar. Acha que sonhou com uma borboleta colorida. E sonhou com a voz firme, disso tinha certeza. Dizia algo belo e importante. Mas o quê? O quê???
Como se busca uma fresta de luz em túnel escuro, ela franzia a testa e forçava a memória. Percorria alucinada o tempo num giro anti horário, para reviver a sensação do melhor sonho de sua vida. Até que…pufttt...um clarão eclodiu na desejada anamnese. Lembrou, enfim. A voz era um amor amigo!
Naquela manhã, descobriu quanto tempo perdemos, insistindo em pessoas, situações ou coisas que só nos abrem feridas. Quantos braços e abraços são cárceres...Contudo, o mais interessante foi descobrir que somos nós quem nos aprisionamos ali e, não, o outro, porque é nossa a escolha de permanecer.
Já o calor de quem ama de verdade é diferente, não queima, não arde. É um bem-querer comprometido, em cujos braços vc se sente protegido, no aconchego de um abraço que só lhe traz a paz. Um abraço tão apertado e ao mesmo tempo tão libertador, do tipo que te permite voar, ir e voltar, para sentir de novo, e mais uma vez, e novamente, e sempre, o mesmo amor. É um abraço de um amor respeitoso, que considera o que você quer e quem você é, considera a sua forma e admira o colorido das suas asas.
Já o amor apaixonado é criatura efêmera, é intenso e louco, porém tão raso. Por ser quente e voraz, está sempre sedento de mais e mais calor. Nada nunca o satisfaz. E no êxtase dessa busca, ele se auto consome, se dissipa e morre, deixando um rastro de decepção por onde passa.
Então a menina, enriquecida em suas reflexões, antes mesmo de tomar o café da manhã, passou a mão no celular e ligou para o amor amigo:
-Quer almoçar comigo hj?
O rapaz aceita prontamente, mas percebe q a moça está diferente, tem vida na sua voz. Por curiosidade pergunta:
-O que deu em vc para se lembrar de mim?
Ela riu:
-É que, acredite vc ou não, dormindo, eu acordei!
Enfim, a vida é mesmo assim, nem tudo que reluz é ouro, já diziam nossos avós. Uma hora a gente acorda e reconhece o a(braço) certo.
Num diálogo à moda Mario Quintana, diria o amor amigo ao rival apaixonado (numa gargalhada que beira a vingança):
Vc passará e EU PASSARINHO!!!
Mônica Arêas