Marta Chaves
Poderia praticar esta forma de vida
que me assenta melhor do que a minha.
Quero dizer
é dentro da cabeça
e fora da minha vida
que me sinto menos só.
Poderia ficar aqui algum tempo
deslocando a cadeira
para acompanhar a trajectória do sol.
Não o faço.
Abro a porta que dá para a casa
e deixo devoluta a vida
imaginária no jardim.
Preferia não saber das ruas
onde posso desfazer-me do desejo.
Ir ao encontro das estátuas
para me refazer do medo.
A noite é pequena e cabe
num gesto atirado ao ar
quando se parte sem olhar para trás,
nem necessidade de confirmar amor algum.
Tirei tudo dos bolsos.
Toquei o rosto para sentir a temperatura.
Não estou morta nem vou morrer.
De regresso a casa, a única certeza:
que a manhã virá para reflectir a palidez,
a habitual dificuldade em existir cedo.
Chego ao campo e encontro
a transparência que me arrebata.
A paisagem sonora nada interrompe,
propaga-se pelo ar e regressa em eco.
O dia finda na debandada dos pássaros.
Durante a noite o fogo alimenta-me.
O vinho e a madeira dilatam,
indiferentes à estação.
Deitada na cama não me falta o ar.
Do céu vê-se a casa,
na casa o quarto,
dentro dele, eu.
ÚLTIMA HORA
Sempre tive o pressentimento
de que morreria alvejada
por uma bala perdida.
Aconteceu hoje numa cidade
onde nem sequer estava,
num tiroteio que não vi.