Mário Silveira
AMIGOS...
Que não haja tempo, distância ou barreira que nos afaste
da lembrança dos vãos (e tão bons) momentos...
Penso que a vida resuma-se absurdamente no hoje, no agora.
Vejo o amanhã ou mesmo o "daqui a pouco" como algo totalmente incerto,
e mais, digo, sem medo, que o que vier, d'agora em diante, é lucro! (...)
Talvez eu seja louco por não seguir roteiros e não traçar tantos planos,
mas eu tenho lá uma meia dúzia de sonhos e viver é o mais importantes deles...
Amigos, meus (idiotas) queridos,
saibam que muito me basta tê-los comigo,
tenho certeza de estar completo quando lembro
que rimos juntos das nossas próprias palhaçadas
ou quando rasgamos as cordas do violão
na tentativa de fazer um acorde que sempre soa estranho...
Digo sempre que ser feliz é muito simples, e bobo!
Ser feliz, é simplesmente ter amigos!
...Quão bom é saber que mesmo nem sempre juntos tenho comigo vocês,
anjos bons - demônios barulhentos!
Quão bom saber que não preciso conhecê-los desde o princípio dos tempos,
pois não se forma amizade cronometrando o tempo,
se faz amigo estando junto, batendo, brigando e essencialmente; "sendo".
- Obrigado por existirem!
"Há pedaços meus, extraídos. Há em todos, um eu, em vocês, meus amigos."
Criança crescida
"Deixei de ser ingênuo, aprendi a desacreditar de papais noéis e lobos maus, descobri quão nojenta era a história da cegonha que mamãe contava que me trouxera... Ora, tão logo cresci... E como cresci... Parei de roubar o açúcar, hoje, ajudo a comprá-lo. Vejo que sou grande, que não tenho mais de meus pais tanto afago, mas noto nas calejadas mãos deles o quanto deixei marcas e o quanto custei (e custo)sendo filho... É, o tempo realmente não espera por nada nem ninguém, ele passa!
Me sinto bem por estar crescido e por crescer cada dia... Me sinto bem por saber o valor que a vida e as pessoas têm, me sinto bem por me conhecer e saber que inda não sou tão homem que não tenha em mim desejos bobos de uma criança travessa e atrapalhada, mas também não tão menino que não enxergue que já carrego dores de gente grande."
A Pedra
Ofereço esta pedra a todas as pessoas que escrevem suas histórias n'areia, para que escrevendo nela, nem o vento, nem a chuva, nem a mais turbulenta onda do mar possam apagá-las. Ofereço também aos que têm sede de julgamento para que atirem-na contra a própria testa tendo consciência que nem mesmo o mais sensato juiz é isento de erros. Ofereço-a ao fraco, para que a exemplo dela, tenha força, firmeza e solidificação. Ofereço-a também ao forte, para que lembre que fora com esta, quem um dia, Davi matara Golias. Ofereço-a, ao caminho, para que não haja a facilidade de se chegar sem antes vencerem os obstáculos. Ofereço esta pedra ao pobre, para que veja que tem a primeira peça para construiu um castelo. Ofereço-a ao apressado, para que nela tropece e saiba entender que devagar se vai mais longe. Ofereço-a aos que têm coração rochoso, para que veja que dali não sai, não entra, não cresce, não muda e não floresce nada, nem ninguém. Por fim, ofereço esta pedra a todos os homens e mulheres, para que entendam que somos tal qual, podendo edificar um castelo ou desmoronar um homem. Ofereço-a, assim, pra que compreendam que como ela, viemos do pó, e ainda como ela, a ele retornaremos.
"Eu me chamo Antônio."
Eu me chamo Antônio e vivo pelas beiras das calçadas. Tenho olhares tristes de alguém que perdeu um futuro e mal sabe se acorda amanhã. Eu me chamo Antônio e mendigo centavos quaisquer, roubo restos de comida que distraiam minha fome e à tardinha procuro um papelão que me cubra ao frio nesta cidade escura e silenciada pelas noites longas. Me chamo Antônio e maquio minhas dores, maquinando roubar sorrisos de pessoas que são felizes e não sabem disso. Me chamo Antônio e sou um velho palhaço triste em busca do sonho bobo de viver, porque até hoje apenas existi. Me chamo Antônio e sou apenas mais um neste mundo de hipócritas, sou só mais uma realidade desprezada pela sociedade e contada nos índices tristes das enquetes dos jornais deste país de Antônios. De antônimos. Me chamo Antônio e sou fome, pobreza e solidão... sou só mais um pidão de esquina. Peço moedas, peço sorrisos ou alguém que me estenda as mãos. Peço abraços, olhares ou atenção. Moço, eu me chamo Antônio e já levei muitos nãos! Já supliquei subempregos e já pulei os muros da escola só pra saber como era estar lá dentro e o que era “ter educação”. Eu já chorei por dentro rindo pra fora e já me dei conta do que viver é. Me chamo Antônio e vivo assim, vestido em trapos e maquiado de palhaço, causando risadas largas nem que pra isso tenha de rir da minha própria desgraça. Pois é, pois bem... Muito prazer, eu me chamo Antônio e sou mais um avesso que a vida fez. Eu me chamo Antônio e sou o antônimo dos sonhos que o mundo tem.
Nada jamais aconteceu no passado, aconteceu no Agora. Nada jamais irá acontecer no futuro, acontecerá no Agora. Enquanto não percebermos esta prisão no hoje da qual somos escravos eternizados, não conseguiremos ser felizes. Culpar um ontem ou empurrar os desejos para um amanhã é tão inútil quanto vago. O que vale, de fato, é este instante, e se pararmos pra pensar, mais fazemos nada do que qualquer outra coisa.
Se ela existe eu mal sei,
certo é que não a vi.
Se for sabor não provei,
se cheiro não cheirei,
se ela existir, não senti.
Estou aprendendo a ser. Tenho me feito, às migalhas. Confesso que isso tem me retirado um pouco do submundo, do ridículo das sobras humanas. Não que a companhia das estrelas me seja ruim, mas elas sempre somem ao dia e em algumas noites dormem mais cedo enquanto se enrolam de nuvens. Me deixam só. E eu quero algo que não me deixe sempre. Que não me deixe nunca.
Fiz-me estrada e não caminharam em mim,
fiz-me vinho e não beberam,
fiz-me música e não me ouviram,
fiz-me vida e me mataram...
Vivi, assim, menos, menos mesmo que a metade da felicidade
e talvez seja certo que tenha provado do dobro da desventura.
Há uma vela que tem por sina findar-se.
Há um pavio, que tem por fado, queimar-se.
- vulneráveis ao fogo, que inflama!
Em plena dor, em chama!
Pelo tempo consumida;
vida, vida, vida, vida!
Pobre múmia exaltada. Ao descanso, nem nota seu valor ganhado. Por que é preciso morrer para ter significado?
Dar-te-ei uma flor. Singela, mas formosa. Intensa, mas mortal. Junto à ela, acorrentado, meu amor, e como ela, escravizado; pelo tempo - que não eterno -, pelos espinhos, adornado.
Só agora vejo que o Mundo não me cabe,
que não me ajusto e que não tem jeito.
O jeito do Mundo é um mundo sem jeito,
eu bem tento, aceitar e ser aceito,
mas a alma não deixa que eu seja mudo
e o Mundo não se ajusta ao meu jeito.
Meu coração o Mundo não quis
e meu mundo por isso emudeceu.
Eu não sou do jeito do Mundo
e por não ser dono de tudo
o Mundo também não é meu.
É,
O Tempo muda o Mundo,
o molda,
o trai
e eu inútil,
vejo mudo o Mundo e o Tempo
e o quanto de mim, neles sai.
É, o Mundo está sem jeito,
ou de um jeito que já ninguém quer mais!
O Mundo precisa de mim
o mundo precisa de nós,
O mundo precisa de Paz!
NOSSO RÉVEILLON
Permita-me lhe escrever, antes que se finde o velho,
uns versos meio tortos para um
novo ano.
O que terei eu a dizer
senão que é tudo tão novo,
e que eu te ano e te ano?!
Não esqueça, por favor,
e não exclua, meu amor,
este velho - que tão logo morrerá em champanhes -
para dar vida a um novo. (Em branco!)
Vamos dar pausa no hoje,
e brindar juntos o novo
que somos nós.
Por que esperar um futuro se ele ainda é nada?
O nosso novo tá aqui,
na Lua,
na calçada.
Nosso Réveillon é todo dia,
e o branco que a gente veste
é por dentro, é nossa festa,
nosso circo,
nossa alegria.
V e m a m o r, n ã o f i q u e n u n c a a s s i m l o n g e . . .
colaemmim!
Fica comigo e faz tardar para sempre este 'amo'
Por que, não minto, é muito.
Este amo, amor, é até o todo,
Por que te ano para sempre
e o nosso sempre é sempre novo!
As palavras não têm valores únicos ou universais. Nem os sorrisos. Há quem diga que ama proferindo um eu te odeio ou quem odeie dizendo o inverso disso. Há quem ria pra alegrar o dia de alguém ou quem o faça para destruí-lo. Palavras e sorrisos são caminhos. Pessoas, são guias nesses caminhos. Problema é que pessoas amem objetos e usem gente. Problema é que façam mera e insignificantemente o que lhes apetece ao ego. E só. Parece que ninguém sabe mais a diferença, aquela sutil diferença entre preço e valor. Parece que ninguém descobre a graça de estar. Más palavras e más sorrisos são como águas do mar. Não matam a sede de quem sente, avançam sem pena e desmoronam aqueles pequenos castelos de areia de criancinhas sonhosas que sem saber e querer, avançam os limites de uma margem invisível.
ALGO SOBRE A SAUDADE
Saudade é o que se sente - lá - no escuro
quando a última luz se apaga triste.
Saudade é não ter algo que existe,
é sentir n'alma só, um vão murmuro.
Saudade é um perder-se só, consigo.
Saudade é um ir nu que não vai tudo
Porque fica por dentro, fica mudo.
Saudade é não ter-te cá, mas comigo.
Que sangre o arrebol das tardes findas
e jorrem do lembrar lágrimas frias;
É sinal de saudade que quer vindas.
E cante eu cá saudade, dor, lamento,
e cante tu, vontades de regresso,
Cantaremos nós, pois, os bons momentos.
SORRIA PALHAÇO, SÓ RIA!
Viche Palhaço,
a maquiagem borrou num respingo de lágrima.
Hoje a dor transcendeu o banco do camarim,
O que houve, Palhaço?
Viche Palhaço,
As cores vivas que lhe vestem hoje
desaparecem perante a alma mendiga.
Hoje suas tintas dão-lhe outra cor
Que cor é essa, Palhaço, que dor?
Viche Palhaço,
Você, tão feito de sonhos
Parece imerso no avesso do riso.
Que rio é esse, Palhaço, que não lhe riu?
Viche Palhaço,
Seu nariz vermelho tá torto,
sua tinta desbotada quão folha a secar.
Que cara é essa Palhaço, de noite escura?
Que você tem, Palhaço?
E o que não tem?
Suas lágrimas sangram hoje não só por dentro.
Ê, meu Palhaço, o circo lotado não lhe preenche os vazios.
Ô, meu Palhaço, o riso desgastado lhe parece cansar os músculos da face...
Ah, meu querido Palhaço, quem, por trás da cortina entre palco e real roubou se astral?
Foi o dia? Foi a lua?
Ele hoje é seu. Ela hoje é sua.
Se ajeite Palhaço.
Sorria. Só ria!
Daqui a pouco as cortinas se abre e o show recomeça.
Daqui a pouco a pipoca pulada, as tantas risadas, os pais, os filhos, a rua, chegam todos pra lhe ver.
Pra rir de você,
pra rir com você.
Levanta Palhaço, ainda que a dor lhe aborreça,
a esperança adoeça e angústia lhe pare, não esqueça;
a vida ainda continua.
O POVO
O Povo
O Povo,
cego, surdo, mudo,
nada.
Nada aos lás e cás,
aos gozos e ais,
aos fundos e rasos,
aos menos ou mais.
O Povo,
ópio de si,
glória de outrem,
mora imerso no Mar.
Alheio à praia lotada,
perde a festa, o pulo, a luarada.
- O resto dança.
O Povo nada.
Partiram, os Tiranos,
o Povo.
Deram-lhe anéis quantos fossem os seus braços,
e tiraram-lhe a força, (o abraço)
Tiraram-lhe à força pro “regaço”.
Pobre Povo,
dos Pescadores Tiranos da Praia
Partido no Talher da jogada:
eles tirando muito
e o Povo, Tadinho, virando nada.
...
Lá, mundo de muitos mudos,
Mundo de muitos tudo,
mundo de tantos nada.
Cá, pobres obras paradas,
cofres empobrecidos
e uma hierarquia encravada:
Eles com todo o tudo,
E o povo, contudo, nada.
SE EU MORRER AMANHÃ.
Se eu morrer amanhã, por favor, não leve-me flores. Você teve uma vida inteira para isso. Também não chore de saudade, não se não tiver me buscado verdadeiramente enquanto podia. Se eu morrer amanhã, peço: não se arrependa de não ter me dito tudo que queria enquanto meus ouvidos eram algo que não pó. Se eu morrer amanhã - suplico -, não toque minhas mãos frias, não se nunca as tiver sentido quentes. Se eu morrer amanhã não pense em como seria se eu estivesse vivo, pois eu já estive. E passou. Se eu morrer amanhã, por favor, não diga que me ama, nem que "fui" importante. Eu já não ouvirei isso. Chore, apenas se eu lhe tiver sido bom, mas não chore se não tiver sido comigo. Leia algo meu se bater saudade, mas não leia se nunca tiver lido. Veja fotos minhas se isso fizer bem à lembrança, mas não se arrependa de nunca ter pousado junto a mim. Se eu morrer amanhã, não enlute, não se não tiver lutado comigo. Se eu morrer amanhã, não se surpreenda, morte é consequência de estar vivo. Se, por acaso, eu morrer amanhã, não olhe profundo para mim - dormido eternamente -, mas lembre-se do meu derradeiro olhar, do meu sorriso e das coisas (boas ou ruins) que eu fiz, para, por e com você. Se eu morrer amanhã, lhe peço, não me queira ver, não me queira escrever, não me queira despedir... mas só aceite, só respeite a ideia de que serei silêncio profundo, lembranças doídas e pó eterno e entenda que o que fora feito, dito ou vivido estará trancafiado num tempo chamado passado que debruça-se pouco a pouco no esquecimento e que já não flui, não volta, não muda, não vive, não vê.
Se a lua nossa desce o canto no alpendre
eu sobre o som daquela noite triste
escorro em prantos - uma dor que existe -
a melodia que me sai do ventre.
Canto a certeza de só ter em mente
O que nos braços o desejo clama.
Há dor maior que essa, de quem ama,
que emudece o ato que se sente?
DOR DE POETA, DOR DE PALHAÇO
Eu amo ao ponto de me dar ao sim,
de me vestir de ais, de ser o nunca,
o todo, o meio, começo... enfim.
Eu amo ao tanto que não cabe em mim,
Sonho o instante que não chega; junca.
Meço o começo, mas o que tenho é fim.
In Feliz Cidade...
Se ela existe eu mal sei,
certo é que não a vi.
Se for sabor não provei,
se cheiro não cheirei,
se ela existir, não senti.
Onde está a Felicidade?
Mas, quem é essa afinal?
Procurei na cidade,
na prisão, liberdade...
ninguém sabe da tal.
Achei que a visse no mar...
só vi brisa e beleza.
Não sei onde ela está.
Se num circo ou num bar,
n'alegria ou tristeza.
De verdade, me cansei
e desfiz sonhos de outrora.
Se até então não achei,
ou se achá-la eu irei,
o certo é que vou embora.
Vou buscar ao menos o eu
que mal sabe onde está,
quero ao menos o que é meu
estou indo pro breu
quiçá eu me ache por lá.
Amor solzinho
O meu amor é solzinho
nascente e poente constante.
seis da manhã ele arde
seis da tarde ele arte
pra ser da noite seu antes.
Se eu posso dizê-lo, como?
um Poço dentro mim.
O amor às vezes passa.
O amor às vezes posse.
O amor às vezes Fim.
Eu no céu, solzinho,
eu sozinho em mim.
Sou meu próprio amor,
avesso de minha dor,
serei feliz assim?
PRA NÃO MORRER DE SILÊNCIO
Escrevo um poema como um cristão confessa-se ao vigário:
perdoem-me.
Porque não sou demasiadamente bom
e tenho medo.
Escrevo um poema como quem se trai no espelho
- e que se vê aflito -
a sentir a fome do mundo no peito.
Por que alguém haveria de ler
a loucura e o desleixo?
Escrevo um poema como quem grita:
"Socorro!!! Tem um bicho de baixo da minha cama"
e sozinho no meio da noite,
apenas tem a insônia para dialogar.
Escrevo um poema como voa um pássaro
que depois de tanta liberdade
canta no ninho sua solidão.
Escrevo um poema como um vigia espera a aurora.
Escrevo um poema como quem nasce,
e de nada pode vir a saber sobre si ou sobre algo
na imundice do pátio da vida.
Escrevo um poema como quem suicida;
e deixa sua angústia a flutuar por sobre o mundo.
Escrevo um poema como um velho contempla o pôr-do-sol
e se vê entardecendo ciclo após ciclo.
Escrevo um poema como uma mãe diz
"não tenho fome"
e dá ao seu filho o melhor pedaço de carne
Escrevo um poema como um bêbado se equilibra
como uma noite desce
como um livro guarda
como um amor cuida
como um louco pensa.
Escrevo um poema como uma criança diz "eu te amo"
quando na verdade nem sabe que diabos é amor.
Escrevo um poema como um coração se contrái
como o olho enxerga e dorme
como uma mão acaricia e bate
como um doente vomita seu mal.
Escrevo um poema como uma mulher pare uma dádiva
ou aborta uma desgraça.
Escrevo um poema como um cão descobre seu fim
e afastado de seu amado dono, perece triste.
E ninguém vê, nem espera, nem sabe.
porque quando vê já não é mais útil,
porque quando espera já não há mais tempo
porque quando sabe já não é mais hora.
Apenas escrevo um poema...
Uma dor...
uma chegança...
um começo...
Depois de um certo tempo
Depois de um certo tempo não se diz mais, "meu amigo!", porque tudo quanto era novo tornou-se tão comum que chega a ser trivial qualquer que seja o gesto. Depois de um certo tempo as alegrias não se dispõem mais tão fáceis, porque tudo quanto era riso já foi tão rido que agora a graça das coisas já se tem perdido por aí, ensossa, no meio do que é real. Depois de um certo tempo, é verdade, tudo murcha exacerbadamente. Como que os sentimentos tivessem células e que elas envelhecessem junto com nossa pele. É como se caducassem os sentimentos. E então tudo se dissipa, no que era verbo se vê silêncio, no que se admirava se negligencia, no que era afeto se vê pedra. Pedra, daquelas que não se junta por inutilidade, nem se senta, nem se chuta, nem se vê. Pedra. Como aquelas à beira da estrada, que só são colhidas por quem as quer atirar, tão somente pelo peso que elas têm. Venhamos a convir, depois de um certo tempo, quando se conhece, quando é possível enxergar além da ponta do iceberg, quando o outro se desfia em sua própria verdade, quanto se torna transparente as limitações, fragilidades, as mazelas interiores, quando o que há é um outro eu todo perfurado, é então que se sabe o que é um amigo ou que se percebe se ele existe ou não. Depois de um certo tempo, tudo o que há são queixas aos buracos do outro, mas, já não se os propõe tapar. Depois de um certo tempo, o não-eu [o amigo?], aquele a quem às expectativas se frustraram, torna-se plutão. É, assim, depois de um certo tempo, que se sai da superfície a qual todos parecem viver. É reconhecendo o que há além da ponta do iceberg, e somente sob esta vista, que se pode julgar "amigo", porque esta não é palavra santa, nem pesa-lhe o sagrado, mas não se deveria pronunciar antes de um mergulho, um profundo mergulho. Porque é só depois de um certo tempo que percebemos que somos Narciso, que o que buscamos para as vezes é a nós mesmos, projetados no outro, dispostos, e quando damos conta que o outro é outro, saímos a procura de novos eus, expostos nas vitrines da vida. E contemplamos o raso espaço do pote, o nada de nós mesmos. É bem aí então que se desce um grande embrulho, um problema humano, uma incógnita existencial, é depois de um certo tempo, quando perdemos pelo fluir do mundo ou o pesar da morte, um grande amigo, que nos damos conta que gastamos tanto tempo condenando que não vivemos nada quanto fosse considerado verdadeiramente real. Depois de um bom tempo é que percebemos que podemos até ter um milhão de amigos, mas se não houver mergulho, se não houver profundidade, tudo quanto conhecemos é a superfície, que reflete, por ser água, um pouco da nossa própria imagem, mas não dispõe, ao mínimo que seja, de todo o grande mundo que é a Felicidade, ou ainda, a Verdade.
Depois de um certo tempo, até deus, de si pra si, morreria de solidão.
Onde estão os amigos?
Amor Plural
Uma flor, amanhã, eu sei, nascerá nos quintais onde os sonhos se afirmam no jamais.
Uma flor, amanhã, eu sei, brotará, da imensidão lembrança de tardes outonais.
[...] Nascerá lindo luar! E os sentidos se confraternizarão, ao som do violão.
Felicidade é encontrar na saudade do abraço o encontro da nossa paz.
Eu queria falar de amor... mas não do amor apenas vestido de palavras, queria falar do amor vestido.. de nuvens! Queria falar do amor comum, morno e normal, de sempre e de todos, do amor que nasce no gesto. Bem, eu queria falar do amor que não vem num cavalo branco, daquele amor que acontece, que é acontecência na vida, nos ciclos diários. Eu queria falar do amor que não existe na linguagem, mas no viver dos instantes... ou seja, o amor dos poetas calados. Esse amor humano, o amor substância do tempo no mundo, entende? Eu queria falar do amor sorriso, do amor lágrima, do amor saudade, do amor invisível... é, invisível! Que tolera o outro exatamente como ele é, desengonçado, esquecido, desajustado, esse amor que não está na gente e que só existe porque tentamos buscar de fora pra dentro, esse amor que deixa gente cheio e vazio ao mesmo tempo. Eu queria falar desse amor estúpido mesmo, de jogar pipoca no outro, de fazer piada sem pé, sem eixo. Esse amor que nos permite sentir o infinito e que tem ficado estreito num mundo tão aflito.
É como o cara que entrou no mar e caminhou tão pra frente, rumo ao horizonte, que nunca mais voltou. E quando se perguntam "cadê aquele cara que entrou no mar?" Todo mundo responde: "Foi o mais perto do horizonte que ele conseguiu."
É desse amor que eu queria falar!
A Maria, jardineira das flores do próprio túmulo.
Co'a lata na cabeça parte a moça,
(na estrada triste e torta ela se some)
que tem ela, Maria, senão força?
que tem ela, Maria se não nome?
A lata bate forte e se encerra
Um tambor ruge vulto no estombo
Mal se difere a moça e a terra.
Se entortece Maria e o seu lombo.
Enquanto pinga gota da lata
e gota até do corpo dela,
No chão vasto pisado nascem flores
Quando a noite cai co'a lua prata
E a morte desce rude em sentinela
morrem latas, Marias e amores.