Marcelo de Souza
FESTIM
Não tem salmão
atum azul
Gadus morhua
na santa ceia
deste poeta
esfomeado e patife
que chegue aos pés
do meu filé de sereia
que disfarçado em sardinha
trago contrabandeado
do doce mar do Recife.
ANTIMUSA
Com seus olhos de incrédulo voyeur, minha poesia,
Ávida, viu, menina, ao que passavas, tanta graça
Sorrir-se-lhe, que desde então, dia e noite, me arrelia,
Sempre em segredo pondo-se a esperar-te. E, por pirraça,
Impregna-me a lira de saudade e, em lenta agonia,
Até morre – ah, poesia mais caprichosa! -, se não passas.
AUTO DA DANAÇÃO
Já sob a densa treva sepultado
em minha sombria jornada rumo ao Érebo
com esses olhos em frangalhos
que a hora inexorável urge em comer
por Zeus (ou por Hades), eu hei de ver
minh’alma tão patética
enfim se rebelar
reivindicar seu salvo-conduto
seu direito de ir e vir
e arrancando, de profundis
do corpo inerte que já não habita,
um resquício de vida
num suspiro derradeiro
pela oca boca cadavérica inda atrevida
às margens do Aqueronte
desafiar da Morte o austero barqueiro
vociferando, prenhe de indignação
minhas póstumas palavras de ordem:
Ei, Caronte! Seu velho escroto!
Não pago um óbolo p’ra viajar nesse esgoto.
(*) Inspirado pelo Movimento Passe Livre.
MEA-CULPA
Quando eu enfim
desembarcar desta viagem -
pelo andar da carruagem,
bem sei, não tardo -
eis meu pesado fardo
de pesares
culpas
remorsos
arrependimentos:
não ter aprendido
a dirigir, nadar, dançar
tocar um instrumento
não deixar herdeiros
nem legado
(além de um punhado
de poemas inacabados
planos frustrados
sonhos interrompidos)
ter magoado fulana, que não merecia
ter ofendido beltrano, e não me desculpado
ter amado sicrana, sem ter sido amado…
Mas deveras
hei de partir de coração partido
só por te haver jurado
amor eterno, e não cumprido.
BATISMO DE FOGO
Entre porres de bourbon
e ressacas marinhas
delirium tremens
febres terçãs
vestígios de naufrágios
canteiros de martírios
salmos, epifanias
mosaicos de neon
preso em teu labirinto entre fortes
desde as maciças retas concretas
de tua carnadura urbana
às tenras curvas abstratas
de tuas coxas mundanas
dentro de ti – ai de mim! -, Copacabana
fiz meu rito de passagem
meu batismo de fogo:
fiz-me
homem
menino
poeta.
MENINA DOS MEUS OLHOS
Menina de olhos risonhos
de fada, de querubim,
meus olhos são tão tristonhos,
me ensina a sorrir assim.
Menina de olhos tão doces,
tão castanhos, tão profundos,
ah, quem me dera, se eu fosse
seu dono, por um segundo!
Menina de olhos aflitos,
perdoai, pelo amor de Deus,
se encaram-te assim, tão fitos,
meus negros olhos ateus:
já são devotos contritos,
de joelhos, aos pés dos teus.