Marcella Tavares Saraceni
A barca que me leva
Pelo mar de impermanência
É meu instinto de vida
O que me salva é querer estar muito viva
Para errar tanto quanto me for permitido
Que me tirem tudo
Estou agarrada até o último suspiro
Ao meu direito de amar e errar
Minha grande pretensão de vida:
Ser amor sem regras
Precisamos verbalizar tudo isso que a gente não sabe
Diz o recado na secretária
- Parece ser urgente
Se nossa verdadeira natureza é ser feliz
Por que as vezes parece que ser triste é mais fácil?
Ser feliz não é simples
Nada é simples
Mas a tristeza quando entra não encontra dificuldade
Sabe onde está o açúcar, o café e a saudade
Ja é de casa
A felicidade se atrasa
Porque esperamos por ela
A tristeza não é esperada
Não tem hora marcada
Se seu beijo tem gosto de mar
E minha língua é um barco que navega
Para onde vão nossos olhos
Enquanto as bocas passeiam?
A dor e o amor estão tão próximos
Que quase posso confundi-los
Dois felinos se acariciam
Sob o vento fresco da floresta
O tato tem na língua seus olhos
Mas ainda preferem mergulhar nas retinas
A mão passeia
Os dedos apertam a goela
Os dentes se revezam
Entre mordidas suaves e profundas
Peles se encostam
Vira de costas
Penetro você como quem conquista um país
Deliro ao ver teu rosto tomado pelo prazer
Tua boca que não fecha e pede mais
Me molho ao te sentir tão entregue
Nossos corpos tremem
Os movimentos criam a sinfonia
Te ataco como leoa à sua presa
Depois dou a lateral do rosto para o carinho
Quando os filhos do sol se encontram
É como uma explosão de luz
Se encaram firme frente aos olhos
E permanecem
Se penetram e ardem
Se misturam e inflamam
A matilha dos filhos do sol reluz
Cada célula vibra e os contornos se preenchem
A batalha pacifica dos filhos do sol
Só faz vencedores
Quase tudo é permitido
Acordos silenciosos que guardarão para sempre
Os segredos daqueles instantes
Ninguém no mundo terá conhecimento
Do arrepio desse lugar
Onde se tocam
Os quentes filhos do sol
Eu vivo em um eterno
Estado de poesia
Durmo com o sol
Acordo com o dia
Pela manha
Peço à tia da padaria:
- Me vê um sonho
A vida bate
A gente volta
A vida bate
A gente volta
A vida bate
A gente volta
A vida é uma mola
As vezes uma gaiola
A gente sendo passarinho
Abre a gaiola e vai fazer ninho
Avoa por todo lugar
Aterrisa onde se aprendeu a voar
Aí a vida mostra que a gaiola é a mente
A gente aprende
A voar sem hora
Para fora da gente
Até que a gente começa
A voar conforme o vento
A parar de contar tempo
A viver sem tanta pressa
A vida ensina
A hora que cada voo termina
As vezes acaba em rima
As vezes damos meia volta
A gente recomeça por onde solta
- A vida é uma mola
Quando fecho uma porta
Nao volto
Muitos dizem
Radical
Eu prefiro chamar
Superstição
Na duvida
Nao volto
Sei do imenso
Corredor
Que existe
E prefiro a incerteza
Do desconhecido
À certeza
Do que ja foi visto
Mudar o destino
Rasgar o roteiro
Sair pela janela
Deixar que a vela
Queime o pavio
Que a agua escorra
Até fazer barulho de ralo
Consumir tudo até o talo
E ainda que faça frio
Congelo
Nao volto ao passado aquecido
Sempre ouvi que deveríamos dizer “sim” para a vida
De lá para cá aceitei de um tudo:
Convites para aniversário de cachorro
Inauguração de prédios comerciais
Comidas com coentro
E presenças vazias
Sem mencionar que nada daquilo me apetecia
Quando decidi, um dia, caminhar na contramão
Decretaram proibida qualquer negação
Desde então reviro os olhos
Cruzo os braços, bato os pés
Giro a cabeça para a direita e esquerda
Faço o movimento de parabrisa com os dedos
Deixo o corpo imóvel, estatelado
E discordo sem o uso da palavra
Durante as frases ainda é difícil deixar de mencioná-la e corro o risco do exagero quando a
substituo por “jamais”, “negativo” ou “nunca”
Mas quando preciso verbalizar deixo que meu corpo fale e a carrego na testa.
Só é imperceptível para aqueles que querem ver
Coisas que preciso me desfazer na lata de lixo do pedágio:
Saquinho de amendoim, outro de polvilho,
Papel de comprovante bancário e um pacote de seda vazio
- Jogo antes que denunciem meus péssimos hábitos
Sem querer faço coisas
Que não sei se quero
Meu inconsciente não diz
Se é vero
Ou não é
Eu acho que é
Mas eu também me engano tanto
Que se não for
Não será um grande espanto
Certas coisas porém
Eu acho que sei
Não se confundem
Ficam gravadas na linguagem do corpo
E não se traduzem
Louca sem razão
Amante pagã
Sozinha sem lei
Eu não te peço nada
Nada
Além desse seu rostinho lindo
Desse sorriso abusado
Que me faz acreditar
Que as coisas boas sempre vem
Depois do meu embriagar
Sei que não sou o que sonhas
E nem quero ter esse fardo pesado
Meu bem, entenda
Eu não te peço nada
Além da tua presença
Para me fazer crer na beleza
E querer ficar sóbria
Para te observar
No entanto esse momento é tão passageiro
Essa coisa toda é tão fugaz
Que eu nem sei mais
E bebo para lembrar o que já esqueci
Na lua a gente se olha
E se sente
A gente conversa
E é compreendido
Ou acha que é
Olhei para a lua ontem
Procurando alguma coisa
Um ponto perdido
Uma resposta mal encaixada
Um porque
Ela nada me disse
Desconfio que se espantou comigo
Pois se empalideceu
Outro dia
Outra manhã
Olhei para o céu e lá estava ele
Quase me derruba com tanta energia
(((((( B A N H O D E S O L ))))))
Chovia respostas
Até para as perguntas
Que eu não conhecia
Folhear em câmera lenta
A poesia do teu corpo
Ler as notas de rodapé
Escondidas em tua virilha
- Recitar os versos vibrantes das tuas pernas trêmulas
Eu adoro me pegar desprevenida
Com o lápis na boca
E a vigília silenciosa
Pela palavra carregada no vento
Por vê-la brilhosa reluzir no céu
E encaixar nua
Confortavelmente
Nas linhas de ouro
Que criei para elas
Seguro um pedaço de pão pingando azeite sobre a folha
Olhando de cima para ela como se quisesse dar-lhe forma
Criar para ela um corpo
- Consigo visualizá-la -
Chupo os dedos e pego o lápis
Escrevo no papel com gota de gordura
Minhas palavras tem fome
- Elas não são light
Falo pouco por figuras de linguagem
Sou crua
Minhas palavras só conseguem ser literais
Aposto
Que meu oposto complementar
é Manoel de Barros