Lyani
Será que foi o som da vida?
Não saberia dizer, mas olhou pra fora, as mãos no vidro gelado da janela, os olhos atentos a qualquer simples movimento mágico que fazia tudo simplesmente continuar. Porque não importa o que aconteça, tudo continua, não é? Você pode estar sangrando, entregue ao seu último suspiro, mas lá fora o mundo continua. As pessoas dirigem seus carros, andam nas calçadas, trabalham, dormem, fazem amor. Foi exatamente assim que aconteceu.
Som de pneus cantando e uma voz assustada que dizia que o moço tinha sido atropelado. Ali do lado, bem embaixo dos olhos deles, na mesma avenida em que seguiam suas vidas. E foi mesmo: estava lá estirado no asfalto, com as pessoas aglomerando-se em volta. Mas foi rápido demais, logo já não podia mais divisar o corpo e tudo o que via através da janela era a vida em movimento, porque apesar do fato de o moço ter sido atropelado, a vida continua. E o ônibus continuou o seu caminho, levando-os pra fora da cidade, para o trabalho de todos os dias, para o cotidiano. A mesma estrada, o mesmo cenário, o mesmo tempo cinza de inverno.
Ficou se perguntando se talvez aquelas gotas finas de chuva que começaram a cair era o choro triste da vida por toda essa indiferença. Quis gritar que o moço tinha sido atropelado, mas passaria-se por louca. Todo mundo tinha visto e ouvido, com exceção de alguns que estavam dormindo envoltos apenas em seus próprios sonhos. Algo em seu estômago retorceu, doeu, incomodou. Como poderiam continuar a vida assim? O moço tinha sido atropelado. Estava lá, estirado, ainda vivo no chão, com dores, ou talvez até já morto.
Poderia ser filho de alguém que ao saber da notícia enterraria o rosto nas mãos com lágrimas inundando os olhos, ou ficaria em choque olhando o nada por um longo tempo e só choraria lágrimas silenciosas, quando visse o caixão baixando na terra. Poderia ser irmão de alguém que viesse correndo até seu corpo e gritasse aos quatro cantos que NÃO, não poderia ser verdade. Poderia ser pai de uma criança que viveria todos os demais dias de sua vida sem a figura de um pai, uma vida inteira modificada por um segundo de imprudência. Talvez tivesse um amor impossível, que no exato momento em que o acidente ocorrera, sentira uma dor esquisita no coração. Uma dor que lhe trouxera lágrimas aos olhos e alguém ao seu lado poderia questionar se estava tudo bem ao que ela responderia que só estava com um pressentimento ruim. Ou talvez tivesse uma esposa que no momento estava em casa dando café da manhã aos filhos, e quando descobrisse perderia o chão, o equilíbrio, desmaiaria.
Alguém em algum momento teria parado pra se perguntar o que ele estaria fazendo justamente ali, naquela avenida e naquele horário? Estaria indo para o trabalho? Ou comprar o pão para o café da manhã? Ou talvez estivesse indo à casa do seu amor impossível dizer que iriam se casar, pois não poderiam jamais viver separados. Ou indo visitar a mãe para dizer-lhe que a amava, ou talvez estivesse apenas andando depois de uma briga para espairecer?
Notou de repente e com espanto que nada disso importava a ninguém mais além das pessoas queridas relacionadas ao moço. Porque para todos os demais, a vida continua. ‘O moço foi atropelado’ foi só mais um acontecimento normal e comum nos dias de hoje em que estamos acostumados com a violência, acostumados com a morte, acostumados com sangue e dor e guerra. ‘O moço foi atropelado’ poderia ser também ‘Choveu ontem à noite’, ‘A rua foi interditada’, ‘Dizem que vai fazer sol no final de semana’. As reações são as mesmas. Apáticas. É o nosso cotidiano.