Lorena Contarini
A vida é um pouco parecida com um mergulho na parte que não bate sol em uma cachoeira, dói os ossos, mas purifica. A fina camada que separa o meu interno e externo não consegue conter o meu espirito, que se entrega a tudo aquilo que crê e acha belo. Mais atenta aos meus sentimentos, procuro sempre ser extremamente leal a mim mesma. Utilizando da minha liberdade, para me aprisionar a tudo aquilo que me faz sentir viva.
O dia que não aconteceu
Era mais um dia normal em sua vida, dentro do seu mundo, que até então, era um quintal de alguns hectares, seguindo uma rotina diária que ela não se lembra mais.
Se lembra do sentimento de segurança que esse seu mundo trazia, e mal sabia que com um toque ele iria se quebrar. Ela lembra também, de ter seguido parte da sua rotina diária neste dia, e de ter sido impedida de conclui-la, mesmo não sabendo exatamente qual foi. Lembra de estar escuro, do local exato, mas não se lembra da hora e nem do momento em que começou.
Apesar da memória embaralhada, ela ainda consegue descrever alguns detalhes, como o brinquedo na mão esquerda (que ela também não se lembra qual era) a sombra ao seu lado, na direita, da sombra sim, ela consegue se lembrar. Como ela poderia se esquecer da sombra? Além de ter sido tocada pela sombra algumas vezes, ela convivia com a sombra dentro daquele seu mundo de alguns hectares. Mundo esse, que já não era mais seguro.
Depois de ter sido impedida de concluir a sua rotina, ela se lembra de não entender o que tinha vivido e o porquê de a sombra ter decidido escurecer todo o seu mundo. Ela descobriu a escuridão que lhe foi forçada através da sombra, um tempo depois de ter sido contaminada. Mas ainda não tinha noção da dimensão.
Se lembra de acordar com a sensação de ter tido um pesadelo e foi convencida de que aquele dia não aconteceu. Foi um sonho ruim. Por muito tempo conviveu com o gosto amargo desse dia escuro, que não havia acontecido, mesmo sentindo a sensação real de estar contaminada.
O pesadelo voltava a aparecer para ela em alguns sonhos, por vezes com detalhes novos, outras reforçando algumas memórias. Mas não importava, ela precisava esquecer, não poderia falar desse sonho ruim com ninguém. Não entendia ainda, mas tinha a sensação de que se contasse, iria contaminar mais alguém com lembranças de um dia que não existiu. Ela precisava esquecer o pesadelo e encarar a sombra.
Por vezes, ela não conseguiu, revivia aqueles detalhes e sentia muito medo de olhar para sombra. Mas ainda assim, ela era obrigada a conviver com a sombra.
Tempo depois, ela tomou coragem de se aproximar novamente e viu de perto o quanto o mundo da sombra era obscuro e entendeu que não queria deixar que essa contaminação se espalhasse dentro dela, também não queria que o seu mundo fosse feio ou ainda que o mínimo possível, parecido com o da sombra.
Ela fez daquele pesadelo cicatriz, e apesar do quão doloroso ainda é olhar para a cicatriz, voltou a se sentir em casa dentro do seu mundo resumido em hectares. Teve a certeza de que a sombra foi condenada pelo tempo, a viver dentro desse pesadelo do dia que não aconteceu. Inverteram-se os papéis. Se fez indiferente ao ponto de sentir que agora é a sombra que sentia medo e insegurança ao lado dela.
O dia que não aconteceu, deixou marcas.
Minha mente não para. Sinto que tudo me atrai, mas nada me prende. Tudo me distrai. Minha mente não para. Acordo no meio da noite. O corpo dando sinais de que precisa se movimentar. A mente não dá sinal algum. Mantenho-me estática. Imóvel. Perdendo tempo. Tempo esse, que parece não mais existir para mim. Minha mente não para. No limite. Limite esse, que me vejo quase todos os dias indo ao seu encontro. Exaustão. Minha mente não para. Exaustivo. Todos os dias tem sido. Ao final deles, silêncio. Tudo quieto. Mas a minha mente, não para.
Isso é uma carta?
A minha forma preferida de expressão é a escrita, sempre achei que todas as outras me trouxessem inseguranças e incertezas. Talvez por isso, escrever seja a mais usual para mim. Ainda que ninguém leia, foi a forma que eu encontrei de entender melhor os meus sentimentos. Lidar com eles, nunca foi uma tarefa fácil.
E por falar neles, que são misturas, sensações, por vezes individuais, palpáveis, outras indecifráveis, e guardadas em lugares difíceis de acessar. Hoje, passando por alguns desses acessos difíceis que tenho em mim, e os apelidei de: "zona de perigo", existem várias portas que foram necessárias serem abertas e algumas outras que ainda venho abrindo, para ver e organizar o que tem dentro. Retirar coisas, colocar coisas, mas sempre com intuito de me conhecer cada vez mais e melhor.
No momento em que escrevo este texto, estou de frente para uma dessas portas. Uma, que eu ainda tenho relutado em abrir. Ignorei, algumas vezes fingia que não existia, outras que perdi a chave, qualquer desculpa válida para me manter longe ou para mantê-la ali. O fato é que, eu não tenho mais desculpas para usar e tem um barulho lá dentro que, vezes ou outra, é alto demais e acaba ressoando aqui fora. Entendo o medo que sinto em passar por ela e sei da sua presença lá dentro, isso me deixa inquieta. Aliás, você sempre me deixou inquieta. A porta ou o som alto que vem lá de dentro, são só sensações de tudo aquilo que eu já conheci, senti e fico me perguntando: se eu já sei o que tem lá, por que é tão difícil assim abrir? Eu também senti muito medo antes de abrir as outras (inclusive, algumas horríveis) por que essa me paralisa?
Enfim, não sei bem a resposta. Prefiro sempre usar desculpas. Só que o barulho tem ficado alto demais, e eu ultimamente tenho detestado muito barulho. Pois é, acho que é a idade. Meus lugares preferidos hoje em dia, são mais silenciosos do que costumavam ser. Desacelerei. E agora, tenho costume de falar mais do que antes e até tomo café, bem forte e sem açúcar. Novamente, acho que é a idade. Ando tendo dores no joelho também e para aliviar, uso uma pomada que chama “canela de velho”. Pois é, a idade.
Percebeu? Como mudei rápido o assunto, de novo? Pois é. Venho pensado sobre como seria entre nós, esse bate papo de "como vão as coisas, lembra de mim? Também já tem dores ou manias de velho?" Ainda que eu ache mecânico e parecidíssimas com receita de bolo todas essas perguntas, elas se fazem interessante, nesse caso.
Ainda me lembro de alguns detalhes. Os quais não faço ideia se ainda existem. Por exemplo, da sua forma de demonstrar afeto ser através do contato físico, das vezes que você ficava nervoso ou ansioso e começava a gaguejar algumas palavras. Lembro também, de como você me olhava de uma forma tão intensa, como se eu fosse alguma extraterrestre e isso fazia com que eu me sentisse especial, inquieta e especial. Recordo de me orgulhar e muitas vezes, me espelhar, na forma como você seguia os seus sonhos ou aquilo que acreditava. O problema do lembrar é que nem sempre “ele” nos traz só momentos bons.
Vivemos inúmeros e incontáveis momentos, juntos, separados, traumáticos, que afetava direta ou indiretamente a vida um do outro. As lembranças ficam, não todas, por serem incontáveis. Algumas a gente decide esquecer, outras somem e também tem aquelas que a gente esquece de esquecer.
Olhando para a porta fechada, me lembro do momento exato em que sai correndo por ela. E a tranquei, carregando uma mistura de sentimento. O primeiro deles, e o que mais me ajuda a pensar racionalmente, a raiva. Pois é. Eu odiei você. Precisei odiar. Para passar pela porta. Para voltar para mim. Ou pelo menos era o que eu achava. Em sequência, a tristeza. Seria ótimo se a gente não precisasse ter momentos tristes, né? Mas, sabemos o quanto a tristeza também tem a sua “beleza” e se faz necessária. Logo em seguida, raiva de novo. Só que dessa vez, senti raiva de mim mesma. A sensação de ter criado uma ilusão na minha própria cabeça e o sentimento inaceitável de ter me colocado ali, no parapeito. Sabendo que um dia eu poderia cair, ou você me empurrar.
Depois do turbilhão de sentimentos na saída, a porta fechada também me trouxe outras sensações, as quais, eu me permiti conviver até hoje. Dentre elas: indiferença e incerteza. Ao mesmo tempo, o alívio de que não me importava mais o que você achava, se você também sentiu tudo isso, ou não. Mas sim, a validez dos meus próprios sentimentos e somente eles me importavam. E depois disso, me afastei da porta, deixando lá dentro uma bagunça. Será que é dessa bagunça que eu tenho medo? Eu também odeio bagunça hoje em dia e me tornei metódica.
Entendo que o amor transmuta, transforma e bagunça a gente, mesmo aqueles que não gostam de bagunça. O que eu sentia era amor, puro, intenso, marcante, e foi se transformando a cada atitude tomada, por mim, ou por você. Mas, amor não é sempre amor? Amor acaba? Às vezes me pego pensando nestes questionamentos. Tenho a sensação de que nunca mais vou sentir nada com tamanha pureza, somente fragmentos desse sentimento que já conheci em sua forma inteira. A vida polui a gente, né? Mas ela também é legal e generosa, às vezes.
Hoje, eu venho tentado entender e respeitar o meu destino. Tudo aquilo que chega, o que fica e o que se vai. E mesmo ao lado de fora da porta que eu mesma fechei, consigo ter a certeza de que você é extremamente especial, fez e sempre fará parte de mim. Me pergunto se de fato existe a ligação espiritual, e se a mesma se encaixaria nesse caso. Me sinto ligada de alguma forma, e meu desejo é que você esteja sempre bem. E quando não estiver, que a dificuldade venha e passe logo te ensinando o que veio ensinar. Desejo também, que você esteja se conhecendo cada vez mais. Abrindo, organizando e fechando portas. E mais um dos meus desejos é que as suas não sejam, nem de longe, difíceis como as minhas.
Eu ainda não decidi se vou entrar, mas consegui descobrir enquanto escrevia, alguns dos meus receios em abrir a porta. Depois de organizada pode ser que ela suma, e o que preencheria o lugar dela? O que viria depois? Será que eu me esqueceria dos itens lembrados e citados aqui? Mais uma vez, não tenho respostas para essas perguntas. A minha única certeza, é a de que se não entrar, eu nunca vou saber. De fato, escrever me faz entender melhor o que eu sinto.
Andei lendo sobre uma expressão muito interessante e digna de tatuagem (por falar em tatuagem, eu ainda não tenho nenhuma). “AMOR FATI” segundo a filosofia, fala sobre amar o destino, não querer nada diferente do que é, nem no passado e nem no futuro. Aprender amar a vida, amar os fatos, os detalhes e os fardos, desfrutando do presente. E lendo sobre isso, entendi que os meus pensamentos são parecidos, e venho tentado colocar em prática o significado dessa expressão. Entrar por essa porta, pode ser considerada uma dessas práticas. Não ter mais medo de porta alguma, entender que a organização de todas elas se faz necessária. Aceitar e enxergar a bagunça já é um primeiro passo. Em sequência, aprender a lidar com que for encontrar dentro dela. É a beleza do destino.
Se cuida!
Sou esses olhos arregalados, a testa franzida que já criou marcas.
O riso que no início se faz tímido e em seguida se alarga.
Meu corpo em movimento apesar de sua preferência pela inércia.
Declínio, muitas vezes.
Necessidade de esconderijo.
Estar à margem.
Sombra e exílio.
Não querer se revelar.
Ou rebelar.
Me descrevo no silêncio.
Sou lugar comum.
Apesar de ser.
Ser já é demais.
desejo novas experiências. viagens. diferentes destinos. trocas sinceras. desejo tocar, no coração de quem passa pela minha vida. ser chão para quem precisar de um e ter um chão quando precisar também. desejo ser a minha melhor versão. arrancar sorrisos. desejo poder olhar de cima, de um lugar alto, o lugar que habito. pra sempre me lembrar do meu tamanho. desejo sentir o gosto do café e o abraço quentinho que ele proporciona. desejo calma. desejo reparar na ingenuidade de uma criança sempre que puder. pra me lembrar da importância da criança que habita em mim. desejo ser ouvidos. desejo sempre reparar no amor, toda vez em que achar que tudo está perdido. desejo nunca me esquecer de quem sou. desejo me amar. porque só assim sou capaz de amar alguém. desejo barulho de chuva e cheiro de terra molhada. desejo dias de sol. desejo o gosto de um vinho bom todas as vezes que eu precisar do conforto que ele proporciona. desejo resiliência. desejo desejar novos desejos.
Nova demais.
Velha demais.
Gorda demais.
Magra demais.
Natural demais.
Exagerada demais.
Ainda não chegou lá.
Trilhar o próprio caminho é desconfortável.
Escutar "seja você" sabendo que, por vezes, querem que eu seja o que esperam de mim.
As coisas mudam com o tempo.
O conforto de ser você nasce da necessidade de se descobrir.
O fato da vida ser imprevisível, faz com que tudo seja uma possibilidade. Aprender olhar desse ângulo é um exercício diário, que pode nos fazer enxergar que o próximo melhor momento das nossas vidas está lá, no imprevisível.
Essa sou eu. Alguns dias, costumo ser um desastre.
Uma bagunça. Deixo a procrastinação tomar conta de mim.
Eu penso demais. Fico presa em minha própria mente.
Em outros dias, eu sou incrível.
Essa é quem eu sou. Real.
Sou cheia de medos. Tenho minhas armaduras, que hoje são mais maleáveis. Para mim, arriscar, ainda que seja para correr atrás dos próprios sonhos é apavorante.
O que de fato me impulsiona a prosseguir, é a minha fé no universo e a certeza de que existe algum sentimento depois do medo. Quando me deparo com alguma situação desconfortável, primeiro eu sinto medo, e depois?
Acredito que essa força que impulsiona para desvendar o que existe após o "depois" e superar o medo do desconhecido, é a fé. Que surge de maneira sobrenatural, ou extremamente natural.
Apesar do medo, tenho me sentido mais segura. Sou curiosa. E sigo usando essa fé para me impulsionar e explorar o desconhecido. Sem certezas, o que torna tudo apavorantemente divertido.
Você me diz que o que é, já é. Mas dentro do que é, tem muita coisa.
O que é, é aquilo. Mas aquilo, ainda sim, nunca é efetivamente o que é.
Independente do que seja, encaro tudo da maneira mais simples e objetiva. Até porque, se encarar de outra maneira, vai contaminar tudo aquilo que está sendo com aquilo que já fui.
E caso haja algo que não seja aquilo que é, ou se mostra ser, conto com aquilo que já fui.
Em transcendência, para que me mostre que, as vezes
o que é, nem é.
Passei os últimos meses mergulhada em mim mesma. E descobri que quanto mais eu me conheço, mais eu me gosto. Toda essa liberdade que me permite transitar entre a expansão e a introspecção, fazem com que eu me escolha, sempre. Independente de qual seja a circunstancia.
Confesso, que ampliei também a minha fresta, para que eu me conheça também através da interação com o outro. Descobri até uma timidez e um mau jeito com as mãos enquanto conversa.
Essa Lorena, sempre foi de escutar mais do que falar. Mesmo hoje, falando um pouco mais, mantém os olhos calmos e os ouvidos atentos.
É uma loucura perceber que eu venho me tornado a pessoa que eu precisava ser pra mim mesma quando criança.
Com o passar dos dias e com inúmeras questões trabalhadas e superadas não sei quem se realiza mais, se é a Lorena criança ou a Lorena adulta. Ou se de alguma maneira alimentar uma significa também alimentar a outra.
Quanto mais amadureço, mais percebo o quanto ainda sei muito pouco sobre a vida. Isso tem feito com que eu me divirta mais, principalmente nas atividades mais simples do meu dia a dia e na convivência com as pessoas que amo.
É como se todo dia pela manhã, a Lorena adulta desse as mãos para Lorena criança e seguisse com os seus afazeres e lazeres. E nas atividades mais simples, como ir ao mercado comprar um item que falta na cozinha, por exemplo, refletir durante o percurso sobre quão louco é estarmos nesse mundo em movimento.
Talvez tudo isso seja parte de ser adulto. Independência e responsabilidades que nos trazem segurança para desenvolver e aperfeiçoar os nossos sonhos e vontades de criança.