Lima Barreto
É mais decente pôr a nossa ignorância no mistério, do que querer mascará-la em explicações que a nossa lógica comum, quotidiana, de dia-a-dia, repele imediatamente, e para as quais as justificações com argumentos de ordem especial não fazem mais do que embrulhá-las, obscurecê-las a mais não poder.
De onde em onde, ela punha os olhos sobre mim, denotando uma grande vontade de me adivinhar, e eu fugia deles com medo de me trair.
Seu olhar, sempre enxuto e polido, tinha alguma névoa úmida, uma angustiosa expressão de dor de quem não sabe ou não quer chorar.
Havia-me preparado para todas as eventualidades da vida. Imaginei-me amarrado para ser fuzilado, esforçando-me para não tremer nem chorar; imaginei-me assaltado por facínoras e ter coragem par enfrenta-los; supus-me reduzido à maior miséria e a mendigar; mas por aquele transe eu jamais pensei ter de passar. Como é difícil controlar o amor.
E nesse amor havia bondade, simpatia de homem para homem, independente de interesse e parentesco.
Falta-lhes crítica, não só a mais comum, mas também a necessária do grau de certeza da experiência e dos instrumentos em que as refazem.
Não é só a morte que iguala a gente. O crime, a doença e a loucura também acabam com as diferenças que a gente inventa.
Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifrável da nossa própria natureza, fica amedrontado, sentindo que o gérmen daquilo está depositado em nós e que por qualquer coisa ele nos invade, nos toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora compreensão inversa e absurda de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco traz em si o seu mundo e para ele não há mais semelhantes: o que foi antes da loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após.
- O Quaresma está doido.(...)
- Nem se podia esperar outra coisa, disse o Doutor Florêncio. Aqueles livros, aquela mania de leitura...
- Pra que ele lia tanto?, indagou Caldas.
- Telha de menos, disse Florêncio. (...)
- Ele não era formado, para que meter-se em livros? (...)
- Isto de livros é bom para os sábios, para os doutores (...)
- Devia até ser proibido, disse Genelício, a quem não possuísse um título "acadêmico" ter livros. Evitavam-se assim essas desgraças. Não acham?
- Decerto, disse Albernaz.(...)
Calaram-se um instante, e as atenções convergiram para o jogo.
Esta vida é absurda e ilógica; eu já tenho medo de viver, Adelaide. Tenho medo, porque não sabemos para onde vamos, o que faremos amanhã, de que maneira havemos de nos contradizer de sol para sol... (...)
Além do que, penso que todo este meu sacrifício tem sido inútil. Tudo o que nele pus de pensamento não foi atingido, e o sangue que derramei, e o sofrimento que vou sofrer toda a vida, foram empregados, foram gastos, foram estragados, foram vilipendiados e desmoralizados em prol de uma tolice política qualquer...
Ninguém compreende o que quero, ninguém deseja penetrar e sentir; passo por doido, tolo, maníaco e a vida se vai fazendo inexoravelmente com a sua brutalidade e fealdade.
Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir para a sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava? Matando-o. E o que não deixara de ver, de gozar, de fruir, na sua vida? Tudo. Não brincara, não pandegara, não amara - todo esse lado da existência que parece fugir um pouco à sua tristeza necessária, ele não vira, ele não provara, ele não experimentara. (...)
Importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não. (...)
Restava disso tudo em sua alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma!
Cada louco traz em si o seu mundo e para ele não há mais semelhantes: o que foi antes da loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após.
- É bom pensar, sonhar consola.
- Consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava abismos entre os homens...
O verdadeiro estado amoroso supõe um estado de semiloucura correspondente, de obsessão, determinando uma desordem emocional que vai da mais intensa alegria até à mais cruciante dor, que dá entusiasmo e abatimento, que encoraja e entibia; que faz esperar e desesperar, isto tudo, quase a um tempo, sem que a causa mude de qualquer forma.
A Constituição da Bruzundanga era sábia no que tocava às condições para elegibilidade do Mandachuva, isto é, o presidente.
Estabelecia que devia unicamente saber ler e escrever; que nunca tivesse mostrado ou procurado mostrar que tinha alguma inteligência; que não tivesse vontade própria; que fosse, enfim, de uma mediocridade total.
É raro encontrar homens assim, mas os há e, quando se os encontra, mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais esperança na felicidade da raça.
Casar, para ela, não era negócio de paixão, nem se inseria no sentimento ou nos sentidos; era uma ideia, uma pura ideia. Aquela sua inteligência rudimentar tinha separado da ideia de casar o amor, o prazer dos sentidos, uma tal ou qual liberdade, a maternidade, até o noivo. Desde menina, ouvia a mamãe dizer: "Aprenda a fazer isso, porque quando você se casar"... ou senão: "Você precisa aprender a pregar botões, porque quando você se casar..."
A todo instante e a toda hora, lá vinha aquele -- "porque, quando você se casar..." -- e a menina foi se convencendo de que toda a existência só tendia para o casamento. A instrução, as satisfações íntimas, a alegria, tudo isso era inútil; a vida se resumia numa coisa: casar.
De resto, não era só dentro de sua família que ela encontrava aquela preocupação. No colégio, na rua, em casa das famílias conhecidas, só se falava em casar. "Sabe, Dona Maricota, a Lili casou-se, não fez grande negócio, pois parece que o noivo não é lá grande coisa"; ou então: "A Zezé está doida para arranjar casamento, mas é tão feia, meu Deus!..."
A vida, o mundo, a variedade intensa dos sentimentos, das ideias, o nosso próprio direito à felicidade, foram parecendo ninharias para aquele cerebrozinho; e, de tal forma casar-se se lhe representou coisa importante, uma espécie de dever, que não se casar, ficar solteira, "tia", parecia-lhe um crime, uma vergonha.
De natureza muito pobre, sem capacidade para sentir qualquer coisa profunda e intensamente, sem quantidade emocional para a paixão ou para um grande afeto, na sua inteligência a ideia de "casar-se" incrustou-se teimosamente como uma obsessão.
O espetáculo do saber de meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e de outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança como um deslumbramento”. (Recordações do Escrivão Isaías Caminha)
Invadia-me uma indiferença, uma atonia, que me fazia viver sem me decidir a tentar o menor passo para sair da situação em que me achava.