Laura Liuzzi

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Coração sobre cama

Se de repente acordo
é madrugada
surpreende o coração
descansa sobre os lençóis
exausto
não tenho sede nem sono
e nem mais coração.
Se acordei e é madrugada
era pra ver você
que não está nesta cama.

Enquanto canto bem baixinho
os batimentos desaceleram
lentamente, quase imperceptível
até a voz sumir entre os lençóis.

Esperaremos a manhã
o coração e eu
e os jornais o carteiro as babás
colocarão as coisas no lugar:
o coração no peito
você à distância
os lençóis na lavanderia.

Inserida por pensador

Mesmo com os olhos
semicerrados
nota-se, atrás da nuvem
do cigarro
na leveza dos ombros
e pescoço esguio
na colher que descansa
sobre o pires
na dobra folgada
da manga da camisa
nos livros apoiados
sem pressão
na estante e na estante
quase vazia
atrás de si, ela
moça arguta
que sorve o mundo
como quem sorve
por hábito
o café.

Inserida por pensador

A noite esconde o mar que esconde
os barcos que esconde os marinheiros
mas ninguém tem os olhos fechados.
Todos se espreitam e se ouvem
sem sabê-lo. Os livros aparados
na estante dizem o que dizem
quando estão fechados? Estariam
apenas em silêncio?

Não há palavra que toque a coisa
mas há palavra que a invente.

Atravessar o vazio da sala de meias
pode ser a solução para vencer
a âncora desta noite porque todas
as noites parecem não ter fim
até que venha o sol anunciar
que nada é tão complicado
quanto parecia. O dia sucede.

Inserida por pensador

Vontade

Entrar em casa sem que a porta
rangesse, sem que o cachorro
da vizinha farejasse minha vinda
sem que o sofá conservasse as
formas do meu corpo, sem que
eu precisasse tomar aquele copo
de água que toca o azulejo e emite
um som rouco, sem que houvesse
corpo. Entrar em casa como
a música entra nos ouvidos.

Inserida por pensador

Sorrir nunca foi fácil.
Cresço com a boca miúda
e ainda não gosto de piadas.

Conservo a interrogação
quando de frente ao espelho:
como pode ser tão diferente
o frontal do perfil?
E me pergunto, desde lá
se todos enxergamos as mesmas coisas
se a língua não é tão só
um mesmo código para coisas distintas
se entre mim e você
não há um abismo sem solução.

O que sei é o que não sei
sobre projetos de futuro.

E mesmo assim escrevo cartas
(funcionam melhor que espelhos)
para meu próprio endereço.
Me respondo como se já tivesse
arquivado toda a memória
e pudesse confortar
confrontar o porvir.

Quando escrevo me passo a limpo
sem riscar as imperfeições.

A infância ainda gravita
em mim. Não só
a minha, mas outras
que vêm com músicas
sub-reptícias, por um atalho
por onde atravessam
com a velocidade
incalculável
do tempo.

Dar nome às coisas:
primeiro passo torto
até que se deseje
as coisas puras
sem auxílio de som —
a rosa única
a pedra que se sabe pedra.
Segundo passo, falho:
inominar.

Nos retratos guardamos nos olhos
o vidro dos olhos do gato
a cama ainda desfeita
a última tempestade
e o escuro do que virá.

[Colher nas mãos o que
das mesmas mãos se extinguiu:
pedra papel tesoura.]

Inserida por pensador