Karoline Nogueira
O tempo que confere voz e ritmo à natureza, silenciou a paisagem urbana.
“Ouvir o ruído das pinceladas nas paredes envelhecidas” - talvez nossos sentidos só consigam perceber o passar do tempo através das camadas de tinta – a jornada do olhar, a arte percorrendo passado/criação, presente/percepção e futuro/imaginação.
Olhar, fotografar, editar, criar, expor. O processo percorre o tempo.
O olhar que atravessa a lente, frágil sentido humano, deseja enxergar através das paredes, mas não o faz, adota um critério oposto ao usual: em vez de conceber a arte com elementos da realidade em termos de imaginação, revive a realidade como se fosse arte. O processo percorre o tempo.
O tempo como contexto da constância, os blocos de concreto, a imobilidade ao ver o tempo passar, a intransponibilidade das portas e janelas que detém o controle entre o transparente e as várias camadas de imaginação. Um novo olhar e o processo percorre o tempo.
Atravessar o pensamento, sem mecanismos, sem previsões, a imaginação do artista ao retratar o momento, e mesmo o planejamento que determina a precisão do clique. O processo percorre o tempo.
Por um momento, pensei num filme no cinema, que é composto de uma sequência de imagens paradas. Mas porque são projetadas sucessivamente em alta velocidade, temos a impressão de movimento contínuo.
O tempo passa ou o processo percorre o tempo.
Sempre tive a estranha sensação de que o tempo não passa, nós é que passamos, nos movimentamos.
A sensação de que o tempo foi mais uma dessas grandezas filosóficas criadas para preencher o espaço, outro gigante inexplicável e infinito.
Platão disse que o tempo passava, o infinito não.
Afinal, não fomos nós que criamos o tempo, para medir algo imensurável? Criamos divisões, espaços direções, como criamos uma bússola, Norte, sul, leste e oeste não são infinitos se desconsiderarmos limites?
Seria o tempo a bússola do infinito?
Por um momento então imaginei meu próprio corpo, que depois de ganhar camadas de tinta, num processo chamado passado, passa a perdê-las, entre o presente que já se foi ao piscar dos olhos, e um futuro que nunca chega, porque quando chega é o fim, para então ser o recomeço.
Perdendo camadas de tinta, talvez exponho minha história, como os edifícios contam pelo que passaram ao se deteriorarem. Camadas e camadas de tinta, e percebo que de concreto só que o que foi vivido, e de incerto as questões que esse pincelar, pictorizar, desencadeiam na imaginação. A imaginação, é afinal, o futuro. O processo percorre o tempo.
A fotografia, como arte, é a nova chance da paisagem, o recomeço. Norte e sul podem ser infinitos, se servirem apenas para apontar a direção e não para definir onde chegar. O tempo, bússola do infinito aponta a velocidade, não o fim. O processo percorre o tempo.
Não tenho um Leonardo
Os leões não cheiram mais a lírios
Passo meus dias olhando avencas
ouvindo cigarras, grilos...
só não ouço voz de gente
é o homem que roda
os lírios perderam o poder de repente.
só estradas, viadutos, edifícios
um velho caminho
um novo delinquente.
A face suporta a dor ou esconde o prazer?
No voo, não penso em nada
não tenho alma
não tenho pressa, nem calma
Mas tenho uma reza
um pedido...
um pra cada asa
Na hora do voo...
Do verde-terra
desponta a vontade
telhados justapostos
na direção do azul-céu
um menino
com um girino na caneca
Tem um piano
no canto da sala...
longe, minhas mãos
se imaginam lúcidas
tem um canto perto do piano
onde fica a chapeleira
e frésias num vaso de cristal.
tem um Ode à Saudade
não lembro quem escreveu
que releio, releio, releio
tem um timbre d'alguma voz
que permanece...
uma bicicleta velha
amparada pela janela
um risco, ou listras
num móvel qualquer
tem a sombra dos pensamentos
forma de sentimento, estranheza
Tem o perfume d'algum quadro
a brisa, o vento, o tempo...
tem o ar das montanhas
e o voo de borboletas
e um bem-te-vi, cantando baixinho.
Tem um por-do-sol e um céu estrelado
tem duvidas e certezas
horas indecisas e ansiedade presa
tem um mundo, um fundo, um por que
e um pouco disso tudo em mim e você
tem velhas cantarolando na praça
e uma multidão de meninos descalços nos faróis
tem quem fala, tem quem faça
tem histórias, tem dois sóis
Tem a tela, e painéis
tem dois Reis, dois destinos
caminhos, moinhos, pincéis
Tem um livro, um vicio, um credo
uma vontade imutável
tem brancas folhas, criação
e mãos e pés e olhos e bocas
e pouco e muito
e nada, estrada...
tem uma luz lá no mato
alguma fogueira acesa
alguem desavisado, um fato
Rodopios, vertigem
Fim do primeiro ato!
Lembrança sorrateira
Um rei e seus pensamentos
sonhos
vontades
Deuses em formidáveis cavalos
Anjos e trombetas
Luas...
Revirar espaços
asas, estrelas, cometas
tempestades
Subjacências...
Corças em busca de água
brancos flancos despertam
o sol nas terras da rainha.
E se a face for a resposta
e nesses mesmos olhos
cristais de estrelas
passearem e volte arem
E se tudo que há guardado pra você
for o mundo como eu vejo
e, se sua melhor lembrança for o vento
for o tempo, passam horas...
seus sentidos interplanetários
contam, revelam, esperam
E se vim de um lugar distante
e se fiquei presa aí dentro
e se... e se...
isso não for transmutável
e se for sentimento puro
auroras e eclipses... paisagem
mensagem...
E se você não compreender
as coisas do universo
os sorrisos, as perguntas, as verdades
e se, num deslize
a rota seja o norte, o porte, o forte
e se, o medo se instalar no nosso espaço
e a duvida persistir
e se os olhos... cristais de estrela
brilharem trazendo respostas
então.. é...
E se a areia tiver cheiro de vida vivida
E se a agua toda não for necessária pra matar essa sede
e se o tempo não for mais o mesmo
e o vento se recusar a abrandar o calor
e se a atividade meteórica no espaço parar
vier
viagem, em sua direção
e se, e se, e se
e todos os continentes
e mares
e ares... o doce ar, a ar leve que me trouxe
a brisa fresca, que agora você acha fria
E se...
Cristais de estrelas
Em versos criados
ventos horizontes
nos dias inventados
caminhos, pontes...
A água descendo do morro
teu canto infinito no espaço
em brancos dias...
Voa, pássaro...
Dias em doses pequenas
A terra tão vermelha
Carreguei no amarelo do vento
Cantos, junto, posto,
Em cama, nas ramas
Uma centelha de tempo perdida
Um cemitério de intenções
A salvo, no alto
A imagem perfeita
Reina absoluta
Como se não fosse treva, imunda
Querer-te aos passos
No azul dos ideais
o infinito turbilhão de porcelana
a calma trincando ruídos
em sons esvoaçantes
Hoje, o tempo, ligeiramente atrasado, chegou quieto, não disse nada, não olhou nos olhos do dia, nem piscou quando viu que era tarde, não quis comer as horas, nem um segundo sequer.
Parou no meio do pasto, olhar perdido. Parecia mais velho, cansado. Um poema incompreendido, um sonhador fazendo análise, uma fábula esquecida, uma lembrança das histórias de criança... Um olhar sustenido. Abriu as asas, tomou um pouco de sol, deixou-se até balançar pelo vento, guiar, virou paisagem. E eu lá sabia que o tempo tinha asas? Sempre pensei que tivesse motores, turbinados, potentes, desses que a ansiedade usa pra competir com nossos sonhos.
Hoje o tempo parou por alguns instantes, e de longe, com ar superior sorriu para Zeus rodeando o laranjado do meu pé de caqui, tirou os sapatos, respirou, garoa fina.
Algum motivo há, ele parou aqui...
Passei algum tempo na chuva
interceptando o fluxo da água
que escapa da sarjeta danificada
A rodada temperada
gotas suspensas no jardim
Aquelas que se ligam num momento solto
no final dos ramos
ao longo da planta
olhos que capturam e transformam
imagens sob campanulas azuis
Se em coisas banais repousar o meu silêncio, ali viverei.
A luz já não precisa ser branca, luminosa, transparente, não tem que provocar nada, não necessita de aprovação.
A luz é só luz de novo, intimista, queimada de amarelo, uma teoria antiquíssima, um trajeto percorrido repousando numa clareira. Entre o ser e o estar, o que existe, entre a onda e a partícula, a incandescência.
Um repouso trabalhado, desejado, esperado por milênios, uma torre alta e o vento que nos rouba o ar. Os feixes de realidade decompostos em manchetes criminosas que aquecem os sonhos das fachadas cinzas, de homens raquíticos e empoeirados.
Onde tudo é verde a força é natural e despreparada, a luz é filtrada, e o canto dos pássaros nos distrai..
O mundo – vertigem ascendente
Queda, barreira, fundo do mar
Estrada de pedras, pesado portão
... dois leões
O mormaço petrificado
A porta fechada
Bater? A intenção derrete nos dedos
A esteira vazia no canto da sala
A televisão ligada – a viagem de amanhã
Eu não vou chegar.
Não há tempo, só mormaço.
Momentos de silêncio, um carinho encontrado nessas raras passagens de tempo. Quando elas acontecem, percebo que é o momento de encerrar muitas coisas, absorvendo os ritmos naturais da vida. O ruído da natureza. O outono vem vindo e sinto que preciso descascar as camadas de peso que impedem meu caminhar. Em vez de querer voltar pra dentro, hibernar, um senso de renovação e abertura está florescendo, um anseio por mudança.
Mudança, palavra que excita a pronúncia. Grande, pequena, me põem em desalinho na ponta da agulha da caixinha de música. Eu nunca fugi para longe das mudanças, mesmo com ossos congelados, os braços sempre estiveram abertos.
Se eu estou com medo de alguma coisa? Arrependimento? Dar um salto de fé cega e não saber onde vou cair me assusta muito menos do que o potencial de um arrependimento. Jogar pelo seguro? Não, obrigada, a vida é inteiramente muito curta.
Então, esses momentos de silêncio são pura clareza para minha alma. Reflexões e devaneios amarrados com o fio das lembranças, um desdobramentos dos desejos de ser.
E, como se abrisse os portões do jardim, e ocupasse meus espaços com perfume, a novidade se instala em mim.
Tá, eu sei, é o ano da quinua, Março vem chegando a galope e organização é uma coisa que eu desconheço. Tem dias que sou teimosa, e dias que sou teimosa também. Minha mãe me irrita e do meu pai acho graça, toda filha deve ser um pouco assim, pende pro lado do pai pra não esquecer sua porção bibelô, mas, ás vezes, defende a mãe com unhas e dentes pra provar a si mesma que é possível unir duas vontades femininas.
Não é do amor, nem do afeto, é desses dias irritantes de esperas intermináveis, que, terminam com uma passadinha na casa eterna de todos nós que estou falando. Quando nada dá certo porque eu sou teimosa e desorganizada. Ah! claro, eu esqueci, e pelo visto eles esqueceram também que sendo a mais silenciosa das criaturas prefiro os abraços aos conselhos.
Se pai e mãe soubessem o quanto abraços são "infinita mentes" (o corretor deu uma mãozinha aqui) melhores conselheiros que palavras...
Se eu soubesse um jeito mais fácil de resolver tudo sem essa passadinha na casa eterna pra ganhar colo, abraço e bolo... Eu até sei...
Floricultura
Mais cachorros que pessoas passando na calçada, bicicletas, o som das jovens vozes no ginásio da outra quadra. A orquídea que perfuma tudo pra chamar atenção, o vento, a brisa calma: vão fazer falta no verão.
Da porta vejo escadas, no alto, janelas refletoras de sonhos...
Uma promoção, um suco gelado, uma vontade de falar com alguém.
O telefone toca, uma voz amiga do outro lado do mundo - Que vontade de chorar. Queria ser pássaro, pássaro não, vento: pra chegar mais rápido.
Vou conhecendo a pequena floricultura com a chegada do sol, com a promessa da primavera - Piso num chão de sombras de folhas douradas...
Tudo na cidadezinha é devagar, o tempo, o homem, o olhar, o sorriso. Quando se pensa em sorrir, a vida já deu dois passos, e uma parte de mim nunca olha pra trás.
Vendo flores, vasos, sonhos, uns sorrisos, surpresas, amores e contentamento.
O quase perfume de criar um jardim entre quatro paredes de concreto.
Nada num jardim é concreto, nada permanece, mesmo as esculturas de pedra.
Esse é um desses negócios que além da beleza e do prazer vende renovação, nutrição, recomeço... Algumas recomendações, o desejo que vinga, o cuidado de um novo alguém, um novo lar, e se ninguém cuidar?
As tardes de conversa jogada fora com insetos e folhas... Entre podas drásticas ou carinhosas, percebo que preciso de espaço. Um escritório debaixo do pé de caju, quem sabe?
Alguns metros quadrados a mais pra cultivar as flores de vento, borboletas!
O caminho não é mais o mesmo, ainda tem um campo de girassóis antes de chegar em casa, ainda tem o mar, a vila, mas é o barquinho azul, parado na lembrança que ensina a olhar pro que se quer mesmo quando não se quer nada.
Os dias de sol trazem coragem, os de céu branco ditam o ritmo da espera.
Vou pintar o vento no tronco de uma árvore...
Domingo
Perguntas para um campeão
rostos que lembram outros
olhos cheios de ternura
nove à mesa
busco equilíbrio
Os últimos cajus caem do pé
como pontos, virgulas
antes de saltarem às risadas
Vinho verde
Portas e janelas abertas
mergulhos em caixas de fotografias
Tesouros
deitados em retalhos no jardim
a profundidade insuspeitável do olhar
do ponto de vista das formigas
ser movida pela felicidade que brilha
Antes... criações fantásticas
Construir uma, e outra vez...
Aproximei-me do ar salgado, que respiram as gaivotas
um gato brincando com novelos de ondas
Sou novamente eu no lago oceano
na areia da praia e nos balaustres da baía
Olhando os alvos barcos de papel
Marinheiros tocam bandolim
Nunca longe, levo minha casa para salas de concerto e teatro
mar esquivo... eu finalmente encontrei os olhos
Estirpes no final do campo
madeira morta
folhas de hera entrelaçadas
musgo, cogumelos
cheio de água, solo
deixa.
Pântanos inconstantes
Em torno dessas cepas,
eu sonhava
em fachadas de edifícios pequenos
pernas elegantes
garras, mezaninos
asas de pássaro.