Karem Moraes
Inquietude
Costumo dizer que ausência não é vazio. Ausência é presença. Presença de lembranças, presença de desejo, de saudade. A ausência é como um vazio que na verdade não é vazio. Está ali o tempo todo, como um apêndice que você carrega de um lado pro outro. As ausências estão por todo canto: Presença da ausência de ter um amor, de um sorriso, de um livro, de alguém que se mudou pro lado de lá... O sujeito só vive enquanto existe a presença da ausência, enquanto procura algo. A inquietude é o que move a vida.
Karem Moraes
Acorda, Alice!
Ela achava que acordava todos os dias e julgava o quanto a vida havia sido dura com ela. Não agradecia por estar viva. O pensamento amargo aparecia logo que abria os olhos, lembrando que não havia o cheiro de café da mãe, ou a algazarra matinal do irmão mais novo. Ainda deitada na cama, lutava contra a solidão que parecia uma redoma sob o quarto pequeno e antigo da pensão onde morava. Saiu de casa para estudar. Tudo para provar aos outros que voltaria àquela cidadezinha sendo “alguém.” Mas o que é ser “alguém na vida?”
Já dizia Luiz Fernando Veríssimo: “Ainda que quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu.” Muita gente deixa a vida passar para só tarde demais descobrir que não viveu, na busca de ser alguém. Ser alguém com status, ser alguém que esbanja dinheiro, ser alguém que merece colher os louros da glória, sendo reconhecido porque passou por desafios enormes até chegar lá. Outro termo extremamente simplista, porém complexo: Onde é o chegar lá? Onde é o lá que você pretende chegar, Alice?
Ela é injusta. Injusta com a vida por acreditar que foi dura. Ora, menina. Somos reféns das nossas escolhas. Enquanto a gente se vitimiza por fazer alguns sacrifícios, inúmeras pessoas vivem se sacrificando obrigatoriamente. Alice ainda não percebeu que crescer, dói. Não há pílulas de mudança de tamanho como no País das Maravilhas. Não percebeu ainda que quando “chegar lá” pra “ser alguém”, não haverá mais tempo. O significado destes termos é pessoal e íntimo. Para alguns, chegar lá é apenas chegar ao outro dia agradecendo a Deus pelo cobertor que o aquece do frio. Pra outro é ser bilionário e comprar ilhas por hobby ou capricho.
Enquanto Alice se perde em devaneios tolos sufocando dia após dias seus desejos mais banais, em nome de uma sociedade que ensina às pessoas acalentarem anseios vazios e egoístas, alguém achou a sua maneira de chegar lá. Alice é programada para colocar um batom vermelho no rosto e seduzir o primeiro que aparecer, viver constantemente procurando em namoradinhos a relação ideal que passa na Sessão da Tarde. E se frustra, porque lida com a limitação humana. Mais de uma vez, lhe disseram que para ser alguém e chegar lá, ela precisa ter alguém.
Acorda, Alice. Vai em busca daquilo que te faz vibrar. Mesmo que essa vibração seja conquistada no alto de um monte no Nepal. Ou mais simples, ao ser abraçada por aquele alguém que mesmo cheio de defeitos, te faz feliz e te arranca o batom vermelho da boca.
Acorda e se despe da rotina, ou vive dela, se é isso que te apetece. Substitui o salto alto por sapatilha, tira uma foto natural sem maquiagem, aparece. Descobre que só de se livrar dessas amarras, você já chegou lá. Lá onde você descobre que perdeu tanto tempo pra provar que era alguém. Agora é.
Karem Moraes
Domingo
O sol entra preguiçoso pelas frestas da cortina e eu já sei que logo, logo, ela acordará mal-humorada reclamando, da forma mais linda possível, que a claridade não a deixou dormir justamente no dia que foi feito pra descanso.
Além do sol, o vento uiva forte. Tão forte que por vezes penso que é algum deus perdido por aí sussurrando palavras inteligíveis e acariciando seus cabelos recém-cortados.
Eis que aquilo que penso se transforma em realidade. Ela vai despertando naquele pijama lilás de cachorrinho e essa é a imagem que eu quero contemplar todos os dias.
Gosto do Domingo porque é sinal de que terei tempo para admirá-la e sorrir quando vejo a eterna luta entre abrir os olhos ou tentar dormir mais. Finalmente, ela escolhe a primeira opção e nessa hora me faz crer que tenho sorte. Temos sorte.
Ela levanta e eu percebo os fios de cabelo castanho espalhados pela cama, testemunhas da nossa noite anterior. Ela pode até não imaginar, mas desperta em mim sentimentos tão fortes que eu nem sabia que existia. Tem o poder de voltar à infância comigo e dizer que acha as minhas rugas de um homem que beira os 30, umas “coisinhas lindas”. Sorrimos de nós mesmos e comentamos o quanto somos meio retardados quando estamos juntos.
No domingo, o mundo poderia parar só para que eu pudesse tê-la o tempo que eu quisesse, porque nunca, pra nós dois, é bastante o suficiente.
Sinto essa vontade sobre- humana de protegê-la do mundo. Quando digo isso, ela revira os olhos, mas sei que no fundo, mesmo com meus inúmeros defeitos, sabe que tem em mim um porto seguro.
Como diria o Leoni na música Melhor pra Mim, “as horas disparam só porque eu encontrei você...” E logo, é a hora de mais uma vez nos despedirmos. Ao mesmo tempo em que adoro o domingo, lembro que ele representa quase sempre a nossa despedida momentânea. Mas não importa. Ela me dá a injeção de ânimo que preciso para passar o restante da semana, e isso basta.
A minha impaciência é medida pelo número de vezes em que abro a carteira que ela me deu no primeiro natal que passamos juntos, e olho o seu rostinho congelado naquela 3 x4 que trocamos. E eu fico na espera até que o próximo domingo chegue. Melhor ciclo vicioso não há.
Karem Moraes
... A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza (de quem eu sou). Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...)
(Alice no país das Maravilhas/ Lewis Carroll)
Esse é um dos meus trechos preferidos da obra Alice no País das Maravilhas. Parei pra pensar que o verbo mudar é uma das prioridades na nossa vida. Mudamos sem querer, sem perceber. Quando nos damos conta, passamos de lagarta à borboleta. Já analisou o quanto a lagarta sofre até se transformar em borboleta? Por instinto, ela sabe que algo de muito grande acontecerá em seu organismo e que terá que sair do cômodo e seguro casulo para enfrentar o desconhecido.
Há algum tempo, a palavra mudar representava um fardo. Acredito que muito disso se devia ao fato de supor que havia vivenciado poucas mudanças na minha vida. Nunca mudei de endereço. Também nunca mudei de escola. Passei no vestibular e fiz uma única faculdade, numa cidade próxima a minha, e eu ia e voltava todos os dias para minha casa, ou como a lagarta, voltava todos os dias ao meu casulo. Sempre afirmei: “Sou frustrada porque não mudei quase nada em minha vida.”
Até que a ficha caiu. Como eu podia dizer que vivenciei poucas mudanças, se já não sou a mesma que era? Na minha rua, as casas ao meu redor mudaram, a minha casa internamente mudou, o portão foi camuflado de outras cores, assim como as paredes e janelas... Foi nela que aprendi a caminhar e vi minha filha caminhar. A escola mudou de tamanho, adaptou espaços, mudou até, pasmem, alguns pensamentos arcaicos, além de me fazer a questionadora que sou hoje em relação às regras impostas pelas religiões. A faculdade abriu um leque de possibilidades, discussões, amizades despretensiosas e me deu até um namorado. Como eu poderia dizer que não mudei? A verdade é que mudamos todos os dias.
Pegue uma foto de anos atrás. No meu caso, vejo as mais variadas cores de cabelo, time, estilos de roupa, festas, gosto musical. Quando reviro o baú agradeço ao senhor chamado tempo. Me sinto melhor agora do que há 4 anos. Agora, reflita sobre as mudanças de dentro pra fora, que possuem um impacto maior no que você é. Aquelas que por estarmos tão acomodados demoramos a reconhecer. Certamente você dirá: “Nossa, como estou diferente.” Todas as mudanças foram causadas por experiências ao longo de sua vida de lagarta.
Pensando bem, há algo gracioso em ser lagarta, porque ela representa o caminho que se percorre ao experimentar momentos diversos, mesmo que estes sejam sinuosos e carregados de sacrifício, dor e incertezas. E o bonito de viver não é isso? Poder mudar de ideia, de opinião, de profissão, de decisão. Até que um dia, sem perceber, você está alçando voos. Virou borboleta.
Karem Moraes