Júnior Mendes
Tenho percebido ultimamente que a minha poesia tem entrado em estado de carne. Seu cheiro já não é o mesmo de outrora. De quando eu exalava aroma de terra molhada, limão fresco e alecrim.
Desordem
[...]
Pedaços de corpo dispersos sobre a grama verde. Noite de respiração ofegante, de desejos como mel deslizante. A boca se lambuza a degustar o mel que do corpo vaza.
Os olhos ardidos de sono avistam o movimento percorrido pelo vento matinal. Tenho desejo de cama diz o corpo, de coberta, de ser coberto por sua cálida pele.
Há memórias que aprisionamos para revisitá-las por alguns instantes enquanto há vida. As guardamos bem no fundo, lá onde fica os nossos segredos mais secretos. Tais memórias fazem o corpo se desfazer nos instantes que as revisitam.
Atento para os pensamentos com os quais flutuo. Acolho os que em mim produzem devaneios, sonhos, fantasias...Tais pensamentos forçam-me, conduzem-me na invenção de castelos, borboletas, macacos verdes e sem pele; como também - lágrimas doces e nada molhadas - isto tudo no ar, lugar onde flutou com atenção.
Sigo sinuoso e veloz. Desejo muito ver os teus olhos de perto se você deixar, vai, tira os óculos. Por vezes sinto-me torto, isto é estranho. Tenho pausas constantemente. O tempo ajuda-me a entender um pouco os atravessamentos que sofre o corpo. As vezes me calo quando quero te dizer alguma coisa. Não costumo calar. É "tempo de pipa". Existe uma canção com este título. Lembra das mãos? Ei, você não pode esquecer. Meus olhos estão fechados, minha garganta seca, meus pés na cabeça... Vixe! alguém caiu depois de tropeçar no beija-flor. A chuva quando desce do céu pela manhã é transparente - sinto-me invisível. Invento muito sobre nós dois, sobre o castor e a tartaruga. Ouvi falar que as tartarugas duram muito tempo. Tenho medo do tempo - ouço o piscar dos teus olhos. O tempo ajuda-me a entender os atravessamentos que sofre o corpo. Ops! acho que já mencionei isto. Antes de dormir penso em lugares fora de todos os lugares - estou contigo neles. Acho que devaneio quase sempre. Cadê a nuvem? Poxa! acho que alguém a bebeu.
O tempo nunca se perde. Dá voltas e mais voltas até desmanchar-se no ar e cair sobre os corpos como chuva quente. Ao escorrer pelo chão, o tempo-chuva emana cheiro de pele derretida.
Debruçados na aurora nossos corpos irradiam amores de cores claras e declamam silêncios utópicos. Nossa pele desliza uma na outra exalando aroma de melancias frescas e alecrim. O nosso amor está suspenso no horizonte esverdeado sem tempo, sem fim, sem mais. Os pássaros deslizam no céu desanuviado.
O corpo precisa comer borboletas verdes e beber água de cachoeira, só assim, preencherá seus lugares vazios. Quando preenchido, lança-se no fogo em busca de aquecer o próprio coração feito de madeira.
Beijar o vento por vezes refrigera a alma. Beijar a boca de um beija-flor faz nascer borboletas no estômago. Cair de um abismo é leve, se ele não tiver fim. O fim mata o corpo, come sua carne e vomita os despojos no mar.
Arrancar a pele, a carne, tem se tornado uma constância na vida deste humano que vos escreve. Procuro asas ao invés de ossos.
Ao olhar os teus olhos de longe me vejo neles. Vejo-me caminhando dentro de ti. Cada passo dado por mim é como uma pisada de elefante que esmaga os teus órgãos lentamente um por um. Eu te amo e não consigo sair de ti sem antes não te marcar, esmagar por inteiro até me ver escorrendo dos teus olhos feito água salobra.
Senta-se no vento, ao som das nuvens toca o peito; pouco a pouco extrai o coração - lança-o no ar para amor espargir: derramar, espalhar em gotas, borrifar, difundir.
Por tanto pensar o poeta perdeu razão. Sua escrita escorre do corpo como suor: devaneios descabidos, molhados e estranhamente salgados.
O corpo no todo não é puro, cheiros estranhos o possuem, como também desejos esquisitos de cores distintas. Há oxigênio no que se tenta compor tendo o corpo como condutor.
No dia último as lembranças repousam, no silêncio, declamam as alegrias tristes de um tempo perdido no bolso da calça do corpo.
[...] Querem ser autônomos os olhos e não determinados no que diz respeito ao enxergar. O que sabe o homem para ensinar os olhos? Nada sabe! O que sabe se desabe, o vento leva; assim como ele que semelhante é a uma folha que seca e logo se desfaz no tempo. Os olhos querem voar e contemplar talvez o mar, fixar sua visão ali nas ondas que estão a dançar a música do mar. Os olhos precisam ver outros olhos como os seus, desvinculados dos homens, donos de si. A noite passa, os olhos fecham e por um instante se calam.
[...] Seja arrancado tudo o que causa peso; sejam os órgãos, os ossos, os músculos... Seja o sangue. Não quero estar vazio, mas leve. Seja retirado tudo, para doravante eu enfim flutuar. Quero estar leve e não vazio inversamente digo. Quero gritar mais alto no tempo certo do grito. Quero mover com mais leveza, sem nada que possibilite peso. Quero mover no ar se possível for. A remoção do que me causa peso se dá com esmero. Flutuo sobre os horizontes, vejo os lagos, beijo o vento. Sonho os sonhos de um pássaro. Sonho a liberdade de sonhar livre, sem obstáculos, sem peso algum, sem nada que me empeça de ir mais alto e alto sem voltar atrás - Não morrerei enquanto não experienciar o flutuar. Não partirei enquanto não me torna um ser flutuoso.
Desejo cantar nos teus ouvidos a canção produzida pelos pássaros matinais. Desejo falecer nos teus braços olhando-te profundamente nos olhos até minha alma ser arrancada de junto de ti. Invadir o teu corpo é o meu desejo último, assim como a faca rasga as vísceras de um corpo.
[...] é como se as borboletas estivessem todas, produzindo um vendaval: no interior daquele que nega o desejo.
A inquietude foi embora, partiu; sem dizer adeus deixou o coração. A alma respira, suspira, transpira. O amor não está no peito alçou voo - o vento levou - o largou solto no ar a amar a ventania. Quieto o dia está. A mão no rosto desliza, alisa, retira a poeira descansada. Nada diz o céu. Tenho esperança nas águas, aquelas que correm, me alcançam e me levam sem nada de mim deixar.
Deita-se sobre a noite, aconchega-se na negritude; inala o eflúvio das estrelas. Sem urgência elas riscam o céu, o deixa riscado de luz.
Beijar a flor, sentir seu néctar: líquido açucarado. Tocar a madeira, perceber sua rusticidade e a macieis de suas farpas. A pele arrepia pela fala do vento: o vento fala, canta; as vezes grita. A voz do corpo se cala: o corpo tem voz, tem cheiro, tem feridas que cheiram mal; tem medo, tem paixões. O corpo tudo tem, tem até o seu próprio tempo. O tempo do corpo chega ao fim. A flor murcha sem seus beijos, sem seu hálito: ar, brisa que sai dos pulmões durante a expiração; exalação, emanação; cheiro da boca. O vento não mais grita, nem sopra; apenas se agita.