Jordan César
A menina qeu fabricava pensamentos
Naquela manhã, a menina que fabricava pensamentos acordou triste outra vez. Sentia uma tristeza que lhe era alheia, pois parecia mais pertencer a outra pessoa. Como os amigos costumavam dizer, a tristeza não combinava com ela. Contudo, naqueles dias, perecia ser uma velha amiga.
Ela continuou deitada, escutando o pipilar distante dos pássaros. Noutras manhãs, teria apreciado com um copioso encantamento aquela melodia ritmada. Agora, no entanto, os cânticos passavam despercebidos pelos seus sentidos, sem deixar registrada uma nota sequer, como se fossem parte de uma sinfonia muda que, embora fosse ouvida, não podia ser sentida. O sentimento malogrado era fruto de um pesadelo que a menina tivera durante a madrugada de dias atrás, um pesadelo que não nascera para ser pesadelo, pois sempre tivera a aparência de um sonho, um conto noturno recorrente, que sempre lhe arrancara sorrisos. Naquela madrugada, entretanto, quase a levara às lágrimas.
Ponderava se não teria sido um pesadelo dentro do sonho, algo de uma dimensão além, da qual ela pudesse fugir ao acordar. Seria possível sonhar enquanto se já estava sonhando? Era uma ideia na qual a menina teria acreditado com todas as forças, não fosse a nitidez do vívido pesadelo, que teimava em permanecer em seus pensamentos. Depois de muito tempo - ou seria tempo nenhum? - ela sentou-se na cama. Descalça, caminhou até a janela e abriu-a.
O dia lá fora cumprimentou-a com uma saborosa lufada de ar, que veio numa temperatura perfeita, nem quente, nem frio. Acariciou o seu rosto e, em seguida, invadiu com despreocupada indiscrição o quarto atrás dela, tomando conta de todo o ambiente. A menina sentiu com prazer o seu cheiro adocicado, e, por um momento, um breve momento, pode apreciar a gloriosa manhã. Depois, o pesadelo.
Agora, assomado à tristeza incomum, sentia também uma fagulha de raiva. Porque, incrivelmente, sentia saudade do que a levara ao anseio do choro, sentia falta do seu pesadelo mascarado, do sonho que, agora ela percebia, nunca fora sonho. Que sutil e cruel ironia: a vertigem que nutria a sua tristeza era também um horizonte, que suscitava a sua saudade.
A menina olhou para baixo e vislumbrou uma ruela movimentada. As pessoas do lugar costumavam acordar muito cedo, e saiam de suas casas muito cedo, como se quisessem disputar com as primeiras luzes da alvorada uma corrida imaginária.
Um homem que ia passando acenou para a menina. Quase no mesmo instante, uma mulher que levava o filho para escola fez o mesmo. A menina ensaiou um sorriso, mas não teve muito sucesso. As pessoas pareceram estranhar. Em seguida, outro homem, de passagem, a cumprimentou, e depois mais outro, este acompanhado por sua esposa e filha. A garotinha sorriu para a menina debruçada sobre o parapeito da janela, que retribuiu o gesto com um aceno desanimado.
Então, a garotinha puxou a beirada da blusa da mãe, que parou e se virou para ela. Do segundo andar de sua casa a menina não pode escutar, mas soube no mesmo instante que a garotinha falara alguma coisa a seu respeito, porque, no momento seguinte, sua mãe e seu pai pararam e, girando nos calcanhares, ergueram a cabeça para olhar para ela. Ali ficaram os três, pai, mãe e filha, encarando a menina que fabricava pensamentos, ambos num silêncio caudaloso, quase tangível.
Então, a garotinha perguntou:
- Por que você está triste?
Ao que a menina respondeu:
- Um pesadelo que usava a máscara de um sonho. Costumava me fazer sorrir. Algumas noites atrás, a máscara caiu e ele quase me fez chorar.
- Não fique assim. Você sorri para mim todas as manhãs; não gosto de vê-la assim triste.
- Fui uma tola. Encantei-me com a beleza de uma rosa e não vi os seus espinhos; acabei me machucando.
Desta vez, quem falou foi o pai da garotinha:
- Menina que fabrica pensamentos, todas as noites você nos ensina algo novo com as suas mensagens de amor, amizade, alegria, fé... você sorri e vem nos cativando há muito tempo, e quando chora, sempre é de alegria. Esse semblante de tristeza não lhe cai bem.
- Ultimamente, parece fazer parte de mim - respondeu a menina por fim.
Mais pessoas foram passando e parando em frente à casa de Nº 14, onde morava a menina que fabricava pensamentos. Em poucos minutos, a ruela estava ocupada por uma pequena multidão. A menina continuou a observar as pessoas que se juntavam em baixo de sua janela, olhando para ela num silêncio expectante, como se esperassem dela um sinal de que a sua alegria voltaria ou então o seu próprio dia não seria feliz. Quis sorrir em resposta, mas sentiu que apenas os enganaria e a si própria. Se seus pensamentos fluíssem como sempre haviam fluído - ao mais tenro de seus estímulos - a menina diria algo que abrandasse a aflição nos olhares lá embaixo. Contudo, nem mesmo uma palavra se articulava. Era como se os pensamentos, em protesto por sua tristeza, tivessem decidido acompanhar o coro silencioso das pessoas ali em volta.
De repente, a menina reparou em uma movimentação à sua esquerda. Algumas pessoas se afastavam para os lados, dando passagem a uma terceira pessoa. Achou que o movimento se assemelhava ao do mar: uma ondulação cadenciada se afastando do pondo onde a ruela fazia esquina com uma alameda e seguindo num ritmo consistente, decisivo, rumando para a margem do oceano, para a sua casa. Lá chegando, a menina pode ver de quem se tratava.
Era o filho do dono da alfaiataria que funcionava ali perto. Ele, que poderia ter a mesma idade que ela, se destacou da multidão e começou a escalar a parede lateral da casa, a mão direita fechada num gesto esquisito, o punho enrijecido e meio torto para dentro, como se estivesse quebrado. A menina observou-o apenas, sem expectativa de saber ou entender qual era a sua intenção. Quando ele empoleirou-se na frente de sua janela, o gesto dele surpreendeu-a.
Na mão direita, surgiu uma rosa, que estivera escondida por trás do punho que parecia quebrado. Ele entregou-a à menina sem fazer delongas, e disse sem rodeios, olhando-a com um meio-sorriso:
- Gostaria de lhe dar isso, para que você veja que nem toda rosa tem espinhos e que, apesar dos sonhos ruins que possam lhe causar o choro, haverá sempre quem escale paredes, só para te fazer sorrir novamente.
A menina registrou cada palavra do garoto, mas as suas próprias pareceram se tornar estranhas à sua percepção, e ela não pode pronunciar nenhuma. Muito distante dali, pássaros continuavam a cantar.
Mulheres têm o dom de conquistar, de todas as formas possíveis. Às vezes, elas nos encantam simplesmente assim: "de um jeito meigo e diferente!
As mulheres são as nossas tutoras na juventude, nosso apoio na maturidade e nosso consolo na velhice. Não que elas vivam em função do homem; é que o homem não vive fora da incidência delas... São a nossa "razão"...
Ao lado de um grande homem, há sempre uma grande mulher"... O contrário tbm deveria ser dito: "Ao lado de uma grande mulher, há sempre um grande homem"... porque, na ordem dos fatores, o homem não precisa ser sempre o centro...
Da mesma forma que podemos ser o centro, assim também podemos ser a periferia de nossas razões: as mulheres.
Mulheres não foram feiras para serem conquistada, como se fossem terras desconhecidas de ninguém. Não foram feitas para serem bombardeadas com cantadas infames ou com pretensiosos galanteios, nem com flores de pétalas de areia. Elas nasceram para serem apreciadas, apenas apreciadas, sem segundas ou terceiras intenções. Se nesse caminho cristalino de sincera apreciação o homem for contemplado com uma porção de reciprocidade, então ele já foi premiado.