joana paes
Ela se foi. Antes que ele desse conta.
Antes que criasse coragem ou tomasse vergonha.
Antes que o braço torcesse, o orgulho quebrasse e o juízo falasse.
Antes que a ambição faltasse, o orgulho sucumbisse, o amor prevalecesse.
Antes que aprendesse seus gostos, seus gestos, seu cheiro.
Ela se foi. Absoluta, decidida, ferida.
Não esperou nada e simplesmente foi.
Não por maldade. Por tristeza.
Tira essa surpresa do olhar. Não pense que só existe o que você é capaz de notar. Não é porque você tem preguiça de afastar a cortina que as pessoas não tem nada abaixo da superfície.
Eu queria ter sido alguém para você. Queria fazer parte de sua lista de convidados, ou melhor, alguém que nem precisa convidar.
Queria que você admirasse minhas qualidades e defendesse meus defeitos. Que confiasse na minha sinceridade e não duvidasse das minhas capacidades.
Não porque sou perfeita, mas porque sou sua.
Queria ser insubstituível e não descartável. Queria importância e não indiferença. Queria ser única e não avulsa.
Queria completar e não sobrar, inspirar carinho e não pena, ser um presente não um fardo, uma amiga e não uma obrigação, ‘agregável’ e não descartável.
Queria que nossos momentos não fossem só passado. Queria sentir algo mais que gratidão e saudade. Queria ligar pra perguntar o que vamos fazer hoje e não fingir que esqueci, que não dói.
Isso tudo me tornou uma pessoa dividida. Dividida entre tudo isso que eu queria ter sido para você e o que quero ser para mim mesma.
E eu opto por seguir em frente, crescer com os tombos, aprender superar.
Opto por conquistar meus próprios amigos, desenvolver outros traços da minha personalidade, estar com quem me ama. Ser tudo o que posso ser e não apenas o que você conseguiu ver.
Opto por assimilar que apesar de você fazer falta, às vezes é com as pessoas que não estão mais conosco que moram nossas maiores afinidades.
Vamos sonhar ordinariamente e mergulhar nas águas paradas e rasas do comum. Limitar o cérebro, nos conformar com o tradicional.
Vamos descolorir as tatuagens e desmanchar as canções. Apagar nossos rastros na areia, deixar secar a tinta da alegria.
Vamos ignorar o prateado da lua e tomar pra sempre o mesmo chá; violar nosso coração e deixar escorrer tudo o que amamos e que o mantém aquecido e colorido.
Vamos pintar nossos sonhos de gelo e afundar nossos barcos, nos misturar à multidão; desviar nossos olhos do sorriso que mais amamos e ignorar as cores alegres.
Vamos cortar as árvores mais queridas e quebrar os abajures mais brilhantes.
Rasgar as roupas mais ousadas e cobrir os espelhos.
Quiçá assim nos tornemos merecedores da morte e deixar este mundo não pareça tão cruel.
Eu vejo sua verdade. Não adianta vesti-la de boa moça.
Pode guardar os laços e vestidos de voal. Tira esse chapéu charmoso que esconde o vidrado dos teus olhos.
Enfia tudo num baú, naquele mesmo onde você guarda a maquiagem de camuflar solidão e os perfumes que abafam cheiro de culpa.
Ah, a culpa! Ela some com seu estômago e lhe dá concreto no lugar. E de longe se vê que ali vai alguém que leva mais do que aguenta carregar.
Vem cá, sobe no cavalo da liberdade, vamos fugir do tsunami em direção a montanha mais alta. Onde o sol é dourado e as corujas fazem ninhos. Onde fadas iluminam a noite e um toque de varinha mágica faz todo esse concreto virar pó.
Segure minha mão mas não roube meu juízo. Não vem deixando essa sensação de que sou metade sem você.
Mania de alterar meu humor, esfriar minha barriga e sacudir os hemisférios!
Vontade de viver muito, de viver tudo, de reviver.
Vontade de estar em vários lugares, abraçar o mundo, beber o saquê da fama. Desejo de agarrar alguns momentos e revivê-los inúmeras vezes, ouvir os mesmos sons, as mesmas risadas, as borboletas no estômago.
A ignorância na forma mais positiva que ela pode ter: coisas que gostaríamos de nunca ter conhecido, ingenuidade que na curva do tempo bateu de frente com fatos e nunca mais se curou.
Parar um pouco o relógio, clarear as idéias, comer um caixa de chocolate.
Alterar o calendário pra ver se a vida entra no nosso ritmo e passa esse sentimento eterno de jet lag.
Vontade de esquecer por um momento que não se pode ter tudo na vida e sair pra dançar um tango.
Ignorar aqueles dias em que nos sentimos sentados no carpete gasto de um palco, olhando para o enorme número de cadeiras completamente vazias e a ameaça de que um dia o holofote vai se apagar nos assombra.
Esquecer a quantidade de sonhos que já não brilham mais e que levaram com eles um pedacinho do que fomos. E sem esses pedacinhos quase não nos reconhecemos mais.
Vontade de mudar o cenário e construir um chalé de flores com portas de canela, cortinas de algodão e chamar a alegria pra tomar um chá. Quem sabe ela fica?
Ele merece uma família. Merece colorir cartões no Dia das Mães, brincar com os primos num final de tarde.
Merece que os pais o levem nas festinhas juninas, nos zoológicos, nos circos e em tudo o que possa fazê-lo sorrir.
Sorrir muito, muito, até a solidão estar completamente superada. Ele não merece chorar até dormir em algum berço frio. Não merece aprender as palavras vovó, tio, família, sem ter noção do que elas representam.
Merece colocar estrelas numa árvore de Natal, merece ser amado sem nenhuma distinção se veio da barriga ou de um abrigo.
Merece sorvetes e algodões doces, pipocas, estreia de filminho infantil no cinema, balões, animais de estimação.
Merece um bolo de chocolate saído do forno no final de um dia de muitas brincadeiras.
Merece beijos e mordidas. Balanços, escorregadores e rodas gigantes.
Conhecer a praia, brincar no mar e dormir de exaustão no colo da mãe com a cara suja de chocolate.
Merece tantas coisas e o que podemos fazer é rezar para que cada dia mais corações optem pela adoção e que a fila ande.
Assim ele conhecerá outras filas muito mais divertidas, segurando nas mãos de pessoas que o amam, protegem e que ele teve o poder de completar o que lhes faltava: UM FILHO
Certa vez eu tive um sonho. Sonhei que uma alternativa não anulava a outra, que a bondade era sempre reconhecida e o companheirismo prevalecia.
Que coisas materiais não nos prendiam, nossos ouvidos eram libertos de frases preconceituosas e imbecis, auto estima vinha de berço.
Crianças não ficavam doentes nem passavam frio/fome/abandono.
Ser mãe não era uma questão de DNA e pai e mãe eram sempre um porto seguro.
As pessoas reclamavam menos e se doavam mais, o apoio substituía a crítica, cor da pele só representava quantidade de melanina.
Um sonho que ultrapassou as barreiras do sono e me faz companhia nas noites frias.
Quanto vale a aprovação dos seus semelhantes? Quanto isso realmente te custa?
Custa caro!
Custa desistir de projetos, sufocar opiniões, desviar de desejos, submeter-se a ideais que não são seus.
Nada é de graça. Custa caro ter a aparência que se deseja, seguir o próprio coração, fazer escolhas.
Tem um preço o sorriso que brilha no seu rosto por se sentir satisfeito consigo mesmo. Tem um preço o sentimento de realização de um sonho.
A determinação custa, a ousadia custa, os sonhos custam.
Mas o que seríamos sem eles?
Fantoches seguindo um script manjado para uma plateia tediosa, preconceituosa e eternamente insatisfeita.
Uma plateia que mascara suas frustrações, enfia os próprios sonhos no baú do conformismo e enterra os questionamentos. São como zumbis e querem disseminar essa ideia.
Se você faz parte dessa plateia boa sorte, boa vida. Não tenho nada a te dizer.
Mas se não faz, fuja, corra, lute, sue, se decepcione, chore, seja discriminado, odiado talvez. Suas ideias causarão impactos e questionamentos em vez de aceitação e alegria.
É o preço por ser autêntico. Vale a pena não ser?